leandro konder- os marxistas e a arte (trechos)

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KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: Breve estudo histórico-crítico de algumas tendências da estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.Introdução 1. Raízes Hegelianas 2. Marx e Engels 6. Trótski 7. Lênin 9. Eisenstein 10. Maiacóvski 11. Górki 12. Zdânov 13. Max Raphael 14. Caudwell 15. Gramsci16. Benjamin 17. Piscator 18. Brecht 19. Lukács20. Lefebvre21. Goldmann22. Garaudy23. Hauser27. Fischer28. KosikConclusões

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Page 1: Leandro Konder- Os marxistas e a arte (trechos)

ColeçãoP E R SP E C T IV A S DO H O M EM Direção de M oacyk F elix

volume 25

Page 2: Leandro Konder- Os marxistas e a arte (trechos)

LEANDRO KONDER

Os Marxistas ■ e a Arte

Breve estudo histórico-crí­tico de algumas tendências

da estética marxista

civilizaçãobrasileira

Page 3: Leandro Konder- Os marxistas e a arte (trechos)

Exemplar JMà 114?

t r k i f

Do autor, publicado por esta Editora : |

Marxismo e Alienação

? J2- / /j r V , 4 }

desenho de capa :

R oberto F ranco de Almeida

Direitos desta edição reservados à j

E D IT Ô R A C IV ILIZ A Ç Ã O B R A S IL E IR A S. A . j

R ua 7 de Setembro, 9 7 j R io de J aneiro ;

1967

Impresso no Brasil

Printed in Braz.il

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a Giseh e a meus pais.

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“A dificuldade não está cm com preender que a arte e a épica gregas se achem ligadas a certas form as do desenvolvimento social c sim no fato de que elas possam, ainda hoje, proporcionar-nos um deleite estético, sendo consideradas, em certos casos, com o norm a e modelo insuperáveis”,

(K arl M arx, Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política.)

“O desenvolvimento humano dos Cinco senti­dos é obra de tôda a história anterior. O sentido subserviente às necessidades grosseiras possui apenas um a significação limitada. P a ra um homem fam in­to, a form a humana do alimento não existe; só existe o seu caráter abstrato de alimento. Ê le pode­ría existir mesmo na mais tôsca das form as; e, nesse caso, não se poderia dizer em que a atividade do hom em ao se alimentar seria diferente da do animal. O homem premido pelas necessidades grosseiras e esmagado pelas preocupações imediatas é incapaz de apreciar mesmo o mais belo dos espetáculos” .

(K arl M arx, Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 .)

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índice

Introdução Raízes Hegelianas 2 Marx e Engels

3 Káutski 4 Plekhânov

'5 Mehring 6 Trótski

7 Lênin 8 Bukhárin

9 Eisenstein 10 Maiacóvski

11 Górki 12 Zdânov

13 Max Raphael 14 Caudwell

15 Gramsci

115253339475359657179859199

103109

Page 7: Leandro Konder- Os marxistas e a arte (trechos)

16 Benjamin 121 17 Piscator 127

18 Brecht 13119 Lukács 141

20 Lefebvre 15721 Goldmann 163

22 Garaudy 17323 Hauser 183

24 Salinari e Chiarini 19125 Delia Volpe 199

26 Cases e Aristarco 20727 Fischer 215

28 Kosik 221Conclusões 227

índice Onomástico 239

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Introdução

C omo tôda concepção do mundo, o marxismo possui a sua própria teoria estética, -que integra, de modo ge­ral, a sua teoria do conhecimento.

No entanto, no interior >do marxismo e ao longo do seu desenvolvimento, posições teóricas diversas se têm formado e reivindicado o direito de representar a estética marxista. Isso não quer dizer que a concepção marxista do mundo com­porta, indiferente, várias teorias estéticas; quer dizer apenas que, por diferentes razões, a partir de uma mesma base, po­sições estéticas controvertidas puderam historicamente for­mar-se e deram feição contraditória à elaboração conceituai da doutrina estética do marxismo.

Entre as razões que explicam o fenômeno, podemos enu­merar as seguintes: 1) o fato de que o marxismo não cons-

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litul tuna concepção "nenbnda" do mundo c não sc deixa en­cerrar em um sistema fechado, "ortodoxo”, de idéias defini­tivas: 2) o fato de que Marx e Engels não desenvolveram cxpllcltamcntc, éles mesmos, em qualquer livro ou ensaio, de maneira sistemática, a teoria estética do marxismo; 3) o fato de que alguns dos textos básicos dedicados por Marx e Engels a uma apreciação circunstancial de questões estéticas só fo­ram tardiamente divulgados e não foram devidamente valo­rizados em suas indicações mais profundas. Outras razões serão indicadas no corpo da presente exposição.

No que se refere à divulgação tardia de certos textos muito importantes para o esclarecimento das idéias de Marx e de Engels sobre os problemas estéticos, convém lembrar que algumas das cartas nas quais Engels discorre mais lon­gamente e com maior profundidade a respeito de questões de arte e literatura são da sua velhice e não tiveram ampla difu­são imediata. A carta de Engels à jovem romancista Srta. Harkness, por exemplo, é de abril de 1888. Nela, Engels fala a respeito do gênio de Balzac, regozijando-se com o fato de que na obra balzaqueana o realismo do (hedonista tenha prevalecido sôbre a mentalidade conservadora do homem. Esta carta é da maior significação para a reconstituição do autên­tico pensamento estético de Engels, pois nela o grande com­panheiro de Marx distingue expressamente entre as idéias realizadas na obra e as idéias proclam adas pelo autor. O pla­no da criação estética, por conseguinte, lhe aparece como ca­paz de revelar valores que não derivam de maneira apriorística dos valores conscientemente adotados pelos escritores na ati­vidade pública não-criadora dêstes (política, vida literária, e tc .) . Pois tal carta <— que, como dissemos, é de 1888 —- só teve real difusão a partir da segunda década do século X X .

Devemos recordar, também, que a coleção das cartas trocadas entre Marx e Engels só veio a ser publicada, igual­mente, no século X X , em trabalho supervisionado por Franz Mehring. A Introdução à Contribuição à Crítica da E con o­mia Política f— de tôdas as páginas que Marx dedicou à abordagem dos problemas estéticos, aquela que talvez seja a de exegese mais delicada —: permaneceu inédita até 1903, ocasião em que Káutski a publicou. E os Manuscritos E co­nômicos e F ilosóficos d e 1844, texto que contém significati­vas idéias do jovem Marx sôbre a arte como educadora dos

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sentidos humanos, só foram divulgados em 1931. O próprio Lênin, portanto, não chegou a lê-los.

Acresce considerar que as opiniões emitidas por Marx e Engels nas cartas e nos textos cm que, de passagem, abor­dava m( questões de arte e de literatura foram por muito tempo consideradas destituídas de maiores implicações filosóficas. Franz Mehring, por exemplo, interpretava a controvérsia que opôs epistolarmente Marx e Engels, de utn lado, e Lassalle, de outro, na discussão da tragédia Sickingcn de Lassalle, como resultante da mera diversidade de "gôsto pessoal" dêles. (Lukács já se encarregou de demonstrar que naquela con­trovérsia se manifestavam divergências profundas de cisão do mundo dos debatedores.) L

A elaboração conceituai, filosófica, da estética marxista era um trabalho cujas dificuldades ficavam ainda mais agra­vadas em decorrência de não se ter, em geral, avaliado corre­tamente o caráter nôuo da concepção marxista do mundo. A novidade da contribuição marxista foi, durante muito tempo, subestimada; e mesmo os melhores seguidores de Marx foram vítimas desta subestimação. Ainda hoje, não é raro encon­trar marxistas que pagam tributo a semelhante equívoco. Como0 marxismo tinha raízes em algumas concepções do passado (e é óbvio que tôda filosofia a's tem), o estudo dos discípu­los de Marx e Engels se desenvolveu muito mais no sentido de pôr a nu as afinidades da nova concepção com as que a precederam do que no sentido de definir aquilo que a opunha a elas. O marxismo era o herdeiro do conteúdo social pro­gressista do velho materialismo? Pois logo se procura esta­belecer uma revitalização das concepções dos ancestrais ma­terialistas de Marx e de Engels, adaptando-as superficialmen­te aos novos tempos. . . Como observa Gramsci, o materialis­mo histórico de Marx e Engels foi apresentado como sendo uma nova versão do materialismo tradicional, apenas um tan­to com pletado e corrigido pela dialética, como se a dialética não implicasse em tôda uma nova teoria do conhecimento.2 A nocividade dessa timidez dos mais fiéis entre os discípulos

1 11 Marxismo e la Critica Letteraria, ed. Einaudi, 1953, trad. Cesare Cases, ,págs. 56 e segs.2 II Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, Gramsci, ed. Einaudi, pág. 151.

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de Marx consiste cm <jttc cia, li.songenndo a inércia dos há­bitos culturais, contribuiu para que alguns dos avanços mais fiotÁvrÍM da filosofia marxista não fôssem corretamente apre­ciados,

“Usualmente — escreveu Gramsci — quando uma nova concepção do mundo sucede a uma precedente, a linguagem precedente continua a ser usada, mas passa a ser usada me­taforicamente”.1 Foi exatamente o que se deu com o marxis­mo. A despeito de tôda a sua extraordinária inventiva, Marx e Engels tiveram de recorrer a conceitos algo contaminados por séculos de emprego metafísico e serviram-se dêles, em alguns casos, metaforicamente. Pois bem: as “metáforas” de Marx foram tomadas excessivamente ao pé da letra e não houve, desde logo, um efetivo reconhecimento de tudo o que0 seu método dialético acarretava de nôvo em matéria filo­sófica. A metáfora de Marx segundo a qual a economia é a espinha dorsal da sociedade, por exemplo, chegou a ser uti­lizada de maneira a fazer com que alguns marxistas pudessem explicar contra Marx — as relações entre a vida política e cultural, de um lado, e a atividade econôihica, de outro, nos têrmos em que um biologista explicaria as relações entre a estrutura óssea do orgànismo e o tecido conjuntivo.

Uma vez que a elaboração filosófica geral da concepção marxista deixava muito a desejar, não é surpreendente que a elaboração conceituai particular da estética marxista fôsse bastante problemática. Mas ainda há mais: o desenvolvimen­to teórico da concepção filosófica geral do marxismo veio a manifestar, de modo geral, certa tendência para subestimar a estética e o estudo dos problemas da teoria marxista da arte. Por mal compreendida em alguns de seus aspectos essenciais, a concepção marxista do mundo pareceu, aos olhos de seus defensores, prescindir de uma teoria estética mais elaborada. Certos teóricos marxistas parecem ter chegado a crer, real­mente, na irrelevância da estética, na sua básica estreiteza de significação. Antonio Labriola escreveu a Benedetto Croce uma carta compungida quando soube que êste último estava escrevendo um livro sôbre estética. A estética foi tratada como um subúrbio atrasado que o núcleo urbano tende a fazer

1 Op. cit., p . 146.

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desaparecer, absorvendo-o e transmudando-lhe a fisionomia, em seu crescimento industrial.

Ainda hoje, a tendência para menoscabar a importância do fato estético e encarar a arte ein têrmos estreitos se mani­festa em autores marxistas, ou influenciados pelo marxismo. Procuramos mostrar, num trabalho com o qual visamos con­tribuir para um estudo do conceito marxista de alienação,1 que uma compreensão deficiente da teoria da alienação tem prejudicado as formulações de diversos autores que se recla­mam do marxismo em suas considerações estéticas. Afirma­mos, no referido trabalho, que o escritor grego (radicado na França) Kostas Axelos, por exemplo, tende a reduzir o co­nhecimento artístico a uma espécie de subproduto do fen ô ­meno histórico d e alienação. Como, com a divisão social do trabalho, a atividade criadora do homem levou-o a produzir bens e valores nos quais êle não se reconhecia — e como, por outro lado, a própria atividade humana de criação artística vem, ao longo da história da humanidade, pagando tributo a esta alienação do homem — Kostas Axelos concluiu que a arte era uma atividade essencialmente comprometida com a alienação e destinada a desaparecer como tal quando a alie­nação fôsse historicamente superada. Com a superação da alienação, segundo Axelos, “a vida absorverá a arte” e a arte “perderá a sua essência em proveito da técnica".2

Outra versão da tese fundamental esposada por Axelos é a de que a chamada revolução industrial provoca uma tal modificação na natureza da arte que a arte, como fenômeno social, tende a mudar completamente de função, substituin- do-se a função gnoseológica “limitada” que tinha enquanto se destinava a um público de elite por uma função utilitária, pragmática, que passa a ter na ampla produção industrial destinada às massas. De acordo com semelhante concepção, as chamadas “artes práticas” tendem, hoje, a tomar o lugar da Arte (com maiúscula), isto é, tendem a ocupar o vazio deixado pela arte de tipo tradicional, que corresponde cada vez menos a uma necessidade social.

i Marxismo e Alienação, Leandro Konder, ed. Civilização Brasileira S /A , pág. 131.a Marx penseur de la technique, Ed. de Minuit, Paris, pág. 176.

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l i l l amboB ns casos — quer dizer, tanto na teoria da flbiQtçiO dn nrle pela vida como na teoria da vitória das chamada* "arU-s práticas” sôbre a arte de tipo tradicional — dejinfflmti nos com uma subestimação fundamental da função j|iio*eidfn|ica desta forma particular da praxis humana a que damos o nome de arfe. Em certo sentido, semelhante con­cepção postula um retorno da arte à sua origem histórica, a seu estágio mais primitivo de desenvolvimento, quando a de­signação arfe abrangia, vaga e genèricamente, os diversos ofí­cios e atividades dos artesãos, desde a poesia, a pintura e a música até a tecelagem, o bordado e a edificação de constru­ções. Como notou Bernard Bosanquet, isso ainda ocorria no tempo de Platão.1 Trata-se, pois, de uma volta à época platônica ou pré-platônica.

Em geral, contudo, a subestimação da função gnoseo- lógica da arte assume outra forma nos autores marxistas ou influenciados pelo marxismo. Em geral, tais autores reconhe­cem na arte .— ou, se quiserem, na arte d e tipo tradicional — um modo válido de conhecer a realidade. Mas tal reconheci­mento permanece abstrato. Por comodidade política, ou por preguiça mental, quando não por ilusão de boa-fé (provoca­da pela infiltração do determinismo fatalista e da simplifica­ção positivista no marxismo), os autores marxistas parece­ram ter esquecido, em numerosos casos, a básica irredutibili- d ad e d o real ao saber, postulada pela teoria marxista do co­nhecimento; e passaram a encarar, na prática, os avanços da historiografia, da economia, da sociologia e da ciência política do marxismo como se tais avanços lhes trouxessem, de forma definitiva, nada mais nada menos do que a própria essência do real. E , uma vez que a essência do real já lhes estava completamente desvendada pelos historiadores, economistas, sociólogos e dirigentes políticos representativos do marxismo, era natural que os filósofos marxistas — embora reconhecen­do uma função gnoseológica à arte — fôssem levados a en­cará-la como se, de fato, ela nada (ou bem pouco) tivesse a dizer-lhes.

A subestimação da função gnoseológica da arte, por conseguinte, abrange desde a negação implícita ou explícita

1 Ilistorm de la Estética, Bosanquet, trad. José Rovira Armengol, Edi­torial Nova, B . Aires, pág. 51.

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da sua importância como modo específico de conhecer o real nté o reconhecimento meramente abstrato de tal importância.

No entanto, ainda que deixássemos de lado semelhante subestimação em seus variados aspectos e considerássemos, em princípio, solidamente estabelecido para a estética mar­xista o reconhecimento do valor qnnseológico da arte, tería- raos de enfrentar importantes e complexos problemas, cujo correto encaminhamento é uma condição imprescindível para nos alçarmos a posições que nos abram os mais amplos ho­rizontes teóricos.

A posição hoje dominante na estética marxista admite francamente que arte constitua um "reflexo" ou uma imagem aproximativamente fiel da realidade, um desvendamento da realidade em seus niveis mais essenciais; torna-se pacífico, assim, que a estética marxista é mesmo uma parte integrante da teoria marxista do conhecimento . Por outro lado, pràtica- mente todos os marxistas concordam em uma coisa: em que a história da arte é uma face da história geral da humanidade e tem a sua autonomia relativa limitada pelo sentido geral desta última. Desta maneira, para os marxistas, a história da arte deverá ser estudada a partir das categorias e dos métodos do materialismo histórico, isto é, da concepção mar­xista da história (o que não significa, evidentemente, em hi­pótese alguma, procurar enquadrar de modo apriorístico ou csquemático os fatos artísticos em m odelos teóricos).

Mas, mesmo no interior da unidade constituída por tal concordância, não é possível impedir que as divergências en­tre os críticos marxistas surjam e se aprofundem, em alguns casos. A arte é <— dizem êles, quase uníssono <— uma ima­gem aproximativamente fiel da realidade e deve procurar re- jlctir o real em sua essência. Como, porém, deve fazê-lo? O que é que caracteriza a fidelidade aproximativa? E o que c que distingue a essência do fenômeno? O que é que dis­tingue, na imagem do real que a arte deve nos proporcionar, n realidade mais profunda da realidade mais superficial?

De mais a mais, como deveremos distinguir, na história da arte,, o conhecimento artístico válido da informação histo- riográfica ou cientifica? Como distinguir o valor gnoseoló- gico-artístico do valor meramente documental? O que é que

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deve ser considerado específico no conhecimento proporcio­nado pela arte? O que é que legitima o autêntico conhecimen­to artístico?

Pode-se sempre tentar responder a esta última pergunta dizendo que o conhecimento artístico é legitimado pela influên­cia prática que alcança na vida cultural dos povos e da qual a história da arte dá testemunho. A história da arte indica, com efeito, obras de arte cuja influência se revelou profunda e duradoura. E a influência profunda e duradoura de uma obra de arte não pode deixar cie ser reconhecida como evi­dência prática de seu valor estético, não pode deixar de ser reconhecida como prova de que o conhecimento artístico por ela proporcionado é de inegável validade cultural. Mas, aten­ção para a tautologia! Não podemos nos limitar a explicar que a influência profunda e duradoura de uma obra de arte é que evidencia o seu valor como legítimo conhecimento ar­tístico e que o valor de uma obra de arte como legítimo co­nhecimento artístico se evidencia na sua influência profunda e duradoura.. . l

A profundidade da influência cultural de uma obra de arte é, ela própria, um dado de avaliação altamente proble­mática, de vez que a intensidade momentânea da sua reper­cussão pode nos iludir e nos fazer aceitar como profundo aquilo que, embora barulhento, é apenas episódico. E, além disso, não podemos esperar que uma obra de arte mostre possuir uma influência comprovadamente duradoura, pois não podemos transferir para o futuro uma avaliação que nos com­pete tentar fazer no presente. A dificuldade para a crítica de arte (e para a teorização estética que ela exige) não reside tanto na avaliação das obras de arte já consagradas pela longa vida como na avaliação da produção artística recente ou contemporânea, avaliação cujo empreendimento lhe cabe fazer como tarefa inescamoteável.

Também não tem sentido dizer que a correta avaliação das obras de arte do passado ou do presente, a justa formu­lação da problemática da arte, em geral, bem como a teori­zação estética adequada a propósito da criação artística, quan­do postas em face das exigências fundamentais que se acham colocadas para as forças revolucionárias na época atual, não passem de tarefas insignificantes, desprezíveis, acêrca das quais se travem apenas discussões bizantinas. Do próprio pon-

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to de vista estritamente politico, tal afirmação seria tremen- damente equivocada. É bom não esquecer que as forças polí­ticas mais profundamente empenhadas na transformação re­volucionária do nosso mundo possuem uma política cultural. E como poderiam elas desenvolver esta política cultural de maneira a mobilizar mais eficientemcntc os artistas em pro­veito da revolução se não levarem cm conta os problemas da­quilo que é específico no trabalho dos artistas, isto é, a arte? Como poderiam se entender com os artistas, no caso de lhes fazerem sentir que aquilo que constitui a razão de ser da ati­vidade dêles nada significa para elas e que elas só se inte­ressam pela utilidade política imediata da obra de arte, ainda que tai utilidade derive de circunstncias inteiramente extra- artísticas?

Afirmar que a crítica especificamente estética pode pres­tar serviços à própria análise política não é heresia alguma, do ponto de vista marxista. Dois grandes teóricos marxis­tas, pelo menos, podem ser invocados para a sustentação dessa lese: Gramsci e Lukács. Gramsci observa que, quando o ar­tista, ao invés de obedecer com sinceridade a um comando interior, dispõe-se a exprimir artificiosamente um determina­do conteúdo que nêle é matéria surda e rebelde, forcejando por fazê-lo com entusiasmo fictício e querido exteriormente, t natural que fracasse, pois não estará agindo como artista criador e sim como criado que quer agradar ao patrão. E — acrescenta Gramsci — o fracasso artístico pode servir ao crí- I ico político para mostrar-lhe que o artista é, no caso, um comediante da política, alguém que está procurando se fazer passar por aquilo que não é, quer dizer: um oportunista.1

Lukács, por sua vez, serviu-se êle próprio em algumas ocasiões de suas observações estéticas para tirar conclusões que implicavam em conseqüências ideológicas e políticas. Assim, quando John dos Passos estava em moda e assumia, pessoalmente, posições “de esquerda”, seu estilo e suas con­cepções estéticas mereciam o aplauso de certos setores da intelectualidade revolucionária; mas Lukács, em polêmica epis- tolnr com sua amiga Ana Seghers, já apontava a orientação ideológica subjacente à obra de John dos Passos, pondo-lhe n nu o conteúdo mistificador que, com os anos, viria a se

• Letteratura e Vita Nazionale, ed. Einaudi, pág. 12.

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tornar óbvio para todo mundo.1 Da mesma forma, quando, nos anos que precederam a tempestade hitlerista, e em opo­sição à literatura francamente reacionária, veio a se desen­volver na Alemanha uma literatura revolucionária, manifes­tando uma resoluta e corajosa tomada de posição política e moral, Lukács não perdeu de vista as implicações negativas do baixo nível estético daquela literatura; e compreendeu que à aridez estética correspondia, no caso, uma deficiência de pêso na verdade do conteúdo. Convencidos da inevitabilidade de ,uma revolução iminente, que estaria para se operar no interior da sociedade capitalista (conforme a perspectiva lu- xemburguista), os escritores revolucionários não reproduziam em suas obras a situação real das lutas de classes na Ale­manha e na Europa, não reconheciam a complexidade do qua­dro de tais lutas, deformavam-no de acôrdo com seus anseios políticos imediatos.- O exame da qualidade estética da lite­ratura revolucionária de então serviu a Lukács, por conse­guinte, para que êle avaliasse melhor os efeitos nefastos do fatalism o luxemburguista e do voluntarisjno superficial cujo desenvolvimento na mentalidade dos militantes comunistas a concepção de Rosa de Luxemburgo ensejara.

Contudo, ainda que fizéssemos abstração da utilidade política imediata que-pode ter a observação dos fenômenos e problemas especificamente estéticos, disporíamos de motivos inexcedivelmente poderosos para dedicarmos atenção à esté­tica e à arte. E o principal dêsses motivos é, sem dúvida,0 motivo do humanismo.

Admitido o valor cognoscitivo da arte, seremos força­dos a concluir que a arte proporciona um conhecimento par- ticular que não p od e ser suprido por conhecimentos propor- cionados por outros m odos diversos d e apreensão d o real. Se renunciamos ao conhecimento que a arte — e somente a arte — pode nos proporcionar, mutilamos a nossa compreen­são da realidade. E, como a realidade de cuja essência a arte nos dá a imagem é bàsicamente a realidade humana, isto é, a nossa realidade mais imediata, a renúncia ao desenvolvi­mento do conhecimento artístico (e, por conseguinte, a re-

1 II Marxismo e la Crítica Letteraria, ed. c it., pág. 388 a 427.2 Brève Histoire de la Littérature AUemande, trad. Lucien Goldmann e Michel Butor, ed. Nagel, págs. 237-238.

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milícia ao desenvolvimento do estudo das questões estéticas) acarretam a perda d e uma dimensão essencial na nossa auto- consciência.

Embora pagando tributo à alienação geral das socieda­des divididas em classes, o trabalho de criação artística tem conseguido preservar, ao longo da história da humanidade, dentro de certos limites, as carnctcristicas de criatividade que são inerentes à genuína praxis do homem. Na criação artísti­ca bem sucedida, o marxista I í en ri Lcfebvre enxergou aquele “trabalho liberto de tôda coerção exterior, verdadeira prefi- guração do reino da liberdade",1 Talvez por ser menos dire­tamente útil à produção social de riquezas materiais, a ativi­dade humana de criação artística pôde resguardar uma espon­taneidade que outras espécies de atividade humana tiveram de sacrificar,., sob a pressão deformadora das instituições ligadas à propriedade privada.2 Mal compreendido, o caráter livre da criação artística serviu para que alguns autores erigissem sôbre êle uma autêntica religião da arte, absolutizando e fetichizan- do a liberdade criadora do artista. E esta fetichização da li­berdade criadora do artista, assumindo foros de religião da arte, passou a servir a uma perspectiva ideológica reacioná­ria — a do esteticismo — segundo a qual os valores fetichi- zados da beleza ficavam colocados acima dos valores humanos.

No combate a êste engodo ideológico, entretanto, os mar­xistas muitas vezes se deixaram envolver por seus adversá­rios e acabaram sacrificando a riqueza da verdade estética à firmeza da posição política. Ao invés do combate à mistifica­ção do esteticismo ser realizado pelos marxistas também em nome da arte, êle foi realizado em nome exclusivamente da política e, especialmente, em nome das exigências mais ime­diatas da ação política revolucionária.

O resultado a que chegaram os marxistas foi o de um empobrecimento, o de uma autolimitação do marxismo, que ficou privado de uma teoria estética convenientemente desen­volvida. Trata-se de uma situação fácil de constatar, porque ela se reflete em afirmações autocríticas que estão nas obras

i Critique de la Vie Quotidienne, ed. L ’Arche, vol. 1, pág. 187.* Ainda uma vez, reportamo-nos ao nosso trabalho Marxismo e Alie­nação.

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de numersos escritores contemporâneos de orientação marxis­ta . A título de exemplo, podemos lembrar dois dêles: o ita­liano Galvano Delia Volpe e o polonês Jan Kott. Escreve Delia Volpe: “Quem quiser medir o avanço da consciência estética marxista atual, na Itália e fora dela, deverá impar­cialmente concluir que essa consciência sc acha ainda em la­boriosa investigação e se acha ainda longe de uma sistema- tização verdadeira e própria”.1 E escreve Jan Kott: “O mar­xismo é uma concepção científica do mundo; é a generaliza­ção filosófica mais avançada das leis do desenvolvimento so­cial. Daí nós concluímos que a estética marxista, porque ba­seada no materialismo histórico c no materialismo dialético, é a mais amadurecida de tôdas as estéticas existentes. Que ela o é — e não que ela pode vir a sê-lo. Nós tínhamos ten­dência para esquecer que a estética é uma ciência e que em nenhuma ciência a justeza das premissas filosóficas preesta- belece o desenvolvimento automático”.2

Estamos, realmente, longe de podermos nos orgulhar da situação a que chegamos na elaboração teórica da estética do marxismo. 1

Uma das conseqüências da nossa visão autocrítica, en­tretanto, uma das conseqüências da consciência que temos da precariedade dos nossos esquemas e do caráter provisório das nossas atuais formulações no que concerne aos problemas es­téticos — e dada a perspectiva radicalmente historicista do marxismo — há de ser o reconhecimento da necessidade de procedermos a um exame crítico (por sumário e parcial que seja) da experiência histórica da teorização estética que se fêz em nome do marxismo.

Lidando com o material de idéias que os marxistas vêm elaborando e refundindo, cunhando e difundindo, desde Marx e Engels até os nossos dias, sem dúvida encontraremos ali­mento para a nossa reflexão, conceitos que nos servirão de ponte para outros conceitos, teses que podemos repelir mas

1 II Verosimile Filmico ed altri scriítl di Estética, Roma, ed. Filmcri- tica. Depois de ter escrito isso, em 1954, Delia Volpe parece ter mu­dado de opinião: em 1960, em sua Crítica dei Gusto, êle empreende a “exposição sistemática de uma Estética materialista histórica” e crê ter superado a situação de 1954. Mas equivoca-se, conforme veremos.2 Artigo “Mythologie et Verité”, publicado em Les Temps Modernes, n.° de feverciro-março de 1957.

12 V

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que, ainda assim, nos servirão para forjarmos as nossas na negação delas.

A crítica que os marxistas se fizeram uns dos outros, por outro lado, apontando suas respectivas deficiências, também nos poderá ser extremamente útil, proporcionando-nos uma visão de alguns dos erros a serem evitados. Os próprios erros nos poderão ajudar, se chegarmos n superá-los criticamente e, no caso dos erros mais necessárias (no sentido hegeliano), sc pudermos integrá-los à nossa perspectiva como momentos ultrapassados porém conservados em nível superior.

O ideal, para nós, seria um estudo histórlco-crítico que se organizasse e se desenvolvesse como uma autêntica histó­ria da estética marxista, uma história que proporcionasse uma visão de como a estética marxista se desenvolveu, por um lado, em, resposta às solicitações práticas decorrentes do qua­dro histórico circunstancial em que a trabalhavam seus teó­ricos, em polêmica contra os representantes ideológicos de posições não marxistas e até antimarxistas; e, por outro lado, como ela se desenvolveu a partir das exigências internas do seu próprio movimento, a partir das suas próprias contradi­ções. Um estudo dêsse tipo nos permitiría compreender as posições teóricas equivocadas mas significativas como etapas pelas quais a elaboração teórica da estética marxista teve de passar.

Semelhante história da estética marxista, entretanto, dado o atraso mesmo em que se acha a elaboração teórica madura da estética marxista, permanece, por enquanto, um trabalho inexeqüivel.

N a atual fase dos estudos da estética marxista, os tra­balhos histórico-criticos devem se saber antecipadamente frag­mentários, devem aceitar prèviamente as limitações que não conseguirão superar. No caso do estudo ora publicado, con­tudo, há ainda outras razões para que êle se conforme com n modéstia de suas pretensões possíveis e para que êle se apresente como um estudo histórico-crítico de apenas algumas tendências da estética marxista: além das deficiências pessoais do autor, êle se ressente das deficiências decorrentes da mul­tiplicidade' de obstáculos pràticamente insuperáveis que se içcham colocados no caminho de um pesquisador de um país subdesenvolvido. A pobreza de fontes bibliográficas acessí­veis, a escassez de material informativo disponível, a ausên-

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iln iíõ liiiiiiil d» um ilh tm c a p a z cie co m p o rta r umn d iscu ssão o b je tiv a e am p la d a s p o siçõ e s m a rx is ta s , m ula d isso fu n ciona, tv iiliiite iiie n te , co m o estím ulo .

Apesar das limitações que reconhecemos e proclamamos em nosso estudo, animamo-nos a publicá-lo, na convicção dc que: I ) ele pode contribuir para o avanço dos estudos esté­ticos de orientação marxista no Brasil; 2) êle divulga idéias que são bem pouco conhecidas entre nós; 3) êle mostra que n estética marxista tem comportado pontos de vista contradi­tórios, colidentes, e ajuda a tornar claro que os problemas com que a estética marxista se tem defrontado são complicados e se prestam mal a esquematismos sectários e a simplificações imediatistas; 4) as posições cujas características êle divulga não são estranhas às discussões que, de alguns anos para cá, vêm sendo travadas por intelectuais e estudantes brasileiros, de modo que êle se liga à realidade cultural brasileira; 5) êle pode contribuir para elevar o nível teórico das discussões re­lativas à estética marxista e à abordagem marxista das ques­tões da arte e da literatura, ajudando a dissipar numerosos equívocos e ajudando a combater numeroso^ e pertinazes pre­conceitos.

Só o publicamos, porém, fazendo encerrar esta introdu­ção com o apêlo endereçado aos pósteros por Beltolt Brecht:

Vós, que vireis na crista da onda Em que nos afogam os,Quando falardes em nossas fraquezas, Pensai também no tempo sombrio A que haveis escapado.

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Raízes Hegelianas

-A . influência da filosofia de Hegel sôbre o marxis­mo é admitida neste livro como ponto pacífico. Entendemos que, mesmo os marxistas que — como Louis Althusser, na França, e Galvano Delia Volpe, na Itália — combatem a in­fluência de Hegel sôbre o desenvolvimento histórico do mar­xismo, mesmo os marxistas anti-hegelianos, ao combaterem- na, reconhecem essa influência. A filosofia de Hegel é um marco decisivo na abertura d o pensamento para a história, no esforço para promover uma fluidificação dos conceitos a que recorremos para pensar o mundo. A tradição especula­tiva metafísica na história da filosofia engendrara uma espé­cie de congelamento dos conceitos utilizados pelo intelecto humano, criando a representação ilusória de um mundo está­tico. Hegel, rompendo com semelhante tradição, discerniu no

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movimento a realidade-base e concebeu o real com o um pro­cesso.

Com Hegel, aprendemos que não há nada fora do mo­vimento infinito através do qual as coisas existem. Aprende­mos, também, que a contradição não é a mera conseqüência de uma imperfeição acidental, como supunham os metafísicos, extrapolando os princípios da lógica formal: é o fundamento essencial de todo o movimento. A realidade nos aparece como essencialmente dinâmica e contraditória, por conseguinte.

A realidade que serve a Hegel de ponto de partida para a elaboração do seu sistema filosófico e especialmente do seu método dialético não é a realidade da natureza e sim a rea­lidade da história e da sociedade humanas. Para Hegel, o homem é o agente de uma fase final do retorno d e D eus a si m esm o. Num primeiro momento, a rigorosa regularidade da natureza em que Deus (a Idéia Absoluta) se alienara é quebrada pelo aparecim ento da vida. Num segundo momen­to, ocorre o desenvolvimento de uma forma superior de vida, que é o aparecim ento d a anim alidade. O terceiro e último período do retorno é o que se caracteriza pela autocriação do hom em , concebido o homem como o ser que porta em si o porvir do Espírito.

O homem, segundo Hegel, é aquilo que êle se faz por sua atividade. Êle se produz exatamente por esta atividade que lhe é característica e não existe senão se produzindo contl- nuamente a si mesmo. O homem, portanto, jamais é imedia­to, jamais existe como um dado, como um ser definitivamente acabado e passível de ser encerrado de uma vez por tôdas em uma fórmula.

No processo de assenhoreamento do mundo pelo homem, aliás, o homem é levado a compreender que as coisas não existem isoladamente, não são independentes umas das outras; é levado a compreender que as relações entre as coisas não são exteriores à essência delas.

Um determinado ser individual nunca é indiferente ao seu passado, à história da sua formação. E a formação histó­rica de cada ser o entrosa com outros sêres individuais e com complexos de sêres individuais. A situação de uma coisa in­tegra sempre a essência dela: as coisas não existem soltas no espaço e no tempo. Compreender algo implica em com-

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prcender o seu movimento, o seu quadro circunstancial par­ticular; implica em apreender-lhe as leis a partir das leis do todo em que se insere.

O método dialético hegeliano é o ponto de partida para ' uma correta compreensão do que se passa com os indivíduos

no todo da vida social. Para compreender a ação dos indiví­duos, precisamos ter uma visão do conjunto das relações so­ciais, do quadro em face do qual a ação se define. A ver­dade é atingida em graus diversos c em seus graus mais pro­fundos ela só é alcançada a pari ir do todo: o processo em que a verdade se realiza é um processo de totalização.

A percepção empírica dos objetos singulares não nos dá, desde logo, a efetiva verdade dêles. Para chegarmos dc fato a conhecê-los, para chegarmos a conhecer as conexões exis­tentes entre êles e para os situarmos no quadro da história geral da humanidade (em função da qual os avaliamos), pre­cisamos superar a percepção empírica, a consciência imedia­ta ou pré-reflexiva. Precisamos, pois, realizar as operações de abstração que caracterizam o pensamento. Semelhante abstração não nos afastará inevitàvelmente do concreto. Se soubermos pensar, a abstração do conceito nos levará à apre­ensão das conexões e mediações do processo que desejamos compreender e fará com que cheguemos a uma compreensão ntíiito mais concreta do que a da percepção empírica. Com Hegel, aliás, o próprio têrmo concreto assume a significação particular de síntese de múltiplas determinações, distinguin- do-se do abstrato, que é precisamente o imediato.

Hegel insiste na necessidade do conhecimento superar a pobreza da imediaticidade, a pobreza da intuição e da re­velação. A revelação imediata, apresentada como sucedâneo da pesquisa filosófica, funciona como a chicórea na qualida­de de sucedâneo do café.1 O conhecimento precisa exigir de si mesmo um trabalho infinito de investigação de seus pressu­postos e.de seus limites, precisa estabelecer e restabelecer a cada passo as conexões e mediações do conhecido, sem se deixar encerrar jamais em fórmulas estáticas, esclerosadas. A dinamicidade inerente ao conhecimento exige a exclusão do

1 Phénomenologie de VEsprit, ed. Aubier, trad. Hyppolite, pág. 58.

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autocomprazimento dogmático: “na facilidade com que o es­pírito se satisfaz, pode-se medir a extensão da sua perda”.1

As mediações que o conhecimento procura estabelecer são as mediações que decorrem do caráter histórico de todas as coisas. “Compreender um objeto — explica Hegel — não é outra coisa senão pô-lo em forma de condicionado e me- diato”.2 E, a seguir, êle exemplifica: "Que eu esteja em Ber­lim, esta minha presença imediata neste lugar é mediatizada pela viagem que fiz para vir para cá, etc.”

Em outros trabalhos hegelianos, a mesma observação vol­ta a ser formulada: "Desde que alguma coisa seja verdadeira nela se encontrará a mediação",n "Não há mufn no céu, na natureza, no espírito, ou onde quer que seja, que não conte­nha ao mesmo tempo a imediação e a mediação",* O papel atribuído por Hegel à mediação é lal que levou Jean llyppoli- te a escrever:: “a filosofia dc Hegel é uma filosofia da me­diação”.5

A importância dêste enfático respeito ao caráter media- tizado de tôda e qualquer realidade ê grande p^ra o marxis­mo. Se nem sempre ela foi reconhecida na prática pelos mar­xistas, isso ocorreu, entre outras razões, precisamente por fôrça das limitações sofridas pelo marxismo em seu desenvol­vimento e por fôrça de uma subestimação das lições hegelia- nas, conforme teremos ocasião de observar no corpo do pre­sente livro.

Mas a importância da filosofia de Hegel para o marxis­mo não é apenas a importância de aspectos da ontologia, do método, da gnoseologia e do sistema hegeliano em geral; é também a importância particular da estética de Hegel. A estética marxista tem algo a aprender com a filosofia de Hegel em geral; e tem algo a aprender com a estética de Hegel, em particular. Quando Engels, no final da sua vida, aconselhou Conrad Schmidt a estudar a obra de' Hegel, sugeriu-lhe que

1 Idem, ibidem, pág. 11.2 Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Athena Editora, trad. Lívio Xavier, l .° vo l., pág. 80.2 Leçons sur VHistoire de la Philosophie, ed. Gallimard, trad. Gibe- lin, pág. 100.* Ciência de la Lógica, ed. Libreria Hachette, trad. Rodolfo y Au­gusta Mondolfo, l .° vo l., pág. 88 .0 Logique et Existence, ed. Presses Universitaires de France, pág. 44.

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começasse pela Lógica. Mas acrescentou: “Para entreter-se, aconselho-lhe a E stética. Quando você tiver penetrado um pouco nela, ficará assombrado.”

Devidamente apreciados, certos aspectos da estética he- geliana teriam poupado a alguns teóricos marxistas certas deficiências que vieram a se manifestar no trabalho dêles.

r De início, não podemos deixar dc lembrar a resoluta rejeição do irracionalismo. Última expressão filosófica de pri­meira grandeza da perspectiva da burguesia em ascensão, Hegel acredita firmemente na razão c na história, acredita na cognoscibilidade do real e na eficácia do pensamento con­ceituai. A idéia de que o fenômeno artístico está fadado a permanecer para sempre indevassável à compreensão cientí­fica é vigorosamente repelida por êle. A superior realidade daquilo que é em si e para si, isto é, a realidade a que o homem tem acesso em seu processo de espiritualização <— a realidade do espírito <— é uma só: o fato de que a sua manifes­tação na arte seja sensível não quer dizer que a arte estabe­leça uma impenetrabilidade ao conceito. O espírito se revê nas criações da arte e as suas representações sensíveis não são senão a sua exteriorização.

Além disso, Hegel também ajuda a desfazer a confusão criada em tôrno do conceito de aparência. A arte é, sem dú­vida, o reino das formas e, por conseguinte, o reino da apa­rência e da "ilusão” . Mas a aparência, afinal, constitui um momento necessário da essência, pois, para não permanecer na pura abstração, a essência precisa aparecer.

Os objetos naturais que percebemos ao acaso, de maneira imediata, na nossa experiência cotidiana, passam comumente por constituírem a “realidade” do mundo exterior. No en­tanto, o que usualmente percebemos de tais objetos é apenas o lado individual dêles: por não lhes discernirmos as cone­xões necessárias e por não os enxergarmos em função do todo que integram, só temos dêles a imagem mais precária e mais superficial. E, comparada com a aparência enganosa dêsse mundo exterior de objetos percebidos de maneira imediata, comparada com a percepção cotidiana submetida à arbitrarie­dade das situações e dos acontecimentos, a aparência da arte, revelando-nos a substância do espírito, abre-nos a compreen­são para uma realidade mais profunda, mais essencial e mais verdadeira.

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A estética hegeliana tem, igualmente, a importância de estabelecer de maneira sistemática a interação existente entre0 conteúdo e a forma, dando um passo decisivo no sentido de evitar que a forma e o conteúdo na arte,/encarados como entidades indeperfdentes, se transformem em abstrações enga­nadoras. Para Hegel, a forma está determinada pelo conteú­do a que convém e os problenías da forma, em última instân­cia, implicam sempre em problemas de conteúdo. Historici- zando as categorias de forma e conteúdo, a estética de Hegel as apresenta como momentos diferentes e necessários da cria­ção artística mas fá-las participar de um processo unitário no qual há uma prioridade essencial do conteúdo.

É o conteúdo histórico de cada época que fornece o cri­tério adequado para julgar, em última instância, a justeza de colocação dos problemas mais gerais da forma artistica, isto é, a justeza de colocação dos problemas relativos aos gêneros artísticos. As formas dos gêneros artísticos não são arbitrá­rios: e não é por acaso que foi êste princípio da estética he­geliana que o marxista Georg Lukács tomou como ponto de partida de algumas de suas mais fecuncjás investigações teóri­cas. Lukács, aliás, dá uma ênfase tôda especial à formulação hegeliana, caracterizando-a como uma nítida superação de uma das limitações básicas da estética de Kant: "a estética hegeliana supera o idealismo subjetivo kantiano, ou seja, o falso dualismo existente nêle, segundo o qual o conteúdo <— que se pretende situado fora da estética e totalmente estranho às categorias estéticas —- vem contraposto à forma, concebida está sempre de modo abstrato e subjetivo, ainda quando apa­reça estèticamente caracterizada”.1

Outro aspecto importante, ainda, da teorização estética hegeliana consiste na crítica feita por Hegel a uma concepção demasiado estreita da mimesis aristotélica. Aristóteles desen­volveu a teoria da arte como imitação (mimesis) da natureza. Em sua forma vulgarizada, semelhante teoria tem servido de escora a um naturalismo que empobrece a arte. Os resulta­dos de uma imitação servilmente fiel de um objeto natural, observou Hegel, são e sempre serão inferiores aos que a na­tureza nos oferece. O servilismo imitativo condena a arte a

1 Contributi alia Storia deli’Estética, ed. Feltrinelli, trad. Emilio Picco, 1957, pág. 123.

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se colocar numa posição de inferioridade em relação â natu­reza, como a de um verme que se esforçasse por igualar a um elefante. No entanto, como forma particular de mani­festação do espírito e de realização humana, a arte deve se situar acima da natureza, pois o espiritual é superior ao na­tural. O que se sabe supera em dignidade o que se ignora, ensina Hegel. Saber mais é ser mais. E , neste ponto, a gno- seologia hegeliana se desdobra em uma axiologia ontológica de grande interesse para o marxismo.

Por outro lado, Hegel rejeita liminarmente as interpre­tações que apresentam a arte como um brinquedo inconse- qüente, um jôgo desprovido de maior significação, uma ati­vidade de entretenimento, um passatempo ornamental. Arte é coisa séria, é autoexteriorização e autoconscientização do homem. A consciência de si pode ser alcançada de duas ma­neiras: através da reflexão, no âmbito da interioridade, ou através da exteriorização, reconhecendo-se o espírito na re­presentação de si mesmo que se oferece. A arte correspon­de a êste segundo modo de aquisição da consciência de si pela humanidade. E é preciso não confundir a natureza es­pecífica da arte com o caráter de outras atividades do espí­rito, ainda que na prática a arte se ache freqüentemente muito ligada a estas outras atividades.

A arte pode, por exemplo, contribuir para Vadoucisse- ment d e la barbarie, pode contribuir para suavizar a grosse­ria primitiva dos homens, caracterizada pela indisciplina dos instintos e pelo império dos desejos imediatos. Objetivando seus sentimentos na arte, os homens conseguem, por vêzes, assumir em face dêles uma atitude mais serena, superando- lhes de certo modo a cega imediaticidade. A arte possui, assim, evidentes implicações morais.

Hegel não só admite tais implicações como reconhece — ao contrário de Jean-Jacques Rousseau — que a arte tem efetivamente contribuído para o aperfeiçoamento moral do ho­mem. Êle acha que, oferecendo o homem em espetáculo a si próprio, a arte tempera a rudeza das tendências e paixões humanas, cultiva no homem a disposição para a contenpla- ção e para a reflexão, eleva-lhe o pensamento e os sentimen­tos, liga-o a um alto ideal que ela mesma sugere. No entan­to, a arte não é uma serva da moral. O efeito moral que se lhe reconhece não deve ser apresentado como a finalidade

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que à expiica e lhe dá origem. A explicitação do conteúdo moral de uma obra de arte sacrifica-lhe comumente a rique­za e representa a imposição à arte de uma finalidade que lhe é estranha em sua essência. A arte — Hegel irísiste nisso — possui um fim particular que lhe é imanente, uma finalidade específica. c

Finalidade específica e caráter livre acham-se indissolú­velmente conexos na caracterização da arte por Hegel. E o caráter livre da criação artística deriva da sua origem espi­ritual, deriva do fato da arte ser uma manifestação particular do espírito. Hegel aceita, em principio, a dualidade kantiana do mundo dos desejos e dos instintos e do mundo do conhe­cimento racional e da liberdade. Admite, também, que a arte tenha a missão de conciliar a razão c a sensibilidade, as in­clinações naturais c o dever moral. Mas não concorda com a formulação kantiana em sua plenitude, pois dá ênfase ao fato de que a arte pertence ao mundo do espírito, de modo que nela o sensível se coloca em função do espírito e não o espírito em função do sensível. O sensível-é sempre indivi­dual — assevera Hegel — e o que eu sintb é meu; mas, para dizê-lo, tenho de recorrer à linguagem. E a linguagem (co­municação) exprime sempre o universal.

A teoria que funda a estética no “belo natural” encerra uma mistificação. As coisas naturais não existem para si mes­mas e por isso não são livres ( e, portanto, não podem ser ar­tisticamente belas) . A natureza figura no sistema hegeliano apenas como a negatividade com que se defronta o espírito finito no processo que o fará alcançar a forma de Espírito Absoluto ou infinito. A natureza não pode “fornecer à ra­zão uma expressão adequada de si própria”.1 A natureza ex­clui a liberdade; a liberdade é prerrogativa do espírito. A arte, sendo uma criação do espírito, não se confunde com o trabalho mecânico e exterior que nada cria e que pode se rea­lizar na conformidade a regras: a arte repele a regularidade mecânica e é a expressão da atividade de um ser que precisa­mente jamais se resigna a ser o que a natureza fêz dêle.

Com semelhante formulação, Hegel coloca no centro da sua investigação estética a realidade concreta e ativa do ho-

r. Genèse et Structure de la Phenomenologie de l’Esprit de Hegel, Jean Hyppolite, ed. Aubier-Montaigne, vol. 1, pág. 36 .

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mem como ser autocriador, como sujeito das suas experiências, em lugar de partir das categorias metafísicas ligadas à con­cepção exteriormente objetiva de uma natureza fetichizada, como fizeram os materialistas mecanicistas.

A importância de tal idéia dc I legei foi salientada pelo próprio Marx, na primeira das suas Teses sôbre Feuerbach, quando Marx escreveu que o caráter contemplativo do antigo materialismo não lhe possibilitara a apreensão da realidade como atividade humana scnsorinl, como prática, isto é, de modo subjetivo. Daí que o idealismo r— cspecialmente na pessoa de Hegel — tenha desenvolvido o lado ativo do co­nhecimento, embora não levando cm conta a atividade real humana, a atividade sensorial.

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2Marx e Engels

A dialética idealista de Hegel desenvolveu a compre­ensão do aspecto ativo do conhecimento humano. Para o mar­xismo, essa compreensão do conhecimento como uma atividade cio sujeito é muito importante. Os marxistas dão ênfase à idéia de que o conhecimento não é um dado, é um ato. O ato de conhecer transforma o conhecido e o sujeito que conhece.

Mas Hegel só desenvolveu abstratamente a compreen­são da atividade do sujeito no processo gnoseológico. Hegel não concebia o conhecimento como o processo real de apro­priação do mundo real por parte da consciência de sujeitos ffcnifc, O sujeito do conhecimento — na concepção idealista de Hegel — não é o homem concreto, com seu cérebro, com seu

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corpo, com suas vicissitudes, suas contingências, sua ativida­de prático-material: é uma consciência abstrata, fetichizada.

Hegel não enxergava na consciência humana senão o re­flexo de uma fantástica Idéia Absoluta: o Éspírito Univer­sal. Para Hegel, o homem só contava enquanto ser pensan­te. A história concreta da humanidade era transformada em mera ocasião para que a Idéia Absoluta se desdobrasse no tempo e se realizasse conforme um plano predeterminado. Marx rejeitou os esquemas idealistas de Hegel, pois enten­deu que o homem não se afirma no mundo de acordo com um plano píeestabelecido por qualquer razão transcendente. Marx também se afastou de Hegel em outro ponto, ao entender, igualmente, que o homem não se afirma no inundo unicamen­te como ser pensante, mas através de uma prnxis não só teó­rica como prático-scnsorial.

Hegel subordinou o seu esquema histórico a um esque­ma lógico aprioristico que implicava no aviltamento dos sen­tidos e dn materialidade em geral. No enfoque hegeliano, a arte aparece como a expressão de um eptágio já superado da consciência humana em seu caminho para a racionalidade absoluta. Depois do momento artístico — acima dêle — Hegel colocou o momento religioso e o momento filosófico. A arte não passaria, assim, dé uma preparação sensível para o conhecimento filosófico, quer dizer, para o conhecimento racional plenamente desenvolvido. Na história da humanida­de, a arte teve o seu momento da cultura grega pagã da an­tiguidade clássica: a religião teve o seu momento no auge da Idade Média; e a filosofia se impôs, através do idealismo ale­mão, como a fase superior do processo do conhecimento humano.

O materialismo marxista, promovendo uma reabilitação dos sentidos, promove também uma revalorização do conheci­mento artístico. Hegel não concebeu os sentidos em têrmos historicistas: para êle, os sentidos eram meios intrínseca e in- superàvelmente pobres para a aquisição de conhecimentos. Comparados com a razão, os sentidos careciam de desenvol­vimento humanizador no sistema hegeliano. Marx repeliu êste enfoque intelectualista. Na visão de Marx, como escre­ve Adolfo Sánchez Vázquez, ‘‘os sentidos são tão humanos como o pensamento e, como êle, nascem e se enriquecem na

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relação humana específica que se dá na humanização da na­tureza por meio do trabalho”.1

Os Manuscritos Econôm icos c F ilosóficos d e 1844 mar­cam, com grande nitidez, a rejeição do idealismo hegeliano por M arx. Nêles, encontra-se uma franca historicizaçâo dos sentidos humanos. E, precisamcnle na medida em que os sentidos se tornaram histórica mente mais humanos, a pers­pectiva marxista os dignifica : "fi evidente que o ôlho huma­no aprecia as coisas de maneira diferente do ôlho animal, do ôlho não-humano, assim como o ouvido humano as ouve di­versamente do ouvido animal, ft só quando o objeto se torna um objeto humano ou uma objotivução da humanidade que o homem não se perde n êle". A atividade sensorial criadora do homem como artista não forma apenas objetos para o su­jeito humano: forma, igualmente, um sujeito especial para os objetos. O objeto, escreveu Marx, “só faz sentido para um sentido adequado".

Marx exemplifica com a música: “o sentido musical do homem só é despertado pela música. A mais bela música nada significa para o ouvido não-musical, não é um objeto para êle, porque o meu objeto só pode ser a corroboração de uma fa­culdade minha”,

O objeto só existe para o sujeito na medida em que o su­jeito desenvolveu a faculdade necessária à apreensão do obje­to. O desenvolvimento da capacidade do homem de criar

> objetos através do trabalho, o desenvolvimento da capacidade do homem de plasmar o mundo objetivo à sua feição, se faz acompanhar de exigências no sentido de que se desenvolva, também, uma rica sensibilidade humana subjetiva.

Um dos aspectos essenciais da história da humanidade é o da humanização dos sentidos na formação do ser huma­no. “O desenvolvimento humano dos cinco sentidos é obra de tôda a história anterior. O sentido subserviente às necessi­dades grosseiras possui apenas uma significação limitada. Para um homem faminto, a forma humana do alimento não existe; só existe o seu caráter abstrato de alimento. Êle po­dería existir mesmo na mais tôsca das formas; e, nesse caso,

1 Ensaio “Ideas Estéticas en los Manuscritos Economico-Filosoficos de ' M arx”, publicado na revista Realidad, n.° de novembro-dezembro de

1963.

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não se podería dizer em que a atividade do homem ao se ali­mentar seria diferente da do animal. O homem premido pelas necessidades grosseiras e esmagado pelas preocupações ime­diatas é incapaz de apreciar mesmo o mais beld dos espetá­culos” . Nesta passágem — que colocamos como uma das duas epígrafes do nosso trabalho — a percepção sensorial é apresentada como uma faculdade que se desenvolve historica­mente e cujo desenvolvimento é um aspecto substancial da autoconstrução do homem, em geral. Nela estão expressa­mente formuladas e combinadas as duas diretrizes fundamen- teais do materialismo histórico: o maícriulismo e o histo- ricismo.

A praxis humana não é concebível sem n atividade dos sentidos. Mas os pontos de vista de Marx não acolhem, a partir desta constatação, qualquer lendêneia no sentido do endeusamento do sensível ou no sentido da [etichização dos sentimentos c. da percepção sensorial.

A praxis humana não é concebível sem a atividade dos existe a “pura” atividade do intelecto (implicada no sistema hegeliano), também não existe a “pura” percepção sensorial ou a “pura" intuição sensível (nos termos postulados pelos modernos filósofos irracionalistas).

A evolução da percepção sensorial e do modo de intuir dos homens não se fêz independentemente do desenvolvimen­to da razão pensante, não se fêz à margem do desenvolvi­mento das faculdades intelectuais especulativas e do raciocí­nio abstrato. Há, na praxis humana, a par do progresso técni­co, uma constante mise au point da atividade psíquica do ho­mem, um efetivo desenvolvimento da vida interior dos sêres humanos; um movimento anímico de que participam tanto a racionalização conceituai como os sentimentos, a afetividade e a percepção sensorial.

O desenvolvimento da faculdade de pensar por meio de conceitos não acarreta a atrofia da faculdade de sentir: o homem se humaniza tanto no raciocínio como na sensibilida­de. Pensando as coisas de maneira mais correta, o homem as compreende melhor e pode senti-las com maior profundi­dade. E, desenvolvendo a sua capacidade de senti-las con­creta e claramente, enriquecerá a sua reflexão a respeito delas.

O avanço da consciência teórica já alcançado em nossa época provocou, nos aspectos que mais interessam à nossa

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praxis, um enriquecimento da percepção sensível dos homens. "N a prática —- observa o Marx dos Manuscritos d e 1844 — os sentidos se tornaram teóricos". Desenvolvido o intelecto humano, o conhecimento artístico (que é, por natureza, sen­sível) pressupõe sentimentos vinculados n uma cada vez maior riqueza de idéias na consciência,

A perspectiva marxista leva, pois, à valorização da ri­queza de idéias na arte como um aspecto positivo do conhe­cimento artístico (c da sensibilidade artística) . De um ponto de vista marxista, não é admissível a contraposição mecânica de inteligência e sensibilidade no ser humano; primeiro, por­que as duas faculdades só têm significação concreta na uni­dade da consciência como forças propulsoras do dinamismo psíquico (não sendo a consciência uma realidade quantiíicá- vel, não podemos conceber suas faculdades como vasos co- municantes); depois porque elas cobrem áreas amplamente coincidentes na atividade psíquica. O homem mais inteligen­te tende a ser, globalmente, o mais sensível; e o mais bem dotado de sensibilidade tem maiores possibilidades para o de­senvolvimento da sua inteligência. Caso um marxista admi­tisse, por hipótese, a separação rígida entre a inteligência e a sensibilidade, entretanto, abrindo mão das reservas acima referidas, êle só poderia ser levado a concluir que, entre dois artistas sensíveis, o mais inteligente levaria fatalmente gran-

de vantagem. Como disse Marx a um comunista sentimental (W eitling): “A ignorância nunca foi útil a ninguém.” Na arte, como na filosofia, a pobreza de idéias constitui um pe­cado sem perdão.

Ocorre, contudo, que as idéias na arte devem assumir uma forma particular, devem apresentar-se sensivelmente ante a consciência, devem estar integradas a estruturas apropria­das à transmissão do conhecimento artístico, estruturas que não se' confundem com as da transmissão do conhecimento científico. Do fato de que o conhecimento artístico e o co­nhecimento científico têm o mesmo objeto (ou, antes, têm como objeto a mesma realidade objetiva geral), não se infere que ambos apreendam o real da mesma maneira. As idéias mal assimiladas à estrutura da obra de arte dão sempre a impressão de estarem “sobrando”, produzem o efeito de in- terpolações inconvenientes.

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Quando Lassalle publicou seu drama Sickingen, Marx lhe escreveu uma carta na qual, apesar da amabilidade, lhe reprovava o ter escrito a peça mais na linha de Schiller do que na de Shakespeare, compondo um drama no qual os per­sonagens careciam^de um realismo mais profundo e, por vêzes, se tornavam raisonneurs. Engels, a propósito do mesmo dra­ma, e na mesma ocasião (sem ter combinado prèviamente com M arx), também escreveu a Lassalle e disse que a obra se beneficiaria caso as motivações históricas do comportamento dos personagens fossem transmitidas "cie maneira mais viva, ativa, por assim dizer natural, através da própria ação; e, ao contrário, os discursos cheios de argumentos (em que reco­nhecí o teu talento de advogado) se tornassem cada vez mais dispensáveis”.

Engels, de resto, teve oportunidade de desenvolver seus pontos de vista a respeito da questão em inúmeras cartas. Êle sabia que, ainda quando são justas em si mesmas, as idéias podem não estar funcionalmente integradas ao todo da obra de arte e, com isso, podem pesar sôbre esta última como pingentes incômodos.

Numa carta que escreveu à romancista Minna Kautsky em 26 de novembro de 1885 .Engels criticou o livro Os V elhos e os Jovens (que ela lhe enviara), dizendo: “A senhora sente, provàvelmente, necessidade de tomar partido neste livro, de proclamar diante do mundo inteiro as suas opiniões ( . . . ) . Não sou, de maneira alguma, adversário da poesia d e tese como tal. O pai da tragédia, Ésquilo, e o pai da comédia, Aristófanes, foram ambos poetas de tese. E também o foram Dante e Cervantes. O que há de melhor em A Intriga e o Am or de Schiller é que se trata do primeiro drama político alemão d e tese. Os russos e os noruegueses modernos, que escrevem excelentes romances, são todos poetas d e tese. Mas crio que a tese deve brotar da própria situação e da própria ação, sem que seja explicitamente formulada. O poeta não é obrigado a dar já pronta ao leitor a solução histórica futura dos conflitos sociais que descreve”.

Em outra carta, enviada à jovem escritora inglesa se- nhorita Harkness, a propósito do romance M ôça da C idade (de autoria da sua correspondente), Engels critica a obra por seu deficiente realismo e indica à autora o caminho do velho Balzac, ‘‘infinitamente maior do que todos os Zolas passa-

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dos, presentes e futuros” . Na referida carta (de 1888), Engels faz questão de explicar que a deficiência de realismo por êle apontada no livro nada tem a ver com a ausência de proclamações revolucionárias nas páginas da jovem autora: “Estou longe de vos censurar por não terdes escrito um ro­mance claramente socialista, um romance de tese, como dize­mos nós, os alemães, no qual viessem a ser glorificadas as idéias políticas e sociais do escritor. Não é nisso que penso. Quanto mais as opiniões políticas do autor ficam escondidas, tanto melhor para a obra de arte. O realismo de que falo se manifesta inteiramente fora das opiniões pessoais do autor”.

O realismo preconizado por Engels — ide o explica na mesma carta <— consiste na “fiel reprodução dc caracteres típicos em situações típicas” . Balzac lhe serve de exemplo, porque Balzac representou na rica trama das várias obras que integram a Com édia Humana caracteres típicos em si­tuações tipicas. Pessoalmente, Balzac era conservador, le- gitimista: suas simpatias iam tôdas para a velha classe dos aristocratas. Ao escrever, entretanto, empolgava-se, ficava entregue à sua imaginação criadora e ao exercício realista (rigoroso) dela: esquecia-se de seus preconceitos e repre­sentava os aristocratas em suas deficiências básicas, como ho­mens que de fato mereciam a sorte que a história estava re­servando para êles. Com isso, Engels enxergava em Balzac

' um "triunfo do realismo”.> A teoria engelsiana do “triunfo do realismo” pode ser

considerada uma das formulações mais brilhantes da estética do materialismo dialético feitas por um dos fundadores do socialismo científico. Ela conduz a investigação do crítico marxista não ao inventário das idéias pessoais do artista e sim à obra, cõm seu complexo específico de problemas, suas idéias e sua estrutura própria.

Mas ainda há um aspecto do pensamento de Marx e Engels a que precisamos nos referir antes de encerrarmos o presente capítulo e que é fundamental para a estética mar­xista. O caráter da concepção marxista do mundo, tal como foi definido por Gramsci, é o de um “historicismo absoluto” : para o marxismo, não há nada que possamos situar acima da história ou fora dela. A perspectiva marxista, portanto, exige jque se veja em tôda e qualquer realização humana a sua co­nexão essencial com o seu tempo, com as condições históricas

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da sua concretização. As obras de arte, como quaisquer outras obras do homem, não podem scr desligadas da época em que surgiram. Mas isso não quer dizer que a obra de arte esgote os seus efeitos no momento cm que apareêe; não quer dizer que a obra de arte possa ser reduzida às condições da sua gênese histórica e social.

O historicismo marxista não exclui o reconhecimento da durabilidade da criação estética. Um dos problemas cruciais para a teoria estética do marxismo é precisamente o de expli­car concretamente essa durabilidade da grande arte sem sair do terreno do rigoroso imanentismo hlsforieista,, isto é, sem recorrer a categorias metafísicas, n históricas.

Foi o próprio Marx quem formulou o problema, em tôda o sua clareza, no texto que colocamos (junto com outro) no pórtico dêste livro, referindo-se h vitalidade da antiga arte grega de Homero, dc físquilo, de Sófocles e dc Hurípedes: “A dificuldade não está em compreender que a arte e a épica gregas se adiem ligadas a certas formas do desenvolvimento social e sim no fato de que elas possam, ainda hoje, propor­cionar-nos um deleite estético, sendo consideradas, em certos casos, como norma e modelo insuperáveis” (Introdução à Contribuição à Crítica d a Econom ia P o lít ica ) .

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6Trótski

T rótski (1877-1940), é, em geral, bem mais conhe­cido do que Mehring, de vez que êste, mesmo desenvolvendo respeitável atividade no movimento socialista, ficou sendo sempre um intelectual, um “teórico”, ao passo que o outro passou ao terreno da ação mais diretamente política. Embora tenha aderido tardiamente ao partido bolchevista, Trótski se tornou ràpidamente o segundo líder mais famoso daquele partido, logo depois de Lênin. Desenvolveu eficiente traba­lho como organizador do exército vermelho vitorioso na re­volução russa de outubro de 1917 e foi um dos mais eminen­tes dirigentes do nôvo Estado soviético. Depois da morte de Lênin, entrou internamente em luta contra Stalin e, tendo sido po^ êste derrotado, viu-se compelido a partir para o exílio, vindo afinal a ser assassinado no México.

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As posições políticas de Trótski são mais conhecidas do que a sua visão dos problemas estéticos. Trótski defendia a tese de que a direção revolucionária deveria centrar os seus esforços não sôbre a edificação do socialismo em um único país, como a União Soviética, e sim sôbre a prompção da re­volução mundial. Semelhante perspectiva — a da "revolu­ção permanente” — implicava em uma politica aventurciris- ta. No combate a ela, Stalin revelou-se, efetivamente, o con- tinuador da política de Lênin. Mas Stalin explorou os erros políticos de Trótski para negar-lhe quaisquer qualidades e para montar um sistema que permitiu a plena expansão de outros erros a que êle, Stalin, ligou o seu nome.

Em matéria de política cultural, por exemplo, os erros de Stalin são bem mais sérios do que os erros de Trótski. Posteriormente, em outro capítulo (o capítulo 12), os leito­res encontrarão algumas considerações a respeito da política cultural stalinista. A política cultural preconizada por Tróts­ki (em um livro escrito quando Trótski ainda não caíra em desgraça, em 1922) era, ao contrário da política cultural sta­linista, uma política revolucionária de tipo liberal em rela­ção aos intelectuais e à criação artística. No entanto, a po­lítica cultural revolucionária de tipo liberal — defendida por Trótski e, em muitos aspectos, endossada por Lênin <— exige, para se suster, uma base teórica, fundamentos estéticos que definam claramente a natureza do trabalho intelectual e da criação artística, o papel dos diversos ramos da produção cul­tural, uma teoria que calce e dê substância à orientação prá­tica, administrativa, dos que a defendem.

A posição de Trótski no que concerne às questões teó­ricas especificamente estéticas apresenta elementos de analo­gia com a de Mehring. Trótski sabia que a produção artís­tica não deve ser julgada através de critérios estreitamente políticos, que a arte não comporta uma avaliação imediatista: “Uma obra de arte deve ser julgada, em primeiro lugar, pela sua própria lei, isto é, pela lei da arte".1 Esta área específica da arte — tal como em Mehring — apresenta certa imunida­d e às pressões deformadoras da ideologia e só os valores

i Literature and Revoluticm, ed. University of Michigan Press, trad. Rose Strunsky, pág. 178. (H á também uma edição francesa, mais com­pleta, lançada pela ed. Julliard).

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ideológicos mais diretos conseguem penetrar nela. A cultu­ra tradicional é válida e preciosa porque traz consigo justa­mente um conhecimento artístico que, no fundamental, foi preservado da contaminação dos interesses de classe. “O tra­balho artístico do homem — escreve Trótski — é contínuo. Cada nova classe se coloca sôbre os ombros da precedente”.1

Aqui, reencontramos a perspectiva mehringuiana: para reconhecer a efetiva continuidade do trabalho de criação ar­tística e não entregar a riqueza da cultura tradicional à pi­lhagem vandálica dos iconoclastas, o crítico faz vista grossa no que se refere às contradições daquela cultura, recusa-se a reconhecer a descontinuidadc que, ao lado c no interior da continuidade, se manifesta em seu desenvolvimento dialéti­co. A presença da ideologia só é admitida na copa e na co­zinha da arte; os cômodos “nobres” são preservados da “su­jeira” ideológica. E o não reconhecimento da interferência sutil das pressões e conflitos ideológicos na arte e na cultura impede que o observador enxergue a raiz dos momentos de descontinuidade que marcam a evolução cultural dos povos.

De resto, do reconhecimento da relativa autonomia da arte e da sua área operacional específica, Trótski tira a con­clusão (forçada) de que em face dela o próprio marxismo deve fazer cessar a sua competência: "O método marxista nos fornece uma oportunidade de avaliar o desenvolvimento da nova arte, traçar tôdas as suas origens, ajudar as tendên­cias mais progressistas por uma iluminação critica do cami­nho, porém não faz mais do que isso. A arte deve encontrar0 seu próprio caminho e por seus próprios meios”.2

Com isso, como observa o professor Luiz Costa Lima, Trótski reserva para o marxismo o trabalho de um mero es­clarecimento externo das questões artísticas. Qual é o signi­ficado de semelhante formulação? Se ela quer dizer que o marxismo não pode solucionar a priori os problemas concre­tos da criação artística, ela é rigorosamente verdadeira, mas .—■ argumenta Costa Lima — se estende a tôda a estética: “tôda a estética é limitada e deve se saber como tal”.3 Se ela

1 Literature and Revolution, pág. 179.8 lik'111, pág. 218.n Artigo “Trótski: Arte e Marxismo”, publicado na revista Estudos Universitários, n.° de julho-setembro de 1963.

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quer dizer, entretanto, que o marxismo deve se restringir à elaboração de uma sociologia da arte, ao invés de procurar abordar, de uma perspectiva dialética e materialista, os pro­blemas específicos da estética, então ela não só é falsa como representa uma concessão ao sociologismo.

A abordagem do problema da arte por Trótski, em seu conjunto, indica que êle foi efetivamente levado a essa con­cessão ao sociologismo, que, por uma questão de princípios, repelira no ponto de partida de suas considerações. Repeli­do, mas não superado, o sociologismo voltou aos esquemas trotskistas (como voltara aos esquemas mehringuianos) e ne­les entrou pela porta dos fundos.

Trótski era um espírito cultivado, dcspreconccituoso, um leitor interessado de Freud c dc Einstcin, prevenido contra a tentação do imedintismo e pouco propenso à demagogia po- pulista. No entanto, cm virtude do sistema dc idéias que ado­tara, foi levado a subestimar certas possibilidades (e por con­seguinte, certas tarefas) da política cultural revolucionária no período de transição para o socialismo (o período da chama­da "ditadura do proletariado” ).

Tratando das questões estéticas (aquelas ante as quais cessava, a seu ver, a competência do marxismo), Trótski foi levado a concluir que “a enorme maioria da classe trabalha­dora de hoje não está interessada nessas questões. A maior parte da vanguarda da classe operária está muito ocupada para tratar delas; ela tem tarefas mais urgentes”.1 Para Tró­tski, a grandeza da cultura proletária não reside tanto nas suas realizações artísticas como no fato de que ela prepare0 advento de uma cultura verdadeiramente nova, que será a da humanidade reunificada, sob o comunismo. “Nossa épo­ca — escreveu êle — ainda não é uma época de uma nova cultura, mas apenas a de ingresso nela”.2 Para Trótski, o rouxinol da poesia tal como o môcho de Minerva, que simbolizava a Filosofia na metáfora de Hegel - - só levanta vôo (só canta) ao pôr do sol. No princípio de uma nova era, a poesia fica sempre aquém das necessidades do momento histórico.

1 Literature and Revolution, ed. c it., pág. 144.2 Idem, pág. 191.

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Semelhante tese pode impressionar pelo brilhantismo e pela possibilidade que oferece de explicar o baixo nível da produção artística na União Soviética nas décadas que se seguiram à da sua organização. Além disso, a concepção de Mehring e de Trótski tem a vantagem nada desprezível — como já dissemos — de comportar uma política cultural re­volucionária de tipo liberal, isto é, uma política que, favore­cendo a liberdade de criação artística, predispõe os artistas mais sinceros e mais independentes a uma atitude mais fa­vorável em face da revolução proletária.

Êstes dois aspectos positivos da perspectiva teórica de Trótski, entretanto, são prejudicados pelas limitações gerais da concepção trotskista. Não basta que a estética comporte uma política cultural revolucionária de tipo liberal; é preciso que ela a suporte. E não é lícito à genuína perspectiva re­volucionária recorrer ao futuro como um álibi para amenizar as responsabilidades concretas do presente. Em sua forma elaborada e madura, a nova cultura pertence ao futuro: mas ela jamais se tornará presente se não nos dispusermos desde já a trabalhá-la, desenvolvendo o seu atual embrião. As der­rotas que sofremos no trabalho de política cultural e de pro­moção das artes hoje adiarão e prejudicarão o grande êxito que figuramos para amanhã. Os revolucionários de orienta­ção marxista não podem recorrer a explicações que estabele-

> çam antidialèticamente qualquer inevitabilidade para o cir­cunstancial baixo rendimento do trabalho revolucionário no campo cultural. As verdadeiras causas do nível deficiente da produção artística na União Soviética não decorreram de uma discutibilíssima “lei” histórica tão geral como abstra­ta — a lei implícjta no raciocínio de Trótski, segundo a qual, como ocorria em Mehring, as épocas de tensão revolucioná­ria são intrinsecamente hostis à arte — e sim das particula- ríssimas circunstâncias históricas em que se gerou o stalinis- mo. A posição de Mehring e de Trótski, pressupondo o ine­vitável prejuízo para a arte no calor da luta revolucionária, acarreta certo derrotismo para a política cultural dos marxis­tas nos períodos de transformação radical das estruturas só- cio-econômicas. Acarreta a subestimação das responsabilida­des e das tarefas concernentes à promoção cultural e à cria­ção artística capazes de dignificar desde já o processo re­volucionário humanizador e libertário.

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O derrotismo subjacente à visão mehringuiana-trotskis- ta pode, inclusive, esvaziar o próprio sentido liberal da polí­tica revolucionária derivada das posições estéticas que tanto Mehring como Trótski sustentaram: pode levar o governo revolucionário que compreende a execução de tal política a se encastelar num liberalismo ôco, tão cômodo como irres­ponsável, fazendo com que êle se omita em face dos valores humanos e políticoç empenhados na luta cultural, fazendo com que êle deixe de buscar a concretização de medidas po­sitivas, capazes de estimular o florescimento da cultura, ca­pazes de' criar condições nas quais a produção cultural não só possa como tenda a se orientar num sentido progressista.

Além disso, o sentido liberal da política cultural que podería derivar da estética trotskista precisaria, para se con­cretizar e se desenvolver, superar a pressão nntiliberal decor­rente de outras idéias de Trótski, particularmente sensíveis na sua atividade como político e como organizador. Convém lembrar, aqui, a título de exemplo, as posições sustentadas por Trótski contra Lênin no debate, ocorrido por volta de 1920, sôbre o papel1 dos sindicatos na /sociedade soviética e sôbre as relações que os sindicatos deveríam manter com o govêrno revolucionário. Deixemos que Isaac Deuts^her (que é insuspeito, dada a sua imensa admiração por Trótski) nos resuma a controvérsia. Opondo-se à autonomia dos sindica­tos, Trótski insistira em identificar de modo imediato a classe operária e seu Estado. “Os operários, dizia êle, não têm in- terêsses próprios a defender contra um Estado que é o dêles. Lênin respondeu que o Estado proletário invocado por Tróts­ki era ainda uma abstração: não era ainda o verdadeiro E s­tado dos operários, pois êle ainda precisava freqüentemente servir de balança entre os operários e os camponeses. E pior: êle era vítima da deformação burocrática. Os operários pre­cisavam, certamente, defender o Estado dêles, mas deviam também se defender êles próprios contra êle”.1

1 Lre Prophète Desarme, Isaac Deutscher, ed. Julliard, pág. 76 .

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7Lênin

L ênin (1870-1924), não queria que a direção revolu­cionária deixasse as artes totalmente entregues a si mesmas, pois não acreditava que fôsse inevitável a queda do nível es­tético da produção artística nos períodos de aguçamento da luta de classes. Para Lênin, a direção da revolução bolche- vista devia procurar influir sôbre a criação artística, criando condições para que as artes tivessem elevado o seu nível es­tético e, simultâneamente, colaborassem com os desígnios re­volucionários. Mas Lênin não queria implantar um sistema de dirigismo burocrático, no qual a direção política da re­volução "ditasse” aos.artistas o que êles deveríam fazer, fi- Çando a criação estética enfeudada à mais direta propaganda política, pois sabia que a arte subjugada às exigências ime-

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diatas da propaganda só poderia ter uma influência apitaào- /lal porém não teria, de fato, uma influência educacional.

Tal como Marx ou Engels, Lênin jamais tratou dos pro­blemas da estética de maneira sistemática. Jamais se preten­deu, também, um conhecedor de tais problemas e, quando declarou que não se incluía entre os admiradores ldo poeta Maiacóvski, ressalvou: “reconheço minha incompetência nes­te campo.” Lunatchárski, o primeiro comissário do povo para os assuntos da cultura, com quem Lênin teve numerosas di­vergências, reconheceu: “Vladimir Ilitch jamais erigiu suas simpatias e antipatias estéticas em princípios”.1

Pessoalmente, Lênin estimava muito as tradições da cul­tura russa. Tinha tal estima pelas tradições da cultura russa progressista do passado que, em certa ocasião, antes de seu estudo mais aprofundado das obras de Hegel, chegou a di­zer que Herzen- — materialista russo do século X IX — "foi mais longe do que Hegel", o que constitui um evidente exagero.

Esta apaixonada estima pessoal de Lênin pela tradição cultural progressista na literatura russa, /contudo, deve ter sido um fator positivo na sua influência sôbre a política cul­tural revolucionária do período leninista, contribuindo para que o rico acervo da literatura e da arte do passado não so­fresse maiores agravos por parte do proletkult ou por parte dos pseudopoetas “proletários” . “A cultura proletária — es­creveu êle não surge completamente feita de não se sabe onde. Ela não é uma invenção de homens que se classificam de especialistas no assunto. Tudo isso é pura tolice. A cul­tura proletária deve ser o desenvolvimento lógico da soma dos conhecimentos elaborados pela humanidade sob o jugo das sociedades capitalista, feudal e burocrática”.1

Sendo um dirigente revolucionário voltado para a rea­lização de pesadíssimas tarefas políticas e carregando sôbre os ombros a tremenda responsabilidade da chefia do primei­ro Estado proletário, Lênin se esforçava por obter da pro­dução artística o máximo rendimento propagandístico possí­vel. Sua rejeição da arte panfletária se devia menos a exi-

1 Lénine — sur la Litterature et l’Art, textos coligidos e apresentados por Jean Fréville, Editions Sociales.1 Coletânea citada, pág. 172.

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Ijências estéticas do que à sua própria lucidez política: êle compreendia que a utilidade do panfletarismo é (até politica­mente) limitada e se escoa logo.

À visão leniniana dos problemas estéticos era, bàsica- mente, a de um politico. Lênin tinha excepcional sensibili­dade e argúcia para julgar os aspectos estritamente políticos das obras de arte, mas tinha também certa tendência natu­ral para enxergar tais aspectos em detrimento d os demais.

Quando os critérios politicos não lhe permitiam avaliar as conseqüências de um fato estético significativo, êle hesi­tava, se retraía. Górki relata um episódio bem revelador das reações de Lênin em face de uma significação estética intra- duzível em termos políticos — como a da música —■ quando narra que certa noite, em Moscou, depois de ouvir as sona­tas de Beethoven ao piano, Lênin teria observado: “Não co­nheço nada mais belo do que a Apassionata; podería ouvi-la todos os dias. Música surpreendente, sóbre-humana. Digo- me sempre com um orgulho talvez ingênuo e pueril: 'Que maravilhas os homens podem criar!’ . Mas não posso ouvir música constantemente, ela age sôbre os meus nervos, tenho vontade de dizer tolices e de acariciar as criaturas que, vi­vendo num inferno assim, podem criar tanta beleza. Hoje, contudo, não se pode acariciar ninguém: devoram-nos a mão. É preciso golpear as cabeças, golpeá-las impiedosamente, em-

^ bora idealmente nós nos oponhamos a tôda violência. Trata- se de uma ocupação infernalmente difícil!”1

Outra manifestação do que afirmamos: a aguda com­preensão da obra de Tolstoi e a escassa compreensão da obra de Dostoiévski. Possuindo a obra de Tolstoi um caráter po­lítico bem definido, Lênin soube atravessar o cipoal de suas contradições sem se perder e definiu-lhe brilhantemente os suportes ideológicos, mostrando em Tolstoi o intérprete das massas camponesas exploradas da Rússia. Já em face de Dostoiévski, autor de uma obra de caráter político-social mais problemático, Lênin revela-se bastante desconfiado.

Para se orientar, Lênin não podia perder de vista os va­lores estritamente políticos. Mas o que importa frisar é que êle repelia os métodos estreitos para conseguir seus fins po-

1 ^ Lénine et le Paysctn Russe, trad. Michel Dumesnil de Gramont, ed. Sagittaire, págs. 15-17.

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lítico-pnrlldnrios, pois sabia-os contraproducentes. Aos que queriam ver criada uma literatura especial de politiznçno para n massa trabalhadora, com a subestimação em bloco da lite­ratura burguesa, Lênin respondia, já antes da tomada do po­der pelos bolchevistas: “é preciso que os operários não se confinem ao quadro artificialmente limitado da 'literàtura para operários’ e sim que aprendam a compreender melhor a lite­ratura para todos’’.1

A rigor, Lênin não trouxe uma contribuição original, e profunda para o desenvolvimento teórico da estética marxis­ta. Sua maior importância reside no fato de ter êle procurado pôr em prática uma política cultural revolucionária inspirada nos princípios da autêntica estética marxista, sem os percal­ços que lhe traziam suas contrafações e seus “desvios” . A floração artística dos anos vinte na União Soviética, se não prova cabalmente o acerto e a eficácia da política cultural leninista, prova pelo menos que ela não atrapalhou a cria­ção estética ou a promoção do amplo debate teórico.

Os anos vinte foram, realmente, apos de incerteza, de miséria e sofrimento, mas foram também anos de grande efer­vescência cultural na União Soviética. O ambiente"”literário de então se caracterizava pelo choque estrepitoso de várias tendências, que incluíam desde o formalismo dos Irmãos S e - rapião (grupo cujo nome era tirado de um personagem de Hoffmann) e do tradicionalismo acadêmico, até o refinamen­to dos imagistas (Essênin), o sectarismo do proletkult (gru­po que teve como inspirador o machista Bogdanov, com quem Lênin polemizara em M aterialismo e Em piriocriticism o), pas­sando pela agressividade dos futuristas (entre os quais sur­giu Maiacóvski) e a posição moderada, aberta e confusa de Górki.

Uma ampla discussão de todos os grandes problemas da literatura e da sociedade marcou a época. No curso dos de­bates, posições absurdas, òbviamente equivocadas, chegaram a ser sustentadas. Os escritores jovens, empolgados, assu­miam atitudes românticas. Ehremburg, que participou dos acontecimentos daquela fase, confessa-o: “Fazíamos mofa do

1 Lénlne — sur la Litíerature et l’Art, pág. 81.

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romantismo, mas na realidade éramos românticos”,1 Um poeta chamado Kirilov chegou a preconizar, em nome da criação da nova arte proletária, a destruição das madonas de Rafael.

O governo revolucionário lcninista não se omitiu em face da livre discussão que se travava, não se encastelou em um liberalismo cômodo e preguiçoso: procurou intervir nos debãtes, procurou influir no sentido de neutralizar as posi­ções cujas implicações políticas tivessem um caráter retró­grado, reacionário e desumano. Mas soube evitar a sufoca­ção do debate, a intervenção burocrática, policinlesca. Não extinguiu, em geral, a fermentação, não procurou implantar a uniformidade de pensamento na produção artística.

^ Ilya Enremburg, Memórias, volume III, pág. 55, tradução de Dal­ton Boechat, ed. Civilização Brasileira.

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9Eisenstein

> x r -IN Ão É só Bukhárin que pode ser apontado, em alguns dos aspectos essenciais da sua atitude em face da arte, como elemento representativo dos anos vinte na União Soviética. Outros vultos também são típicos daquela fase, tanto no arrojo, na inventiva pessoal, como nas debilidades, na con­fusão ideológica, na mistura desordenada de sectarismo e de liberalismo.

Ao lado de Bulchárin, poderiamos colocar, por exemplo, nomes como Eisenstein, Maiacóvski e Górki. Maiacóvski, em especial, é tão típico da década de vinte que até morreu com ela. Górki, que passou boa parte dos anos vinte fora da União Soviética, é menos representativo daqueles anos do que de todo um período mais extenso da história do seu povo: um período que começa no final do século X IX e se estende

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ate os umbrais do zdanovismo. Nos dois próximos capítu­los, falaremos a respeito de Maiacóvski e de Górki. Neste, diremos algo sôbre Eisenstein.

Sérguei Mikhailóvitch Eisenstein (1898-1948) era bem môço quando abandonou seus estudos de engenharia, depois de ter assistido a uma encenação da peça M ascarade por Meyerhold, e resolveu se dedicar à arte. Çertencia a uma família regida por princípios burgueses: durante a guerra civil, seu pai se alistou no exército branco e êle no exército vermelho. Após a desmobilização, veio trabalhar no teatro de proletkulí, em contato com Meyerhold. A princípio, tra­balhava como cenografista; posteriormente, fêz experiências como assistente de direção e acabou como diretor.

Quando o proletkulí se dispôs a realizar filmes dedica­dos à história do movimento operário russo, Eisenstein — que já se entusiasmara com o cinema, segundo consta, ao ver Intolorancc de Griffith — empreendeu a criação de seu primeiro longa metragem, lançado em abril de 1925 com o título de A G reve. No mesmo ano (que, por sinal, é o ano de Em Busca do Ouro, de Chaplin), Eisenstein filmou O En~ couraçado Potiônkin, que lhe valeu projeção internacional. Já então, êle trocara definitivamente o teatro pelo cinema, afirmando: “É absurdo procurar aperfeiçoar o arado quando se dispõe do trator.”1

A metáfora do arado e do trator não manifesta apenas a convicção eisensteiniana da moderna superioridade do ci­nema sôbre o teatro: manifesta igualmente a visão que o pro- letkult e Eisenstein tinham da arte como instrumento de trans­formação da sociedade: uma visão rigorosamente utilitarista. Assumindo as exigências ligadas às condições especiais da União Soviética, Eisenstein e o proletkulí eram levados a suA bestimar a função gnoseológica da arte em seus aspectos me­nos imediatos e a enfatizar a função da arte como agente transformador capaz de produzir modificações práticas ime-j diatas nas relações humanas, sobretudo na ação política dois homens.

O governo revolucionário de Lênin procurava orientar a sua política cultural no sentido de obter o máximo rendi-

1 Citado por Guido Aristarco em sua Storia delle Teoriche dei Film, ed. Einaudi, Torino, 1960.

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menlo da arte como instrumento de politização, mas — con­forme vimos ■—' rejeitava, em geral, o recurso aos métodos burocráticos. Lênin criara condições excepcionalmente favo­ráveis para o trabalho dos cineastas soviéticos. Uma ocasião, dirigindo-se a Lunatchárski, Lênin dissera: “O cinema, para nós, é de tôdas as artes a mais importante” . Como os cineas­tas estavam espontânea e sinceramente convencidos da ne­cessidade de fazer uma arte acentuadamente política, da ne­cessidade de criar filmes que servissem diretamente aos ideais da revolução de outubro, não havia o menor sentido em qual­quer atitude por parte dos governantes visando pressioná-los, visando dirigir-lhes coercitivamente o trabalho. Os cineastas desfrutavam, assim, de extraordinária liberdade de criação; e ainda por cima tinham o maior apoio econômico.

Para filmar Outubro, em 1927, quando as condições do período leninista ainda não tinham sido substituídas pelas condições que vieram a caracterizar o período stalinista, Eisenstein teve postos à sua disposição pelo governo meios cujo vulto chega a ser surpreendente: para as cenas de massa, contou, com uma figuração d e l i . 000 operários e soldados, armados pelo Exército. Como havia pouca eletricidade em Leningrado, a cidade ficou sem luz durante várias noites, a fim de que poderosos refletores permitissem a filmagem das cenas do assalto noturno ao Palácio de Inverno. E Eisenstein dispunha de todos esses meios para utilizá-los livremente no seu trabalho de criação artística.

Já naquela época, a par de grande artista, Eisenstein se revelara um arguto e sensível teórico da nova arte cine­matográfica. Em sua participação nas discussões sôbre o pa­pel da montagem no cinema, Eisenstein foi um dos primeiros a avaliar êsse papel em termos realistas, recusando-se a acom­panhar tanto os que diziam que a montagem era tudo na linguagem cinematográfica como os que lhe minimizacam o valor,

Eisenstein deu, além disso, uma valiosa contribuição ao esclarecimento teórico da natureza da montagem, observan-

\ do que, no movimento do filme, a junção ou justaposição de dois pedaços (ou imagens) não resulta numa soma e sim pum todo qualitativaménte nôvo. Em face de Vsiévolod Pudóvkin, que acentuava o caráter complementar das ima­gens na montagem, Eisenstein chamava a atenção para a fun-

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çilo iln confiante na relação que a montagem estabelecia entra elns,

Nn entanto, o pensamento teórico de Eisenstcin trope­çava nos limites de determinadas contradições que precisa­vam ser superadas. A princípio, quando começara a fazer cinema, Eisenstein se achava sob a influência das idéias de Hogdanov, o teórico do proletkult. Depois, a esta influência ainda se acrescentou a influência das concepções "esquerdis­tas” de Dziga Vertov (segundo Guido Aristarco, A Greve lembra um filme de Vertov intitulado A V erdade).

Dziga Vertov achava que a trama (o enrêdo, a estória) era um elemento típico da literatura. E achava que a reci­tação de atores (a criação de personagens "trabalhados” ) era um elemento típico do teatro. Ao se colocarem entre a câmera cinematográfica e a vida — afirmava Vertov — êsses dois elementos estragam o mundo, prejudicam o cinema.

Eisenstein, convencido do caráter absolutamente novo do cinema,1 aproximou-se das posições de Dziga Vertov e se preocupou com a ganga de conceitos e valores que estariam sendo impropriamente carreados de outras artes para a arte cinematográfica.

Como criador estético, entretanto, Eisenstein começou a sentir em seu trabalho as dificuldades acarretadas pela linha seguida em sua reflexão teórica. A G reve prescindia de tra­ma e de personagens individuais. No Encouraçado Potiôn- kin (considerado um êxito superior ao da G rev e), existia tra­ma e aparecia até um esboço de desenvolvimento de perso­nagens individuais. Como superar o dilema? Revendo con­cepções teóricas que lhe pareciam certas? Ou se afastando do movimento que, na passagem da Greve ao Encouraçado, lhe permitira criar a sua obra-prima?

Em Outubro (1927) e Linha Geral (1929), Eisenstein mostrou que ainda continuava prêso à concepção do cinema como arte capaz de prescindir de trama e personagens indi­viduais desenvolvidos, à concepção do cinema como “mon­tagem de atrações”, porém a "montagem de atrações” já não é entendida nos têrmos em que a tinham definido escritos

i “Essa arte nada terá de comum com a do passado”, escreveu Eisens­tein (Reflexões de um Cineasta, ed. Arcádia, trad. José Fonseca Costa, pág. 3 6 9 ).

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(córicos eisensteinianos de um período precedente. Eisenstein procura aprofundar e desenvolver sua doutrina, procura criar os princípios de um cinema capaz de traduzir o pensamento abstrato diretamente em imagens dinâmicas. Seu ideal passa a ser o de um cinema intelectual, que poderia dar forma a um sistema filosófico e a seus conceitos fundamentais de ma­neira-imediata, sem recorrer a perífrases, a enredos, a trans­posições ou a quaisquer meios indiretos.

Na época em que se preocupava com n criação do cine­ma intelectual e pensava em filmar O Capital de Marx, Eisenstein teve a sua atenção chamada para o exame dos problemas decorrentes do advento do cinema sonoro. V ia­jou então, para o estrangeiro, saiu da União Soviética, foi à França e aos Estados Unidos, disposto a estudar as técni­cas de utilização do som naqueles países.

A idéia do cinema intelectual continua a fascinã-lo. Seu interesse incide cada vez mais sôbre as questões relativas à psicologia humana e especialmente sôbre a psicologia na arte. A realização do ideal do cinema intelectual lhe parece depen­der do esclarecimento de tais questões: é preciso mobilizar os meios hábeis para provocar as emoções que levem às idéias que o cineasta pretende transmitir. Eisenstein concentra a sua atenção na análise do movimento das contradições no interior das pessoas. “Só o cinema falado — escreve êle — pode mostrar plenamente o desenvolvimento interno da cons­ciência” . E acrescenta: “O material típico do filme falado é o monólogo interior”.1

O "'monólogo interior” é uma técnica para a represen­tação do movimento psicológico dos personagens e para a representação de seus problemas íntimos. Como técnica, o m onólogo interior tem prestado bons serviços às composições realistas, ajudando a plasmar tipos humanos concretos, ver­dadeiros. Quando, entretanto, o monólogo interior deixa de ser uma técnica e se apresenta como núcleo da estrutura da obra de arte, êle provoca um deslocamento do conhecimen­to artístico na direção do subjetivismo.

Não nos, é possível saber com segurança se Eisenstein viria a utilizar o monólogo interior como técnica ou se êle

1 Citado por Guido Aristarco em sua Storia delle Teoriche dei Film, ed. cit.

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viria a se servir definitivamente dêle como princípio estru­tural em sua atividade de criação artística. O filme em que a sua concepção deveria se definir na prática era Uma Tra­gédia Americana (baseado no romance de Theodore Drei- ser) e não chegou a ser feito.

Há elementos, todavia, que sugerem uma identificação de Eisenstein com a utilização avant-gardista do monólogo interior. Antes de mais nada, sua convicção — proclamada em carta a Leon Moussinac1 •—■ de que James Joyce fazia na literatura algo muito próximo daquilo que êle pretendia fazer no cinema. Joyce —- sobretudo o Joyce de Ulisses, que deslumbrava Eisenstein — é precisamente o tipo do autor que faz do monólogo interior um princípio auto-suficiente capaz de servir de base à estruturação da obra de arte.

A própria formulação dada por Eisenstein à sua manei­ra de encarar o m onólogo interior o aproxima da avant-gar- de: “as leis da construção do monólogo interior .— escreveu êle — são precisamente as que constituem o fundamento do variado conjunto de leis que governam a construção da for­ma e composição das obras de arte”.2

Nossa intenção, aqui, não é a de cáracterizar Eisenstein como um avant-gardista para pretender negar a elevada qua­lidade artística de seus filmes ou para pretender invalidar a dimensão realista de sua obra dê criação artística. Queremos apenas assinalar a presença em sua perspectiva teórica de ele­mentos característicos da confusão ideológica imperante na União Soviética, nos anos vinte. Tais elementos não eram fa­voráveis à criação artística e sua superação era desejável. In- felizmente, porém, como sabemos, a confusão teórica dos anos vinte não foi superada por uma correta clarificação das ques­tões ideológicas com que se defrontavam tanto os dirigentes políticos como os artistas e os teóricos da estética: foi substi­tuída pela unificação doutrinária simplista e dogmática do pe­ríodo de Stalin,

Eisenstein enfrentou dificuldades durante o período sta- linista. O filme O Cam po d e Béjin, a cuja realização êle se dedicou de 1935 a 1936 (e que permaneceu inacabado), so-

1 Eisenstein, Leon Moussinac, ed. Pierre Seghers, 1964, pág. 121.2 Teoria y Técnica Cinematográficas, Eisenstein, ed. Rialp, Madri, pág. 149.

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freu severas críticas. A Enciclopédia Soviética acoimou o no­tável diretor de “formalista” . Isso não impediu que o govêr- no de Stalin lhe proporcionasse as melhores condições possí­veis para a realização de seus dois últimos filmes: A lexander N évski (1938) e Ivan, o Terrível (1942-1945). Estas duas fitas, aliás, marcam o abandono por parte de Eisenstein de suas' idéias relativas ao não desenvolvimento de personagens individuais e fixam “duas grandes figuras da história russa”.

Embora tivesse sido tolerado pela burocracia zdanovis- ta, Eisenstein não podia mesmo se entrosar com ela. Suas exigências culturais de amplitude de horizontes, sua propen­são para o experimentalismo cm arte, sua inquietação, nada disso podia inspirar confiança a uma política cultural revo­lucionária que passara a se basear em métodos burocráticos, estreitos e imediatistas.

A valorização positiva dos aspectos da personalidade de Eisenstein em que se manifestavam suas exigências mais sé­rias e dignas de respeito como artista e como pensador, o franco reconhecimento das qualidades que o incompatibiliza- vam com o dogmatismo stalinista, o justo aprêço por sua obra, não nos devem impedir de enxergar os limites da sua filo­sofia.

Marie Seton, na biografia de Eisenstein que escreveu, conta que êle lia Bergson, Platão, Agatha Christie, Flaubert, Balzac, poesias de cordel, Joyce, Zola e o N ew Yorkcr, num esforço titânico que visava o enciclopedism o.1 Buscava um síntese çlas grandes correntes de pensamento e não renuncia-

v va‘ ao aproveitamento dos elementos representativos da cul­tura popular em seus diversos níveis e em suas variadas ma­nifestações. Para ser eficaz, contudo, a síntese de posições teóricas diversas exige a efetiva superação delas e proíbe a atenuação forçada da contradição que as relaciona, excluin­do a possibilidade de qualquer procedimento superficialmcn- te “conciliador” . Do contrário, a síntese nunca passará de uma lamentável justaposição eclética.

| Eisenstein, a despeito do seu brilhantismo, pagou pesado tributo ao ecletismo. Exemplo disso está na ingênua “conci-

1 Eisenstein, a Biography, Marie Seton, ed. The Bodlcy Hcad, I.on- don, 1952.

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liação” proposta por êle entre Marx e Freud: “Freud des­cobriu as leis do comportamento do indivíduo e Marx as da evolução da sociedade”.1 A fórmula eisensteiniana dá a en­tender — contra a realidade — que não há incompatibilidade alguma entre Freud e M arx. No entanto, para que se rea­lize a assimilação crítica pelo marxismo daquilo que a psica­nálise tenha trazido de válido ao conhecimento humano, é preciso não subestimarmos o alcance das divergências exis­tentes entre Marx e Freud, mesmo no que concerne à manei­ra de conceber o indivíduo.

1 An American Testament, Joe Freeman, ed. Farrar and Reinhardt, New York, 1936. Citado por Guido Aristarco.

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10Maiacóvski

M- "- AIACÓvski (1893-1930), o poeta grandalhão, nervo­so, dotado de uma voz tonitroante capaz de se impor a qual- quçj? auditório, não conciliou com o freudismo, como Eisens- tein. Não conciliou nem com os clássicos da literatura russa, seus ancestrais.

Sua convicção era a de que os novos tempos exigiam formas realmente novas para se expressarem. A revolução bolchevista lhe confirmou essa convicção: como tratar de te­mas tão insólitos como os da nova fase em que entrava a história de sua pátria recorrendo aos artifícios que os mes- tresNio passado haviam esgotado? Maiacóvski se refere com desprêzo aos “remendões do desbotado fraque de Pushkin”. Quando o acusam de pretender “destruir os clássicos”, po­rém, quando querem identificar a sua posição com a do extre-

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mista Kirilov, êlc sc defende: "Se sou contra os clássicos, não é para suprimi-los, mas para que sejam estudados, aprovei­tados no que têm de útil à classe operária. Mas não é pre­ciso accitã-los sem discussão, como muitas vêzes tem ocorri­do entre nós”.1 E, neste ponto, a perspectiva de Maiocóvski corrige aquela tendência que havíamos apontado em Mehring, na disposição um tanto acrítica com que Mehring se dispunha, de quando em quando, a integrar os clássicos na cultura so­cialista, sem qualquer reexame mais detido.

No entanto, quando Maiacóvski resolve fundamentar teoricamente a posição correta que assumira, não tardam a se manifestar as deficiências da organização do seu pensa­mento filosófico: “O camarada disse que eu destruía todos os clássicos, sem exceção. Jamais me dediquei a trabalho tão idiota. Disse somente que não há clássicos válidos para todos os tempos” . Que quer o poeta significar com essa afirma­ção? Que a leitura dos clássicos deve ser feita criticamente e exige um esforço, uma disposição ativa por parte do leitor? Mas isso não se dá apenas com os clássicos: tôda leitura de um texto artístico exige a participação ativa do leitor e trans­cende da mera operação mecânica de ler. Estará, então, Maiacóvski negando que os grandes escritores do passado continuem vivos através de suas obras? Estará negando que as tragédias de Sófocles e os poemas de Homero possam pro­porcionar deleite estético ao leitor contemporâneo (e, por­tanto, que mantenham validez como obras de arte)? Neste caso, estaria negando a evidência e estaria se recusando a reconhecer o problema específico da estética, tal como Marx0 colocou na Introdução à Contribuição à Crítica da E cono­mia Política.

As relações de Maiacóvski com os clássicos e com o po­der de duração da arte, aliás, eram problemáticas. Nos de­bates, quando o interpelavam e lhe afirmavam que êle não seria lido no futuro, o poeta recorria antes a réplicas brilhan­tes do que a argumentos profundos, assumia um comporta­mento antes polêmico do que científico. A um que lhe asse­gurava, por exemplo, “meus filhos não o lerão!”, Maiacóvski retrucou: "Como sabe que seus filhos sairão parecidos com

1 Vladímir Maiacóvski, estudo biográfico e coletânea de poemas tra­duzidos por E . Carrera Guerra, ed. Leitura.

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o senhor e não com a mãe?” . A resposta agressiva e eficaz de Maiacóvski traduz uma convicção lastreada mais em sen­timentos vividos do que em raciocínios teoricamente funda­mentados.

Tanto a vida como a obra dc Maiacóvski, de resto, se acham marcadas por certo pathos dc exaltação sentimental.0 próprio poeta, definindo a sua passionalidade, declarou em um poema: “A anatomia comigo ficou louca / sou todo coração”.

Semelhante característica mniacovskiana é comum à sua personalidade e à sua criação literária. E, se cia não o im­pediu de criar uma obra poética altamente significativa, li­mitou, contudo, o alcance das posições teóricas defendidas pelo poeta. O sentimento, como observou Hegel, é a forma comum que se aplica aos mais diversos conteúdos. O con­teúdo mais rico e mais profundo de uma obra de arte — es­pecialmente na literatura — jamais pode ser alcançado atra­vés do sentimento em estado bruto: êle pressupõe sempre uma superação da imediaticidade sentimental. E a exalta­ção sentimental não propicia, comumente, tal superação.

A mera expressão emocional tanto se presta para exal­tar a “coragem” e o “entusiasmo” de uma ação revolucioná­ria, libertadora, humanizadora, como para exaltar a “ener­gia” de um ato de repressão, de um gesto liberticida e desu­mano. A ambigüidade do sentimento puro sabe bem ao pa­ladar dos místicos, dos confusos e dos irracionalistas. Não é por acaso que um Ingmar Bergman declara: “Quero tocar e influenciar os espectadores no plano emotivo e unicamente no plano emotivo”.1

Para um esteta de perspectiva progressista, capaz de confiaf na história e na razão humanas, o caminho da exa­cerbação da emotividade não é dos mais apropriados e apre­senta óbvias limitações: a ligação que pode existir entre uma arte caracterizada pela passionalidade e o seu conteúdo re­volucionário, o seu sentido histórico-racional-humanista, será, no melhor dos casos, uma ligação meramente circunstancial e de deficiente solidez. Ora, a superação da passionalidade,

—1 Declaração feita à TV sueca em janeiro de 1960, a propósito do lançamento do filme A Fonte da Virgem. Citada em Cahiers du Ci­nema, fevereiro de 1961.

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no enmi tias idéias criticas de Maiacóvski, exigia uma cons­ciência teórica filosoficamente melhor estruturada do que aquela que o poeta chegou a possuir.

P, claro que o reconhecimento de tais limitações sc re­fere às posições teóricas do poeta e não diretamente à sua poesia, cuja avaliação exigiría um estudo particular e o pleno domínio da língua russa. Além disso, é preciso dizer que as limitações acima referidas não acarretaram maiores prejuízos para o papel histórico inegavelmente progressista que Maia­cóvski — não apenas como poeta, mas como crítico e teó­rico — desempenhou por ocasião de sua participação nos de­bates travados na União Soviética, durante os anos vinte.

No que concerne à exigência — formulada, então, por muitos — de'uma arte que fôsse imediatamente acessível às massas populares, a posição de Maiacóvski foi claramente antidemagógica. Êle insistiu em que a perspectiva da políti­ca cultural revolucionária não deveria ser a de “rebaixar” a arte ao nível de cultura das massas (um nível degradado pela exploração classista) e sim a de “elevar” pela educação as massas a um nível cultural que lhes/ permitisse apreciar de maneira justa a produção artística.

A posição antidemagógica e antipopulista de Maia­cóvski, em certos aspectos, lembra curiosamente a do pensa­dor marxista peruano José Carlos Mariátegui, que escreveu, no final da década de vinte: “A demagogia é o pior inimigo da Revolução, tanto na política como na literatura. E o po- pulismo é essencialmente demagógico”.1

Segundo o ponto de vista maiacovskiano, as massas po­pulares continuam com a palavra final no julgamento histó­rico da produção artística; mas é preciso fazer com que elas adquiram a capacidade de dá-la, isto é, fazer com que as massas reconquistem (ou conquistem) uma capacidade ine- vitàvelmente prejudicada pela divisão da sociedade em clas­ses sociais e pelo sistema alienador inerente a essa divisão.

Maiacóvski sabia que o artista revolucionário deve cor­responder a uma exigência social, decorrente do seu com­promisso com as forças propulsoras do progresso. Mas sa­bia, também, que a exigência social não cbincide, necessaria­mente, com as exigências práticas que são formuladas em

1 Revista Amauta, n.° 28, janeiro de 1930.

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nome dela. Em uma das ocasiões em que se manifestou a propósito dos problemas da sua arte. o poeta afirmou fran­camente: “a encomenda praticada não corresponde à enco­menda social” . E Elza Triolet, comentando esta afirmação, escreveu: “Maiacóvski quer dizer, com isso, que a 'encomen­da soçial’, a obra encomendada no autor pela necessidade da sociedade, qual um par de sapatos correspondendo à neces­sidade de um homem, nem sempre ê aquela que lhe enco­mendam, de fato, os editores e os jornais".1

É sintomático que Elza Triolet, na época em que escre­veu êsse texto (1939), tenha apontado como encomenda prá­tica que poderia não corresponder à encomenda social a dos editores e a dos diretores de jornais, sem se referir à possi­bilidade da encom enda prática governamental ou partidária não coincidir, também, com a encom enda social. Isso mostra que Elza Triolet não tinha, na época, uma visão correta do que se passava sob o sistema burocrático stalinista. Sob o stalinismo, a verdade enunciada por Maiacóvski foi pràtica- mente mutilada de uma de suas mais preciosas dimensões: a encom enda prática do Partido e do Estado foi apresentada como expressão automática e necessariamente justa da enco­menda social revolucionária. E a arte ficou subordinada, de modo geral, às exigências políticas mais imediatas formula­das pelo Partido e pelo Estado.

•Vi Maiacóvski, poete russe, ed. Pierre Seghers, pág. 101.

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11Górki

N os u m br a is do stalinismo em estética (sem dúvida muito a contragosto), acha-se a figura de Alexis Ma- xímovitch Piechkov, mais conhecido como Máxim Górki (1868-1936).

Górki foi amigo pessoal de Lênin. Teve algumas diver­gências com o dirigente máximo dos bolchevistas, mas, de­pois da morte de Lênin, disse que as divergências não ti­nham resultado de uma diversidade de perspectivas e sim de uma diversidade de horizontes: "Lênin enxergava mais longe,do que eu”.

Sotyo govêrno de Lênin, Górki defendeu, em muitas ocasiões; junto a seu amigo, os interêsses dos escritores e dos artistas em geral.

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Como pensador, Górki carecia de lima .sólida organiza­ção l ró i ii n . Impressionado com as características psicológi­cas dos camponeses russos e com o atraso em que élcs se achavam, o escritor chegou a preconizar a transformação do socialismo cm uma religião, a fim de que as massas fôssem mais eficazmente mobilizadas no impulso para sua auto-eman- eipação. Ante as críticas de Lênin, reconheceu: “sou um mau marxista”.

No entanto, Górki foi um artista generoso e sincero, um humanista de boa cepa, que enxergou na estética "a ética do porvir” . No meio da agitação que caracterizou a década de vinte na União Soviética, Górki representou mui­tas vêzes o. bom senso que controlava o passionalismo dos esquerdistas. Claude Frioux aponta Lunatchárski, Vorónski e Górki como três grandes influências construtivas e mode- radoras nos debates dos anos vinte e como intelectuais no­táveis pela “mansuetude teórica e prática”.1

A despeito do vigor de suas convicções revolucionárias, Górki — em cuja personalidade de aptodidata sentimental existiam traços marcantes de individualismo — jamais chegou a se enquadrar na disciplina exigida para a ação político-par- tidária. Nunca tendo chegado a ser um militante disciplina­do do Partido Comunista, Górki, com maior razão, jamais chegou a se entrosar com a atividade partidária da época sta- linista, jamais chegou a compactuar, em qualquer caso, com o burocratismo e a coerção que se manifestaram no stalinismo.

Em numerosos aspectos essenciais de sua personalida­de, aliás, Górki se apresenta como um antípoda do stalinismo,

O que é que nos leva, então, a situá-lo nos umbrais do stalinismo em estética? Alguma prevenção pessoal? Má von­tade gratuita? Absolutamente, O ponto em que Górki se tor­nou, malgré lui, um precursor da estética stalinista (zdano- vista) é a sua maneira particular de conceber o realismo socialista.

O crítico marxista italiano Cesare Cases já observou, com muita razão, que a elaboração por Górki da teoria do realismo socialista representa, de certo modo, um apreciável

i Cahiers du Monde Russe et Sovietique, publicação da Sorbonne, n.° 1 de 1959.

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progresso na sistematização ela estética marxista.1 A expres­são realismo socialista tem o mérito fundamental de definir através do substantivo realismo o caminho natural da arte socialista. Ligando a perspectiva socialista ã substância do realismo, Górki parecia estabelecer um elo entre o melhor da tradição e o mais essencial da inovação.

Ocorre, porém, que o próprio Górki caracterizou de modo bastante estreito a sua concepção do realismo socialista. A fórmula do realismo socialista obteve a sanção oficial da es­tética stalinista por ocasião do 1- Congresso dos Escritores Soviéticos, realizando em agosto de 1934. No discurso que pronunciou em tal congresso, Górki conceituou o realismo so­cialista de maneira a atribuir maior importância ao termo so­cialista do que ao termo realism o. O adjetivo cresceu em de­trimento do substantivo, hipostasiou-se. E, com a atrofia do substantivo e a hipostasia do adjetivo, a fórmula do realismo socialista assumiu um caráter voluntarista.

Em seu discurso de agosto de 1934, Górki sustentou que "n função da burguesia na elaboração da cultura foi muito exagerada” . È difícil conciliar esta afirmação gorkiana com a visão empolgada que Engels nos dá do Renascimento e dos intelectuais da burguesia em ascensão na época renascentis­ta: “Foi a maior transformação progressista que a humani­dade já conhecera até então. Uma época que precisou de gi­gantes e engendrou gigantes: gigantes do pensamento, da paixão e do caráter; gigantes da universalidade e da erudição”.2

A estreiteza da concepção de Górki ainda se torna mais dara quando êle se põe a comparar o realismo socialista com o realismo crítico (burguês): “É preciso compreender que o realismo crítico nasceu como forma de criação individual de 'homens inúteis’, os quais, incapazes de lutar pela vida e não encontrando nela um lugar para êles, reconhecendo com maior ou menor nitidez a inutilidade da sua existência pessoal, con- ehiíram pelo absurdo de todos os fenômenos sociais e de todo o processo histórico. Sem querer negar o vasto e enorme tra­balho desempenhado pelo realismo crítico, cujas aquisições

i 1 A í ^ i s / Note di Letteratura Tedesca, ed. Einaudi, 1963.* ilialcctique de la Nature, trad. Emile Bottigelli, Editions Sociales,im , pfig. 3o.

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formais e nas letras nós apreciamos altamente, devemos com­preender que tal realismo só nos é indispensável para aclarar as sobrevivências do passado, para lutar contra elas c eli­miná-las”.1

Górki abandona, aqui, a preciosa herança humanista do realismo crítico e reduz o legado dos grandes escritores bur­gueses a meras “aquisições formais e nas letras” . A utilida­de essencial das obras-primas que o realismo crítico foi ca­paz de produzir já não está naquilo que elas incorporaram definitivamente ao movimento ascensional da consciência hu­mana e sim no testemunho que elas dão de sobrevivências do passado que precisam ser eliminadas. O que significa que, quando essas sobrevivências negativas do passado que se ex­pressam nas realizações do realismo crítico forem elimina­das, as obras-primas do realismo burguês não serão mais ne­cessárias à humanidade. . .

O empobrecimento na compreensão gorkiana do realis­mo crítico acarretou um empobrecimento na compreensão gor­kiana do realismo em geral. O realismo — tal como Gorki o concebia — se reduziu à representarão servil da realidade, se reduziu aos acanhados limites do naturalismo.

Para superar a aridez do realismo (assim concebido à maneira naturalista), para dar ênfase à orientação socialista que pretendia ver adotada na arte, Górki foi obrigado a "completar” o realismo socialista da sua tese com um suce­dâneo daquela poesia que não cabia nos quadros estreitos do naturalismo: o romantismo revolucionário.

O que é o romantismo revolucionário? Marx e Engels escreveram, n'A Ideolog ia A lem ã : “Para nós, o comunismo não é um estado que se deva implantar, um ideal ao qual se deva sujeitar a realidade. Chamamos comunismo o movimento real que anula e supera o atual estado de coisas”.2 Pois bem, o romantismo revolucionário enfatiza precisamente a importân­cia do comunismo como ideal, como estado que se deve im­plantar, só encarando o movimento real que anula e supera0 atual estado de coisas na medida em que êste movimento faz parte do quadro da sociedade futura idealizada.

1 Revista Recherches Sovietiques, 1957, n.° 7 .2 La Ideologia Alemana, M arx e Engels, trad. Wenceslau Roces, ed. Pueblos Unidos, Montevideo, 1959, pág. 36 .

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Um autêntico realismo socialista deveria ser capaz de representar, na plenitude dos seus aspectos essenciais, a rea­lidade viva e contraditória do movimento que transforma a sociedade e constrói o comunismo . O realismo socialista da i oncepção gorkiana, entretanto, justapôs naturalismo e ro- nnintismo: representação empobrecida dos aspectos essenciais da realidade comprometida com o atraso do presente e re­presentação empobrecida (pseudopoética) dos aspectos em que a realidade atual antecipa a realidade futura.

O futuro torna-se como que um álibi para os artistas não se comprometerem com a complexidade real do presente. Da perspectiva do comunismo vindouro, os artistas são leva­dos a não proporcionar um conhecimento rico da realidade efetiva, um conhecimento justo do processo histórico concre­to: êles são levados a simplificar de maneira mecanicista ou sentimental as contradições existentes aqui e agora. Repre­sentados unilateralmente como portadores dos sentimentos e ideais em que a sociedade futura se antecipa, os “personagens positivos" tornam-se esquemáticos e enfrentam, esquemàtica- mente, vilões comprometidos com a desumanidade atual (des­tinada a desaparecer juntamente com o capitalismo). A cor­rupção dos “bandidos” serve, assim, para realçar, pelo con­traste, a pureza dos “mocinhos".

Tôdas estas características da concepção gorkiana do realismo socialista nos ajudam a compreender não só as de- bilidades da arte soviética do período stalinista como, tam­bém, nos ajudam a compreender porque a fórmula do realis­mo socailista definida por Górki acabou sendo adotada pelo stalinismo em estética e serviu para escorar os esforços de uma direção burocrática no sentido de enfeudar a arte às exi­gências imediatas da propaganda política do Partido.

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12Zdânov

A década de trinta, a União Soviética não lutava mais contra exércitos estrangeiros invasores e nem contra russos ,antibolchevistas militarmente organizados em seu ter­ritório. O governo revolucionário se consolidara no poder e, superada a ilusão de uma revolução proletária esperada para tôda a Europa como fenômeno iminente, tornou-se necessá­rio organizar o' país administrativamente, pô-lo em funciona­mento. Foi preciso mecanizar a agricultura e as medidas to­madas para isso não podiam deixar de acirrar as resistências internas ao nôvo regime.

Por outro lado, embora afastada a perspectiva de novas intervenções de tropa estrangeira, a União Soviética conti­nuava a ser uma ilha de socialismo no meio de um mar hos- lil d&yéapitalismo. Era necessário edificar uma sociedade so-

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cialista em condições pioneiras, sob a pressão dos inimigos do nôvo regime, enfrentando a sabotagem, vencendo a inér­cia, o pêso de um passado de burocratismo e opressão. Marxí e Engels não haviam deixado manuais a que os construtores do socialismo pudessem recorrer em busca de receitas sob medida para quaisquer dificuldades. A responsabilidade que pesava sôbre os ombros dos dirigentes que haviam sucedido a Lênin era imensa, assustadora.

Stalin revelou bom senso e habilidade política em sua luta contra Trótski e contra o aventureirismo das posições trotskistas (contra a teoria da “revolução permanente” ). Mas Stalin se prevaleceu da fôrça política que conseguira concen­trar em suas mãos para golpear a democracia interna no Par­tido Comunista e para montar um sistema administrativo al­tamente centralizado. Em nome das dificuldades objetivas que o bolchevismo tinha de enfrentar, tôdas as energias hu­manas da União Soviética foram convocadas e logo coerci­tivamente mobilizadas para o trabalho político imediatamente útil. Os artistas e os escritores foram chamados a cumprir suas tarefas.

Lênin escrevera, em 1905, um artigo1 intitulado “A Or­ganização do Partido e a Literatura de Partido” . Neste ar­tigo, Lênin tratava de questões conexas com as condições de trabalho do Partido e a sua organização, marcada pela di­fícil luta pela conquista da legalidade. Em têrmos um tanto ríspidos, Lênin procurava dar certa ordem à atividade da im­prensa do Partido e estabelecia normas disciplinares para os jornalistas e escritores que trabalhavam para a imprensa par­tidária, Krúpskaia, viúva de Lênin, sua mais íntima colabo­ra dora, frisou que as formulações adotadas por Lênin no texto de que estamos tratando se referiam exclusivamente à produção literária encom endada pela imprensa partidária para fazer frente às circunstâncias do momento e não à literatura em geral. Pois bem: a despeito da advertência de Krúpskaia, a política cultural stalinista adotou aquelas formulações de Lênin como princípios definidores do espírito d e partido, vá­lidos para a produção literária em geral. As conseqüências de semelhante orientação foram desastrosas para a cultura soviética e para a estética marxista: tudo que não manifes­tasse o espírito d e partido assim estreitamente concebido era

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suspeito de “formalismo”, de “gratuidade”, "subjetivismo pe- queno-burguês” ou “deficiência ideológica”.

Se Plekhânov reduzia a arte à sua gênese social, o sta- linismo fazia mais: reduzia-a a um aspecto da sua gênese social, ao conteúdo político da consciência de classe da qual0 artista era o portador. Na década de vinte, a tendência ao imediatismo político e ao partidarismo estreito já se ma­nifestava. O crítico Vorónski, irritado com essa tendência viciosa, advertia: “A carteirinlia do Partido c uma grande coisa, mas é preciso não agitá-la fora de propósito”.1 Nos anos vinte, contudo, o sectarismo era apenas uma tendência entre diversas outras. Na década de trinta êle começa a se impor como orientação dominante, monopolistica.

A década de trinta foi a época em que a teoria do rea­lismo socialista, nos têrmos estreitos em que Górki a definiu, foi adotada e sancionada pelo Estado soviético, através dos órgãos encarregados da sua política cultural. Na década de trinta, a crítica oficialmente prestigiada reduzia a arte à sua eficácia política mais imediata, destruía-lhe tôda e qualquer universalidade e fazia dela um subproduto da consciência de classe. "Veja-se, por exemplo, o que escrevia L. A. Tches- kiss: “Os sentimentos e as aspirações de uma classe opri­mida não são os de uma classe dominante ( . . . ) O artista somente transmite sentimentos e aspirações dos que lhe estão mais próximos, com os quais está ligado e convive, ou, em outros têrmos: dos de seu grupo ou sua classe”.1

Para poder estabelecer uma ligação direta entre a classe social a que pertence o artista e o conteúdo ideológico da obra de arte, a crítica soviética da época stalinista precisava utilizar um marxismo mutilado, empobrecido em suas raízes dialéticas, emasculado em sua capacidade de reconhecer efe­tivamente as conexões e mediações da realidade. A ideolo­gia dominante sob o stalinismo se incumbiu de elaborar seme­lhante “marxismo” ., Para transformar o marxismo num ins­trumento de justificação imediata de tôdas as suas medidas, Stalin —- que não tinha uma autoridade tão naturalmente só­lida como a de Lênin — passou a apresentar os princípios

1 Cahiers du Monde Russe et Soviétique, ed. cit., n.° 1 .1 O Materialismo Histórico, L . A . Tcheskiss, ed. Calvino Filho, 1934, pág. 165 . y

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teóricos mnis abstratos da teoria marxista usualmente em li­gação direta com os fatos crus (sacrificando assim, com as mediações, tôda a riqueza dialética da concepção marxista).

As ascensão do nazismo na Alemanha e a agressão hi- tleriana à União Soviética ainda pioraram as coisas. A mu­tilação da dialética no marxismo da época stalinista implicava numa franca má vontade para com Hegel e para com os “desvios hegelianos’’ . O conflito com a Alemanha nazista criou condições emocionais que propiciavam uma apreciação sumamente injusta a respeito de Hegel: a visão de Hegel como uma espécie de precursor do nazismo. Explorando as­pectos bastante secundários da filosofia de Hegel, explo­rando elementos conservadores do seu pensamento e da sua justificação do totalitarismo prussiano, tal maneira de enca­rar Hegel foi amplamente difundida na União Soviética, nos anos do conflito com a Alemanha nazista. Ela chegou a ter a sanção de um dos principais ideólogos do stalinismo: André Zdânov.

Zdânov é a expressão mais típica da crise da estética marxista no tempo do stalinismo. Para desgraça da cultura soviética, Zdânov não foi apenas um ipau teorizador e um péssimo crítico: foi também um zeloso executor das medidas políticas e administrativas com que o Estado e o Partido pu­seram em prática as concepções por êle formuladas. Um critico italiano, em trabalho publicado há poucos anos, classi­ficou Zdânov como “mais stalinista do que Stalin”.1 Quan­do, finda a guerra contra o nazismo, as revistas Z viezda e Leningrado ousaram publicar matéria discordante da orienta­ção zdanovista em questões de arte, Zdânov providenciou a imediata derrubada de suas respectivas direções.

A grosseria de Zdânov era espantosa. Quando a poeti­sa Ana Akhmátova (recentemente falecida, após ter mereci­do uma ostensiva reabilitação cultural) publicou versos nos quais chorava o seu sentimento de solidão, falava de amor e de anseios místicos, Zdânov verberou-lhe em um informe0 “infame” procedimento: "O sentimento da solidão e do de- sespêro, estranho à literatura soviética, encontra-se por tôda a obra de Akhmátova ( . . . ) O diapasão de sua poesia é

1 Dario Fauci, em sua colaboração a Momenti e Problemi di Storia deli’Estética, ed. Marzorati, Milano, pág. 1 7 7 1 .

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extremamente pobre — poesia de uma mulherzinha histérica que se debate entre a alcova e o oratório”.1

Em nome da exigência de uma rentabilidade política ime­diata, o zdanovismo exigia que as manifestações de desespe­ro e de solidão fossem banidas da arte, que a representação artística da realidade fôsse unilateralmcnte otimista. A re­presentação de aspectos trágicos da vida soviética era admi­tida, mas desde que se tratasse da tragédia dc um revolucio­nário morto gloriosamente em combate por uma causa justa e desde que não houvesse margem para dúvidas quanto à vi­tória final dessa causa justa. Assim, as contradições da rea­lidade eram aprioristicamente simplificadas c só podiam ali­mentar uma obra de criação anêmica, limitada,

A estreiteza de critérios e a violência verbal dc Zdânov fizeram escola. A centralização da revolução mundial em tôrno da experiência soviética, gerada pela necessidade do proletariado mundial protegê-la, ensejou a exportação em lar­ga escala do zdanovismo. A estética zdanovista conquistou adeptos fora da União Soviética, nas democracias populares e nos partidos comunistas dos paises capitalistas.

Uma das mentalidades mais características do zdano­vismo foi a do húngaro Joseph Revai, intransigente adver­sário de Lukács. Revai preconizava uma espécie de neoco- lonialismo mental na atitude das democracias populares ante a União Soviética. Sendo a União Soviética economicamen­te mais adiantada que a Hungria, ela não poderia deixar de ser, também, culturalmente mais adiantada. E êste raciocí­nio mecanicista era exposto com a maior franqueza: "Não existe soçiedade que seja economicamente superior à que a precedeu e culturalmente lhe seja inferior”.2 Lukács era acusado de subestimar a cultura soviética. Revai afirmava que a nova cultura da democracia popular húngara devia to­mar a cultura soviética como modêlo e devia procurar fun­dir-se com ela: “A nova cultura húngara — escrevia — não se contenta com considerar a cultura soviética como um mo-

1 Revista Problemas, n.° de agôsto-setembro de 1949, artigo “As Ta­refas da Literatura na Sociedade Soviética” .2 R evistaZ íi Nouvelle Critique, n.° de agosto dc 1950.

y.5

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dêlo; embora conservando e desenvolvendo nuns caracterís­ticas nacionais, tende a fundir-se com cia".1

Em sua polêmica contra Lukãcs, Revai acusa-o de "so­frer da moléstia do aristocratismo”, de vez que a influência dêle “não vai além de um meio literário e intelectual restri­to. Tem um auditório limitado” . E, exprobando a Lukãcs uma deficiente valorização da literatura soviética da época stalinista, derramava-se em elogios aos aspectos mais gro­tescamente negativos daquela literatura, apontando-os como qualidades que a literatura socialista húngara deveria pro­curar atingir e conquistar para si: “O herói positivo da nova literatura socialista húngara deve ser um trabalhador que rea­liza o plano qüinqüenal em tôda a plenitude da sua vida sen­timental e da sua atividade pública.”2

As posições de Revai podem parecer ridículas, hoje; mas é preciso não nos esquecermos de que elas prevaleciam, na­quele tempo, sôbre as de Lukãcs, porque exprimiam uma con­cepção dominante sob o stalinismo.

De resto, Revai não era um vulto isolado nos quadros da crítica marxista e os métodos por êle empregados não eram praticados exclusivamente nos países socialistas. Nos países capitalistas —• como, por exemplo, na França — os marxistas também aplicavam os principios e os métodos zda- novistas e para isso contavam com a cobertura oficial do Par­tido. Lembremos o comentário feito pelo marxista francês Maurice Mouillaud sôbre a excelente e corajosa peça O D ia­bo e o Bom Deus, de Sartre: “François Mauriac tinha suas razões para escrever sôbre Sartre, em um editorial do Figaro, dizendo que êle era 'providencial’ . 'Providencial', sem dúvi­da. E não somente para fideismo, mas para o fascismo e a guerra”.3

Os malefícios causados pelo zdanovismo — como cris­talização teórica da estética stalinista — são imensos. Um simpatizante do marxismo, o romancista Elio Vittorini, lem­brou, durante os debates dos Encontros Internacionais de Ge­nebra, em 1948 (quando se iniciava o último e talvez pior período do stalinismo), um aspecto geralmente pouco obser-

1 La Nouvelle Critique, n.° de maio de 1951.2 La Nouvelle Critique, n.° de agosto de 1950.3 La Nouvelle Critique, n.° de setembro de 1951.

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vado de tais malefícios. Quando um artista ou um grupo de artistas sofrem cerceamento em seu trabalho de criação, o prejuízo é concreto mas limitado; quando, porém, em nome do direito de cercear arbitràriamente a criação artística e de lhe impor diretrizes rígidas, os governantes promovem uma teorização capaz de justificar suas medidas práticas, achamo- nos diante de um “mal que ultrapassará em duração as cir­cunstâncias das quais nasceu e de uma mistificação que dei­xará traços duradouros no nosso jtiizo de homens’’.1

Na década de vinte, o prolctkult, a i.f.I' e a N ora t.f.f su­bordinavam a arte à propaganda política (e na Alemanha, conforme veremos no capítulo sobre Piscator, o mesmo ocor­ria com o Teatro P roletário) , mas essa visão sectária dos pro­blemas da estética e da política cultural revolucionária era somente a visão de alguns grupos. Uma vez institucionali­zada e oficializada pelo Estado soviético, ainda que ela não assumisse uma expressão teórica tão contundente, ela não podería deixar de se tornar muito mais nociva. Sua nocivi­dade não podería deixar de sofrer uma transformação qua­litativa.

E foi precisamente após a morte de Lênin — depois que os métodos leninistas de direção foram sendo substituídos pe­los métodos stalinistas — que o sectarismo foi se institucio­nalizando e começaram a se criar as condições cuja expressão teórica mais conseqente em matéria de estética foi o zda- novismo.

É claro que, em sua formação, o zdanovismo não arras­tou consigo sem resistência todos os artistas, todos os crí­ticos e todos os teóricos, quer na União Soviética, quer fora dela. Na União Soviética, é bom lembrar, o stalinismo não impediu que aparecesse um romance de excepcional valor, como O Don Tranquilo, de Cholokhov. E não impediu que Mikhail Lifschitz e Georg Lukács realizassem importantes pesquisas sôbre numerosos problemas essenciais da estética marxista.

Fora da União Soviética, também, a influência nefasta do stalinismo não impediu que alguns críticos marxistas rea­lizassem significativas investigações teóricas acêrca da arte

1 Débat sur l’Art Contemporain, ed. La Baconnière, pág. 142.

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c da literatura. Na própria década dc trinta, entre êsscs crí­ticos que levaram a cabo esforços pessoais dignos de nota nas suas respectivas abordagens das questões da estética mar­xista, podemos citar, desde logo, o alemão Max Rapliacl c o inglês Christopher Caudwell. A êles dois estão dedicados os dois próximos capítulos.

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13Max Raphael

M ax Raphael já era um renomado crítico de arte quan­do aderiu, por volta de 1930, às posições marxistas. Escreveu e publicou, logo após a adesão ao marxismo, dois livros, um sôbre estética e outro 'sôbre teoria do conhecimento. No livro que dedicou à apreciação dos problemas estéticos, Max Ra­phael começou por procurar definir as bases de uma estética marxista e de uma sociologia marxista da arte a partir da Introdução à Contribuição à Crítica da Econom ia Política de Marx,

O fato de que Max Raphael tenha tomado aquele texto de Marx como ponto de partida é um fato que conta em seu favor, revela perspicácia e coragem intelectual. É preciso lem­brar que, nesta mesma época, Mikhail Lifschitz e Georg Lukács empreendiam, na União Soviética, o estudo sistemá-

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tico dos textos cm que Marx e Engels tinham tratado de questões conexas com a arte e a literatura, e procuravam re­constituir o pensamento estético de Marx e Engels, dando- lhe uma forma organizada; é preciso lembrar que, para fa­zê-lo, Lifschitz e Lukãcs tomavam como base justamente o texto que Raphael colocara no centro da sua própria elabo­ração teórica,

Raphael lutava por inserir as investigações da história "imanente” da arte, bem como as investigações particulares da crítica ou as formulações abstratas da teorização estética, nos quadros — que pretendia mais amplos — de uma socio­logia marxista da arte.

Êle pressentia os perigos de um sociologism o de tipo reducionista e advertia: “Se nos limitássemos a situar um ar­tista qualquer dentro de uma ideologia ou de uma classe, cai­riamos em um mecanicismo estéril. Do ponto de vista socio­lógico, o interesse e a explicação real só fazem é começar com a comprovação do tipo de artista correspondente à classifi­cação acima referida”.1

Em princípio, Raphael tinha consciência de que era pre­ciso discernir as mediações existentes em cada caso entre a estrutura econômica da sociedade e a arte. E, ainda com apoio na Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política, viu no mito uma dessas mediações, a mediação his­tórica, o produto espiritual caracteristico dos primeiros es­tágios da criação artística. A produção artística grega se vinculava intimamente ao mito; era o mito — produto cole­tivo — sofrendo uma elaboração individual. O mundo da arte grega é, como o era o mundo da mitologia grega, o mun­do do concreto, do sensorial, do imediatamente perceptível: um mundo que incita à sua imediata tradução em têrmos plás­ticos. A mitologia cristã, ao contrário da grega, é refratária a uma tradução artística imediata em têrmos plásticos, sen- soriais; é uma mitologia mais abstrata, mais “espiritualiza­da”, situada “acima” do mundo sensorial, refletindo um maior desligamento da natureza, refletindo uma época na qual a di­visão do trabalho já produziu efeitos/ mais profundos e ge-

i Marx y Picasso, trad. R . Sajón, ed. Archipiélago, Buenos Aires, pág. 4 3 .

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neralizados. “A arte grega existe por causa da sua mitolo­gia .—• escreve Raphael — e a arte cristã existe apesar da sua”.1

Marx sugerira para explicar n duradoura vitalidade da arte grega a comparação dos gregos às "crianças normais” da humanidade: “Um homem não pode retornar à infância sem se tornar pueril. Mas não se diverte êle com a ingenui­dade das crianças e não deve se esforçar para reproduzir a sinceridade delas em um nível mais elevado? H o caráter es­pecífico de cáda época não revive, cm sua verdade natural, na natureza infantil? Por que a infância histórica da huma­nidade, no mais belo instante do seu florescimento, não exer­cería a atração eterna de um tempo que não mais voltará?".2

Para Raphael, a explicação de Marx é insatisfatória. Em seu lugar. Raphael propõe outra: o retorno à arte grega só se dá quando o mundo cristão (quer em sua estrutura sócio- econômica, quer em sua mitologia) entra em crise, isto é, quando seus princípios espirituais ficam abalados. “O artis­ta, nesse momento, necessitava de uma ajuda plástica que lhe permitisse salvaguardar o caráter sensorial e formal ine­rente à arte. E a esta ajuda, por sua própria essência, a arte grega podia-se prestar melhor do que qualquer outra”.3

Louve-se a coragem demonstrada por Raphael ao dis­cordar públicamente de um escrito de Marx, numa época na qual Marx (sobretudo em algumas de suas páginas) come­çava a ser tomado como Bíblia pela burocracia stalinista. Re­gistre-se, contudo, a insuficiência da explicação que êle pro­põe para substituir a outra.

A experiência histórica está longe de confirmar a tese segundo a qual a arte grega só adquire vitalidade cultural no mundo cristão e só se torna fonte de deleite estético nas épocas de crise. Fixando a sua atenção na influência especial exercida pelas obras de Homero, Ésquilo, Sófocles e Eurípe- des nos momentos de crise, o sociólogo Max Raphael per­deu de vista a influência menos intensa porém nada despre­zível que tais obras vêm exercendo com constância na cha­mada cultura ocidental, desde o Renascimento. Isso teria

1 Idem, p á g . 6 2 .2 Em Karl Marx — Oeuvres ( / ) , trad. Maximilien Rubel, Bibliothò- que de la Pleiade, ed. Gallimard.3 Marx y Picasso, p á g . 1 0 1 .

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decorrido de nino deformação profissional de sociólogo? Ou (eriu decorrido de uma deformação sociologista do esteta e critico de arte?

Parece que a última hipótese é que deve ser tida por verdadeira. A despeito de suas ressalvas, Max Raphael não conseguiu impedir — tal como não o tinha conseguido Ple- khânov — que suas análises o conduzissem, muitas vêzes, a conclusões prejudicadas por um sociologismo implícito em seus métodos. Raphael não compreendeu que o problema, para os marxistas, não consiste em elaborar uma sociologia da arte que, como tal, possa incorporar e subordinar a ela a teoria estética e a crítica de arte em sentido estrito. O so­ciólogo que pretende impor vassalagem ao estético manifes­ta -— para usarmos a pitoresca expressão do professor Antô­nio Cândido — ‘‘intuitos imperialistas’’.1

A ânsia de Raphael no sentido de criar uma sociologia da arte capaz de estabelecer semelhante “imperialismo” le- vou-o a análises verdadeiramente ridículas da obra de Pi- casso. Os quadros da fase azul e da fase rosa do pintor foram acusados de mostrar a pobreza como algo heróico, como uma virtude franciscana, anunciando a proximidade de Deus. O formalismo de Picasso, nas fases posteriores, tal como o formalismo de Seurat, foi interpretado em termos ainda mais ineptos: “por derivação remota, porém inegável, corresponde ao formalismo do sistema de monopólios”.2

1 Literatura e Sociedade, C ia. Edít. Nacional, pág. 2 1 .2 Marx y Picasso, pág. 133.

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14Caudwell

( 3 hristopher Caudwell era o pseudônimo do ensaísta inglês Christopher St, John Sprigg, que morreu em 1937, com trinta anos, lutando contra o fascismo na Espanha, o pseu­dônimo com o qual êle publicou dois livros ousados e inte­ressantes, que revelam um critico mais brilhante e intelectual- mente mais fecundo que Max Raphael.

Caudwell tinha uma aguda compreensão de que entre o condicionamento sócio-econômico e a elaboração da obra de tirte pelo artista se situam as mediações da experiência vivi­da por êste, os problemas da técnica e da psicologia. Êle sabia que há mais coisas entre o céu da arte c a terra da economia do que pode supor o vão sociologism o. Procurou estudar a função social da arte na sua ligação com o papel psicológico por ela desempenhado na estrutura interna de

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cada indivíduo. Para êle, a arte corresponde à necessidade de uma adaptação emocional crescente (embora nunca per­feita e definitiva) do indivíduo à realidade natural e à rea­lidade social, adaptação que não implica em acom odação e sim no estabelecimento de novas atitudes melhor adequadas à atividade do homem na plasmação do real.

Na cultura burguesa moribunda, cultiva-se certa confu­são entre a consciência e o pensamento, de um lado, e o in­consciente e o sentimento, de outro. Mas a verdade é que a consciência está presente tanto na reflexão intelectual como nos sentimentos; mesmo porque não há sentimentos "puros”, sensações “puras” ou "puras" idéias . O próprio sonho é cons­ciente, em certa medida, segundo Caudwell.

“A arte é uma das condições para a realização do ho­mem por si mesmo”, escreve Caudwell.1 Ela concerne à ati­vidade global do homem como ser autocriador. Conforme observou Marx na passagem dos seus M anuscritos d e 1844 que transcrevemos como epígrafe no pórtico do presente es­tudo, a arte educa os sentidos do homem, tornando-os cada vez mais especificamente humanos. Os rudimentos da arte, por conseguinte, se encontram na vida prática, no cotidiano, em tudo aquilo que o homem faz de maneira própria e que0 distingue da pura animalidade. “Todo pensamento, todo sentimento refletem, em certa medida, as categorias da ciên­cia e da arte. A ciência e a arte são engendradas na nossa existência cotidiana. Os sistemas científicos e as obras de arte são apenas as formas de organização mais elevadas, a essência desta existência concreta de cada dia”.2 Há rudi­mentos de arte, por exemplo, no próprio devaneio: só que, para passar a ser arte, o sonho precisa ser comunicado e pas­sar a desempenhar uma função social adequada.

Pode-se dizer que a arte é contemporânea do trabalho humano, isto é, daquela atividade criadora e autocriadora que faculta o desenvolvimento do ser consciente e diferencia o homem dos animais. Com o trabalho humano a arte surgiu, e com êle se desenvolveu. Por ocasião do aparecimento das classes sociais e da fragmentação da comunidade humana

1 Illusion and Reality, ed. International Publishers, New York, pág. 298 .2 Illusion and Reality, ed. c it., pág. 194.

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primitiva, a arte se separou do trabalho, com resultados de­sastrosos para ambos.1

Dada a inexistência de uma autêntica comunidade dos homens, dado o conflito dos interesses particulares que opõe as classes em tôrno da propriedade privada das fontes de pro­dução, dada a perspectiva parcial inevitável que resulta de tal situação, difundem-se por tôda a sociedade inúmeras ilu­sões ideológicas. Uma dessas ilusões ideológicas é a que vi­cia o pensamento da burguesia nos tempos modernos, trazen­do-lhe a conVicção de que a liberdade consiste em um “re­torno à natureza”, em "deixar falar a natureza”, como se a liberdade fôsse um produto natural e não um produto social.

“A liberdade escreve Caudwell —• não é o produto dos instintos e sim das próprias relações sociais. Ela nasce nas relações de homem a homem”.2 A fôrça natural dos ins­tintos é cega, do ponto de vista do homem, do ponto de vista deste ser social que é o homem. Uma das funções bá­sicas da arte é precisamente a de adaptar os instintos, esta­belecendo um equilíbrio dinâmico entre êles e a realidade global do homem, seu raciocínio e seu meio social.

Os instintos não ajustados entram em conflito com os demais componentes da personalidade e contribuem para a formação de neuroses. Há certa analogia entre os compor­tamentos neuróticos assumidos pelos indivíduos em face de seus conflitos internos destruidores e os comportamentos alie­nados assumidos pelas classes em face dos conflitos exterio­res, sociais: “Tal como o neurótico volta à solução infantil quando se defronta com problemas adultos que não pode re­solver, assim a civilização, em tempos de esgotamento, como aquele de que estamos tratando, pode mover-se na direção de uma idade de ouro da autocracia ou do feudalismo, na direção de algo que um dia já foi fecundo. Mas o passado jamais pode retornar ( . . . ) Tal como a neurose, o retrocesso social não é solução”.3

* Idrm, pág. 28 .* Studicx in a Dying Cultiire, ed. John Lane the Bodley Head, Lon- dun, introdução, pág. X X III.* Idan, pág. 30.

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Caudwell é, talvez, o primeiro crítico marxista a reco- nlieccr, de maneira conseqüente e em têrmos técnicos elabo­rados, a importância da atividade subterrânea do psiquismo humano; é o primeiro a procurar inserir o estudo dos fatores neuróticos na perspectiva marxista do exame dos problemas da criação artística. A reflexão de Caudwell acêrca da psi­cologia na arte vai muito adiante das preocupações que se ma­nifestaram em Meyerhold e Eisenstein. A posição de Caud­well é pioneira no que se refere a seu esforço por integrar ao marxismo — especialmente à estética marxista — as in­vestigações e os temas da psicanálise. Caudwell estuda a obra de Freud com espírito científico, não se deixa escanda­lizar à maneira moralista pequeno-burguesa: procura apro­veitar-lhe o rico material informativo e alguns conceitos, re­pelindo, nas interpretações freudianas, aquilo que está pre­judicado pela metodologia positivista, pelo arraigado indivi­dualismo, pelo pessimismo cm face das relações sociais. Para o crítico inglês, não há dúvida de que, a despeito de seus equívocos básicos, a psicologia das trevas de Freud levava certa vantagem, em alguns pontos, quando comparada à psi­cologia academizante ligada diretamente às correntes filosó­ficas idealistas bem comportadas ou ao otimismo superficial extraído da filosofia das luzes. Caudwell sabe que a ativi­dade psíquica do homem não se reduz àquilo que dela trans­parece na clarificação conceituai e que uma representação artística eficiente de tipos humanos deve evitar o “intelec- tualismo”, isto é, deve evitar apresentar os indivíduos como "intelectos ambulantes”.

Por outro lado, em seu entusiasmo pela descoberta da importância da atividade subterrânea do psiquismo humano, o crítico inglês se deixa levar a posições irracionalistas. Êle opõe, esquemàticamente, os componentes naturais do psiquis­mo (instintos) aos componentes sociais (ideologia, racionali­zação, cultura), atribuindo àqueles o monopólio da esponta­neidade, a real abertura para o nôvo, e caracterizando estes como inevitàvelmente propensos à rigidez, refratários à re­novação, apegados à inércia e às tradições. Com isso, o papel dos elementos instintivos, subterrâneos, naturais, passa a ser superestimado, pois é através dêles que o nôvo se insere na atividade geral da consciência, e não através da racionali­zação teórica ou da elaboração conceituai. Do ponto de vista

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cias exigências do progresso, o que importa nos seres huma­nos é menos a reflexão teórica e crítica do que a percepção intuitiva. “Os sêres humanos escreve Caudwell ■—■ são montanhas de ser inconsciente caminhando sobre os velhos sulcos do instinto e da vida simples, com uma espécie de fos- forescência ocasional no cume. li esta fosíorescência cons­ciente extrai o seu valor e a sua íôrçn das emoções, dos ins­tintos; só a forma dela é que deriva dos modelos do pensa­mento racional”.1

A perspectiva irracionalistn a que chega Caudwell se manifesta, igualmente, na estreiteza do seu conceito de ra­zão: êle tende a identificar razão e lógica, isto é, tende a re­duzir a razão aos limites da sua forma lógica. Com base nisso, o crítico chega à conclusão de que "a poesia é irra­cional” (pois carece de forma lógico-discursiva) e tem com a realidade geral em que vive o poeta — e da qual o poeta faz parte ■ apenas “uma congruência emocional, subjetiva”.1

Semelhante concepção da poesia — como observa Lukács3 — restringe a representação poética da realidade à reprodução da mera subjetividade isolada do poeta, sacrifi­cando a compreensão dos elementos que exprimem na poesia a realidade mais ampla da sociedade, quer dizer, sacrifican­do a dimensão social da poesia.

Numa comparação um tanto grosseira, podemos dizer que Caudwell está para Max Raphael assim como Mehring estava para Plekhânov na geração anterior: êle se opõe re­solutamente ao sociologismo, porém acolhe, em sua metodo­logia, elementos de idealismo.

I Studies in a Dying Culture, e d . c i t . , p á g . 5 .- Illusion and Reality, e d . c i t . , p á g . 1 2 7 .II E m Prolegomeni a un’Estética Marxista, e d . Riuniti, t r a d . F a u s to C o d in o e M . M ontinari, p á g s . 2 4 1 / 2 4 2 .

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15Gramsci

A morte de Caudwell, lutando na Espanha, de arma na mão, contra o fascismo, em defesa dos ideais libertários do marxismo, dá contornos heróicos à sua figura. Ainda mais heróica do que a de Caudwell, entretanto, é a biografia do ilaliano Antonio Gramsci.

Gramsci nasceu. na Sardenha, em 1891, filho de pais muito pobres. Desde menino, trabalhava para viver. Anos mais tarde, quando se achava encarcerado, percebendo que a sua cunhada estava preocupada, com mêdo de que êle se suicidasse, Gramsci lhe enviou uma carta, falando da dura Infância que teve: “ . . .não pense que eu tenha razões para nie suicidar ou para me abandonar como um cão morto ao fluxo da corrente. Governo-me há muito tempo e já me go­vernava quando menino. Comecei a trabalhar quando tinha

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11 anos, ganhando 9 liras por mês (o que, de resto, signifi­cava um quilo de pão por d ia ). Eram dez horas diárias de trabalho, incluída a manhã de domingo; e passava todo êsse tempo carregando volumes que pesavam mais do que eu, de modo que, quando chegava a noite, chorava escondido, por­que o corpo estava todo doendo. Nem minha mãe conhece tôda a minha vida e as agruras pelas quais passei” (3-10-1932).

Em 1911, Gramsci se mudou para Turim, centro indus­trial onde veio a desenvolver intensa atividade política e onde passou a estudar profundamente a filosofia marxista. A ade­são de Gramsci ao marxismo não foi imediata: ainda em 1917, ao saudar a revolução leninisln, Gramsci via em Marx um continuador da filosofia clftsslni alemã, ressalvando, en­tretanto, que em Marx o idealismo "se contaminou de in- crustações positivistas e naturalistas",1 Mais tarde, Gramsci veio a ser um dos fundadores do Partido Comunista Italiano.

Eleito deputado pelo p c i, liderou a bancada do seu par­tido na época da franca ascensão do fascismo. Quando Mussolini já era Presidente do Conselho de Ministros, Gramsci teve oportunidade de enfrentá-lo, em memorável duelo verbal. O Duce veio à Câmara para defender um pro­jeto apresentado pelo governo que obrigava tôdas as asso­ciações a fornecerem ao Estado uma lista sempre atualizada dos nomes e endereços de seus empregados, sob pena de pri­são para seus responsáveis. Gramsci combateu em vigoroso discurso o projeto totalitário (16-5-1924).

Enfrentando os apartes de Mussolini, que definia o fas­cismo como uma “revolução”, Gramsci respondeu-lhe que a pretensa revolução fascista nada mais era do que a “simples substituição de um pessoal administrativo por outro” . E afir­mou: “Só é revolução aquela que se baseia em uma nova classe. O fascismo não se baseia em nenhuma classe que já não estivesse no poder” . Mussolini protestou: “Grande par­te dos capitalistas está contra nós!” . Mas Gramsci lhe re­trucou que o fascismo só combatia os demais partidos e or­ganizações da burguesia porque desejava representar mono- polisticamente a sua classe. Quando Mussolini, insistindo em

i Cf. Vita di Antonio Gramsci, Giuseppe Fiorí, ed. Laterza, 1966, pág. 131.

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caracterizar o fascismo como uma "revolução”, comparou a violência terrorista dos fascistas à violência dos operários comunistas, Gramsci lhe afirmou, com firmeza: “A vossa vio­lência é sistemática e é sistematicamente arbitrária, porque vós representais uma minoria destinada a desaparecer”.1

No momento em que Gramsci as pronunciou, tais pala­vras poderíam fàcilmente passar por românticas, insensatas: em 1924, o fascismo italiano estava a caminho do seu apo­geu. Pouco depois do debate, implantava-se a ditadura na Itália e a fôrça política de Mussolinl alcançava proporções fantásticas. O próprio Winston C.luirelull, mais tarde adver­sário de Mussolini, via o l) in c naquela época como um líder necessário à defesa da chamada "civilização crislã-ocidcntal” e dizia que se fôsse italiano seria fascista. No entanto, os anos se passaram, veio a guerra de 1939-45, o fascismo foi derrotado, Mussolini teve o seu cadáver crivado de balas c pendurado de cabeça para baixo e é hoje um nome coberto de opróbrio e de ridículo. Ao passo que Gramsci, falecido em 1937, após quase onze anos de encarceramento, é um vul­to'que renasce, um nome que todos respeitam e uma das mais poderosas influências que se exercem atualmente sôbre a vida política e cultural da Itália, chegando mesmo a repercutir fora dela.

No processo judicial que o Estado fascista moveu con­tra Gramsci, o promotor pediu aos juizes que o líder marxis­ta fôsse condenado, alegando: “É preciso impedir êsse cére­bro de funcionar.” A condenação veio, mas não conseguiu impedir o cérebro de funcionar: de dentro do cárcere, Gramsci continuou a observar o que se passava no país e no mundo de seu tempo, lendo o que os seus carcereiros lhe permitiam ler, orientando sempre que possível os companhei­ros de partido com os quais conseguia entrar em contato.

Em meio a inenarráveis sofrimentos e sem se entregar à angústia ou à depressão, Gramsci trabalhava na cadeia: redigiu centenas de notas que, depois da guerra, o editor Einaudi publicou na Itália com o título geral dc Cadernos do C árcere , em vários volumes. Nessas notas, Gramsci po­lemiza e combate as deformações do marxismo. Luta em duas frentes: por um lado, combate as tendências auto-intituladas

i Revista Rinciscita, número de 9 de junho de 1962.

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ortodoxos, que fundam o marxismo sôbre o materialismo vul­gar, sobre o falalismo mecanicista, transformando-o cm uma simples sociologia de tipo positivista (como é o caso de Bukhárln); por outro, ergue-se contra as tentativas de des­tra ir o marxismo enquanto concepção unitária do mundo,, fragmentando-o em partes isoladas e descaracterizadas, assi­miláveis por uma outra concepção, idealista ou especulativa (como é o caso de Croce).1

Em sua dupla polêmica contra o dogmatismo e contra o revisionismo, Gramsci não perde de vista as exigências da urbanidade. E a urbanidade nêle não é um requinte de tole­rância aristocrática: mesmo nas mais duras condições de tra­balho intelectual, o pensador italiano sabia que um certo res­peito básico ao direito do interlocutor expor os seus pontos de vista é uma condição para que o participante de um de­bate não venha a perder o respeito de si mesmo. Sabia, tam­bém, que o calor da polêmica pode, com muita facilidade, su­focar a abertura espiritual exigida pela ciência, a base que tôda concepção antidogmática precisa constantemente renovar.

A história mostra que o conhecimento científico e filo­sófico progride através das polêmicas. E, numa polêmica segundo Gramsci — o ponto de vista mais avançado é sem­pre aquêle que incorpora à sua própria elaboração, ainda que como momento subordinado, as exigências porventura váli­das contidas no ponto de vista do adversário. A virulência,0 caráter personalista de certos debates — observa o filóso­fo -— mostram que a vida nacional em cujo quadro êles se processam ainda se encontra em um nível 'bastante baixo.2

Uma preciosa lição de Gramsci, que os marxistas não devem esquecer, está formulada por êle nos seguintes têrmos: “Na colocação dos problemas histórico-críticos, é preciso não conceber a discussão cientifica como um processo judicial em que há um acusado e um promotor que, por obrigação de ofí­cio, deve demonstrar que o acusado é culpado e precisa ser retirado de circulação”.3

1 Consultar, a propósito, a “Nota sôbre Antonio Gramsci”, redigida por Carlos Nelson Coutinho e pelo autor do presente trabalho, para a edição de Concepção Dialética da História, de Gramsci, lançada pela ed. Civilização Brasileira S.A.2 Passato e Presente, ed. Einaudi, pág. 17.* 11 Materialismo Storico. . . , ed . Einaudi, pág. 21 .

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Estas informações relativas aos métodos gramscianos pa­recem nada ter a ver com a substância do marxismo tal como Gramsci o concebia e aplicava. No entanto, os métodos em que o pensador se baseava para defender a filosofia marxis­ta em suas discussões estavam intimamente ligados à própria natureza de sua concepção do marxismo. Uma concepção es­treita do materialismo histórico, estabelecendo que os gran­des conflitos humanos são conflitos materiais e se decidem no plano da infra-estrutura e no plano da ação prático-política, pode levar à subestimnção do airáfer atiro <ins superestrutu- ras. Gramsci, contudo, sempre combateu cnêrgicamcnte esta maneira estreita de conceber o materialismo histórico.

Em seu esforço no sentido de salvaguardar o caráter concretamente ativo das superestruturas, Gramsci chegou mesmo a elogiar seu contendor ideológico, o filósofo idealis­ta Benedetto Croce, porque êle “atraiu enèrgicamente a aten­ção para a importância dos fatos de cultura e de pensamen­to no desenvolvimento da história”.1 Semelhante modo de ver explica a preocupação de Gramsci no sentido de não deixar subaproveitada a verdade passível de ser extraída de uma po­lêmica: êle compreendia que a verdade implica na clarifica- ção ideológica e na dinamização (bem como na orientação mais eficaz) das forças materiais que fazem a história. Di­zer a verdade — ensinava Gramsci — é sempre revolucioná­rio. É preciso, por conseguinte, que não sejam subestimadas as responsabilidades inerentes à participação nos debates ideológicos e nas discussões científicas: êxitos “práticos” dc momento não podem servir de desculpa para um deficiente aprofundamento na análise filosófico-científica dos proble­mas que se vão colocando para a perspectiva revolucionária.

Quando Marx diz que não se pode julgar uma época pelo que ela pensa de si mesma, êle não quer dizer — ressal­va Gramsci — que os fatos da vida espiritual sejam mera aparência ilusória: não quer dizer que a supere,strutura seja composta de irrealidades. Gramsci insiste no fato dc que o materialismo histórico, para não sacrificar o seu caráter dia­lético, pressupõe o reconhecimento da dinnmicidade e da in­fluência ativa da superestrutura. Com o fito de preservar êste aspecto do marxismo, incorpora crUicamcnte à sua concepção

1 11 Materialismo Storico. . ., ed. c i t , , píig. 2 0 1 .

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do mnterialismo histórico o conceito soreliano dc bloco 1iis~ tórico. O “bloco histórico” gramsciano seria a realização a cada momento da totalidade constituída pela interação entre a infra e a superestrutura; seria a “unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos contrá­rios e dos diversos”.1

Infelizmente, as condições em que Gramsci trabalhava não lhe permitiram desenvolver a sua interpretação do concei­to e nós não podemos saber de que modo êle o teria desen­volvido, liberando-o das conotações irracionalistas que êle assumiu no contexto do pensamento de Sorel. Mas o que nos interessa frisar aqui é o esforço de Gramsci no sentido de, sem abandonar a base essencial do materialismo, elaborar um sistema capaz de proporcionar uma compreensão cada vez mais concreta da eficácia do momento ideológico da praxis humana. Do reconhecimento do valor geral das superestru- turas decorre, na concepção gramsciana, o reconhecimento do valor específico desta superestrutura particular que é a arte.

A arte faz parte da cultura; por sua natureza, seus pro­blemas gerais se inserem no quadro dos problemas da cultu­ra e no quadro das condições superestruturais. Por isso, Gramsci entende que não se deve falar em luta por uma nova arte e sim em luta por uma nova cultura. Para se renovar em profundidade, a arte precisa contar com as condições de uma renovação mais ampla, que envolva o conjunto da vida cultural.

Para Gramsci, entretanto, a arte não se dilui no conjun­to das superestruturas, pois ela possui a sua especificidade. A arte preenche, por exemplo, a função de plasmar as cons­ciências humanas, exercendo, por conseguinte, uma influên­cia educacional. Mas Gramsci ressalva, citando Croce: “A arte educa enquanto arte, e não enquanto arte educativa”.2

Em suas anotações a respeito de autores como Sinclair Lewis e Pirandello, o filósofo italiano distingue nitidamente entre a importância cultural e a importância artística, atribuin­do a ambos os autores uma relevância mais cujtural do que ar­tística. Em Bábbitt — romance de Lewis — Gramsci acha que

1 Note sul Machiavelli. . . , ed. Einaudi, pág. 11.2 Literatura y Vida Nacional, trad. J. Aricó, ed. Lautaro, pág. 26 .

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a “crítica dos costumes prevalece sôbre a arte”.1 Quanto a Pirandello, embora lhe reconheça o mérito de ter ajudado a quebrar hábitos de raciocínio inculcados nos italianos pelo positivismo, vê nêle mais um sofista do que um dialético.2

A importância especificamenle artística também não se confunde com o valor ideológico. “Posso admirar estetica­mente Guerra e Paz de Tolstoi e não partilhar da substân­cia ideológica do livro”, escreve Gramsci.3 E, numa carta à sua cunhada, opina sôbre I F ioretti de S. Francisco de Assis, dizendo que o’s poemas são "belíssimos, frescos, imediatos”, que êles “exprimem uma fé sincera c um amor infinito”, em­bora não tenha sentido lê-los como “um guia para a vida”.4

Se as qualidades especificamente estéticas não se con­fundem com o valor histórico-cultural ou com o valor peda­gógico e com a significação ideológica, ainda menos se con­fundem com a eficácia política imediata ou com a propagan­da. A atividade política em sentido estrito pode justificar que, em determinadas circunstâncias e para que determina­dos obstáculos sejam mais rapidamente superados, as contra­dições do real sejam apresentadas simplificadamente e empo­brecidas em uma representação unilateral. A arte, entretan­to, para poder representar com eficácia a realidade humana, precisa captar-lhe em profundidade os aspectos contraditó­rios essenciais. A representação das paixões humanas na arte — observa Gramsci — não deve ser feita como um “dis­curso de propaganda”; o artista precisa levar em conta “tôdas as suas exigências contraditórias".5

Uma outra distinção, ainda, pode ser lembrada: arte não é linguagem. Para Gramsci, não tem sentido pretender trans­formar a estética em um feudo da lingüística. Combatendo a identificação croceana de arte e linguagem, Gramsci assinala que a lingüística estuda as línguas enquanto "material” da arte e não enquanto arte.6 Esta observação merece voltar a

1 Note sul Machiaveli, ed. c it., pág. 352.2 Literatura y Vida Nacional, ed. c it., pág. 64 .3 Lettere dal Cárcere, ed. Einaudi, carta a Iulca, de 5 de setembro de 1932.4 Lettere dal Cárcere, ed. c it., carta a Tatiana, de 10 de março de 1930.5 Literatura y Vida Nacional, ed. c it., pág. 133.6 Lit. y Vida Nacional, pág. 233.

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ser lembrada quando, em um dos capítulos posteriores dêste livro, tratarmos das concepções estéticas de Galvano delia Volpe.

Vimos que, em várias passagens de seus escritos, Gramsci indica aspectos da especificidade da arte, chaman­do a nossa atenção para aquilo que ela não é . Lamentàvel- mente, faltaram-lhe condições de trabalho para que êle de­senvolvesse, de maneira positiva, a sua interpretação siste­mática daquilo que a arte é, quer dizer, das suas caracterís­ticas positivas particulares como momento específico da praxis humana.

De qualquer modo, há nas anotações de Gramsci refe­rentes à natureza da praxis artística e à sua função social três indicações a que gostaríamos de fazer menção, antes de en­cerrarmos o presente capítulo. A primeira delas se refere à concepção gramsciana de form a e conteúdo na arte; já a aflo­ramos quando falamos de Bukhárin. Tal como Brecht e Lukács, Gramsci tem tanto da forma como do conteúdo uma visão ampla. A forma, para êle, ao contrário do que acon­tecia com Bukhárin, não se confunde com a técnica. E o con­teúdo não se confunde com o tema ou com o assunto, tomado abstratamente. Contra a concepção naturalista de Paolo Mi- lano, ressalva Gramsci: "Por 'conteúdo' não basta entender a escolha de um determinado ambiente. O essencial para o conteúdo é a atitude do escritor. . . em face dêsse ambiente”1. Do ponto de vista adotado por Gramsci, nem a form a é des­locada para um plano puramente subjetivo e nem o conteúdo se reduz à pura objetividade. Conteúdo e forma são unos porém distintos. Comumente, a luta por uma nova cultura — em que se empenham as forças revolucionárias, ao longo da história da humanidade — se manifesta, no plano artístico, antes como luta por um nôvo conteúdo do que como luta por uma nova forma. Por isso, Gramsci nota que os “conteudis- tas” costumam ser mais dem ocráticos e mais progressistas do que os “formalistas”.

A segunda indicação de Gramsci que não queremos dei­xar de registrar aqui concerne ao caráter livre da criação ar­tística. 'Na arte, assinala Gramsci, a sinceridade e a espon-

1 Literatura y Vida Nacional, pág. 110.2 Idem, pág. 45 .

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taneidade se opõem ao mecanicismo.2 Quando o artista abre mão da sua liberdade mais profunda e age como criado que quer agradar ao patrão, aceitando realizar uma obra cujo conteúdo lhe é “matéria surda e rebelde” .—■ já o dissemos na introdução dêste livro — êle não só fracassa artisticamente como se revela um oportunista, Na medida em que o socio- logismo plekhanoviano reduzia a arte ii sua fjenese social, êle justamente não deixava hujar para o reconhecimento concre­to d o caráter livre do movimento da criação artística. É a livre elaboração por um sujeito criador que dá à matéria abs­trata o caráter de conteúdo artístico concreto. Grani sei for­mula a questão com extraordinária clareza, quando escreve: “Dois escritores podem representar (exprimir) o mesmo mo­mento histórico social, mas um dêles pode ser artista c o outro um mero pastichador. Pretender exaurir a questão li­mitando-se a descrever aquilo que os dois representam ou ex­primem socialmente.. . significa não chegar sequer a aflorar o problema artístico”.1

A terceira e última indicação gramsciana de que trata­remos aqui se refere à função social da arte e, especialmente, ao seu papel no âmbito da nação. Trata-se de um complexo de problemas bastante delicado. Procuraremos abordá-lo sem trair as idéias de Gramsci a respeito dêle.

As obras-primas são, notoriamente, excepcionais. A ati­vidade crítica normal, por conseguinte, não pode estar orien­tada para a exclusiva valorização das realizações da grande arte, porque assim se convertería em uma “contínua destrui­ção”.2 Qual o critério que deve norteá-la, então? Gramsci res­ponde que ela deve assumir um caráter "cultural” . Para que a atividade da critica no plano cultural não se torne unila­teral, entretanto, ela precisará fatalmente tratar dos temas próprios da estética. É preciso, portanto, fundir “a luta por uma nova cultura, isto é, por um nôvo humanismo, a crítica dos costumes, sentimentos e concepções do mundo, com a crí­tica estética”.3 Como se poderá realizar esta fusão? Gramsci não o diz.

1 Literatura y Vida Nacional, pág. 12.2 Idem, pág. 37 .3 Idem, págs. 2 3 /2 4 .

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Há, contudo, uma idéia gramsciana em que se esboça o nexo que podería constituir um passo no sentido da referida fusão: a utilização do conceito de nacional-popular como va­lor comum tanto à política cultural como à crítica estética. Gramsci observa que a grande literatura sempre se manifesta nacionalm ente. E observa, também, que não existe na gran­de arte uma atitude basicamente aristocrática: que os grandes artistas são isentos do aristocratismo que consistiría em uma atitude de “condescendente benevolência e não de identidade humana” em face dos homens do povo.1 Quando falta ao ar­tista, em sua criação, a seiva nacional e esta ausência básica de aristocratismo (que o impossibilitaria de se aproximar do povo), êle não consegue se elevar à grande arte. Dai que Gramsci termine por equiparar a universalidade artística ao caráter nacional-popular,2

>< Em nosso tempo, infelizmente, a busca da universalida­de na arte não se realiza, desde logo. em termos nacional- populares, pois o agravamento dos antagonismos de classe tende a impelir a cultura das elites na direção de uma sofis­ticação doentia e relegou a cultura das massas a um nível medieval, mumificando-a. Em face desta situação catastró­fica, Gramsci anseia por uma literatura que reconquiste o mais brevemente possível o público popular, exercendo sôbre êle os poderosos efeitos que só uma literatura universal (na­cional-popular) poderia mesmo exercer. Para consegui-lo, “a literatura deve ser, ao mesmo tempo, elemento atual de ci­vilização e obra de arte”.1 A solução populista de “ir ao povo”, enfatizando o papel da arte como elemento atual d e civiliza­ção, mas fazendo concessões substanciais ao atraso da cons­ciência das massas populares e subestimando as responsabi­lidades relativas à arte e às possibilidades culturais que lhe são próprias, não é uma solução que possa resolver o pro­blema. E a solução esteticista, que seria a solução simetrica­mente inversa, recusando-se a abandonar o terreno em que lida exclusivamente com os problemas da arte como tais, igno­rando as circunstâncias extra-artísticas, não só acabaria por fetichizar os valores estéticos como prejudicaria o desenvol-

1 Literaria y Vida Nacional, pág. 92 .2 Idem, pág. 83.2 Idem, pág. 101.

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vimento de uma autêntica literatura nacional-popular, deixan­do a massa do povo entregue ao consumo exclusivo de uma degenerescência político-comercial, um sucedâneo tremenda­mente empobrecido da literatura nacional-popular: a litera­tura (ou subliteratura) de folhetim.

Gramsci recusa-se, em principio, tanto a ignorar como a cortejar o público massivo da lileralttra de folhetim. Em certos momentos, parece atribuir lhe de maneira demasiado, exclusiva a missão de operar em profundidade, historicamen­te, a transformação da literatura em geral, ( t 'f.: "Somente entre os leitores da literatura de folhetim pode ser seleciona­do o público necessário e suficiente para criar a base cultu­ral da nova literatura” ) .1

Os problemas relativos à dem ocratização da cultura e relativos ao papel das massas na criação de uma nova arte não se colocaram, no final da década de vinte e na década de trinta, apenas para Gramsci. Como veremos nos capítu­los que se seguem imediatamente a êste, êsses problemas fo­ram objeto da reflexão de W alter Benjamin, de Erwin Pisca- tor e de Bertolt Brecht. Em face dêles, determinadas inda­gações não podem deixar de nos ocorrer: Quais serão as re­lações entre a arte popular de uma futura sociedade sociali­zada (em que tenha sido destruído o monopólio cultural) e a arte do presente? Serão puramente de negação? Ou have­rá, a par da descontinuidade, também uma continuidade no desenvolvimento artístico? E, caso reconheçamos a continui­dade, não deveremos reconhecer à intelectualidade de tipo tradicional (existente nas sociedades divididas em classes) possibilidades dela também vir a desempenhar algum papel significativo na criação da arte do futuro, na passagem das presentes condições culturais às condições culturais em que se haverá de criar a “nova literatura”?

Os méritos, na arte, não se contrapõem à necessidade histórica ,que leva as obras e os autores a exercerem uma in­fluência mais profunda. A busca da qualidade artística (isto é, da riqueza gnoseológico-estética), se levada a cabo com rigor e seriedade, é um caminho para o artista elevar a sua produção ao nível de fôrça cultural e de necessidade histó-

1 Literatura y Vida Nacional, p á g . 3 1 .

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rica. É uma possibilidade que se abre aos artistas do pre­sente para êles ajudarem a plasmar a arte de amanhã.

A aparelhagem conceituai de Gramsci nem sempre lhe terá permitido levar em conta êste aspecto da questão. Há uma de suas anotações, por exemplo, em que o vemos acolher certa contraposição mecânica entre o mérito e a necessidade histórica. Gramsci não só cita e endossa a afirmação de Bal- densperger de que os grupos sociais "criam as glórias segun­do as necessidades e não segundo os méritos”, como ainda acrescenta: "Ela pode se estender também ao campo li­terário”.1

Não se trata, evidentemente, de um ponto essencial do pensamento estético gramsciano. Mas achamos conveniente referi-lo aqui para que se veja como, na época, o problema da função social da arte apresentava aspectos obscuros e de­ficientes mesmo na compreensão dos mais lúcidos estetas marxistas.

1 Passato e Presente, pág. 215.

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16Benjamin

A . despeito da feição escolástica que o stalinismo pas­sou a lhe dar desde o princípio da década de trinta, o mar­xismo não ficou inteiramente privado do seu poder de in­fluenciar alguns intelectuais de origem e formação burguesa, fecundando-lhes a reflexão, mesmo quando não lhes conse­guia a integral adesão.

Um dêsses intelectuais de origem e formação burguesa que, entrando em contato com o marxismo, embora não ade­rindo completamente à visão marxista do mundo, soube utili­zar e problematizar inteligentemente temas do pensamento marxista, e não abandonou os conceitos marxistas mesmo no período da ascensão do stalinismo, foi o crítico alemão W alter Benjamin.

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Benjamin era um judeu livre-pensador, leitor de Kafka, Rilke e Proust, apreciador de Paul Klee e de Bertolt Brecht. Teve um fim trágico: ao tentar atravessar a fronteira da França com a Espanha, fugindo das tropas nazistas inva­soras, foi detido e, ante a ameaça de ser entregue aos carras­cos hitlerianos, suicidou-se, em 26 de setembro de 1940. T i­nha, então, 48 anos.

Benjamin era um arguto observador dos problemas da arte e um estudioso do pensamento marxista. No final de 1926, êle chegou a fazer uma visita à União Soviética. Mas nunca entrou para o Partido Comunista. Sua atitude em face do marxismo (Benjamin leu, com entusiasmo, História e Consciência d e C lasse de Lukács) era de interêsse, de sim­patia mesmo; porém êle jamais se identificou de todo — como dissemos — com a concepção marxista do mundo. O que não o impediu de formular idéias importantes para o estudo da evolução da estética marxista.

Segundo Benjamin, a arte trouxe da sua origem certa herança da função ritualística que teve como magia, nas épo­cas mais primitivas da história da humanidade. A esta he­rança, liga-se uma aura que envolve as obras de arte, dando- lhes um caráter de “aparição única de uma realidade longínqua”.1

Na medida em que ainda não se desvinculou inteira­mente da serventia religiosa, ritualística, a obra de arte se refere de fato a uma realidade longínqua, a um ser distante, inaprcximável (precisa ser inapvoximável para ser objeto de um culto) . O critério fundamental para julgar uma obra de arte “aureolada” só podia ser o da autenticidade: não tem sentido cultuar falsos deuses. A Gioconda de Leonardo da Vinci é ela só e não se confunde com qualquer das suas có­pias, por mais perfeitas que sejam as cópias.

No nosso tempo, contudo — observa Benjamin — vem- se operando uma revolução, uma transformação radical nas condições de vida, acarretando profundas conseqüências para a arte. A obra de arte entrou no tempo da sua reprodutibili- dade técnica.

r Oeuvres Choisies, Walter Benjamin, trad. Maurice de Gandillac, ed. Julliard, vol. 1, pág. 2 01 .

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A aura tende a desaparecer rapidamente e só sobrevive em estado de agonia. Contemporânea do socialismo moder­no, surgiu a arte cinematográfica; e, no cinema, a técnica de reprodução de uma obra não é urna condição exterior, mecâ­nicamente acrescentada à produção com o fito de dar maior difusão à obra: é uma técnica fundada na própria técnica de produção.

A obra de arte cinematográfica, por outro lado, alcança um público muilo mais vasto do ipie (]tinli|ucr outro tipo de obra de arte cm épocas precedentes, A participação quanti­tativa de um público consumidor Im ensaiiienle maior, além disso, resulta num modo de parlicipnção qunlltnllvnmcnte nôvo, por parte do consumidor, no desenvolvimento da arte. Através do divertimento, as massas populares adquirem há­bitos, mudam seu modo de pensar ou de proceder. O poder da arte sôbre as massas cresce, mas o poder das massas con­trolarem a produção artística não cresce, automàticamentc, numa proporção paralela, dado o baixo nível de consciência a que as massas foram relegadas pela exploração nas socie­dades divididas em classes.

A ignorância das massas populares quanto às suas exi­gências e quanto às suas possibilidades é cultivada pelas clas­ses dominantes, com vista à manutenção dos privilégios des­tas últimas. E a arte é envolvida nas manobras das classes dominantes. Interêsses comerciais e industriais influem, de maneira inequivocamente política, sôbre a produção artística.

Nas novas condições, o critério da autenticidade perde a sua razão de ser. “Desde que o critério da autenticidade não é mais aplicável à produção artstica, tôda a função da arte se acha subvertida. Em lugar de se basear no ritual, ela agora se baseia em outra forma de praxis: a política' d

Os reacionários — especialmente os fascistas — pro­curam evitar que esta situação seja devidamente compreendi­da, procuram escamotear a significação política global da arte e até procuram estetizar a política. Aos valores humanos, os estetas fascistas sobrepõem valores derivados de uma con­cepção doentia e arbitrária do belo. D ‘Annunzio chamava a

i Idem, tbidem, pág. 205 .

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guerra de “fecunda matriz de beleza e de virtude” . Mari- netti saudava a guerra porque ela enchia os campos com as “orquídeas flamejantes” das metralhadoras e porque ela fa­zia poemas sinfônicos com o som dos canhões e o cheiro dos cadáveres em decomposição. A beleza (fetichizada) se trans-, forma em álibi ou mesmo em arma contra o humanismo. Esta estetização da política (com o embelezamento fascista da guerra) exige uma réplica: “A resposta do comunismo é a de politizar a arte”.1

Tomando consciência das implicações políticas que a criação artística possui (e possui independentemente dos de­sígnios subjetivos dos artistas), os criadores estéticos pode­rão orientar suas criações no sentido de não compactuar ja­mais com qualquer desumanidade política.

Falando a respeito destas suas idéias, o próprio W alter Benjamin lhes apontou a vantagem fundamental: “elas não podem servir a nenhum projeto fascista”.2 Aparentemente, êste antifascismo visceral das teorias de Benjamin seria uma qualidade meramente circunstancial, que só teria tido plena vigência na época em que se lutava para derrotar Hitler e Mussolini. Mas o fascismo de Hitler e Mussolini não foi senão uma das expressões de um reacionarismo extremo, de um fascismo genérico, que pode assumir outras formas e que existe sempre, potencialmente, nos sistemas que sancionam a divisão da sociedade em classes e a fragmentação da au­têntica comunidade humana.

As considerações estéticas de Benjamin estavam certas e continuam a ser corretas. São, contudo, insuficientes. Quando o crítico alemão nos diz que a arte precisa se politi­zar para poder acompanhar com eficácia a transformação da sociedade, êle está dizendo uma verdade geral que, porém, exige sua concretização. Não basta que os artistas compre­endam que devem orientar seu trabalho criador de acordo com razões que não façam abstração das perspectivas políti­cas que os envolvem: o problema estético surge quando êles se perguntam como a arte deve se politizar.

1 Idem, ibidem, p á g . 2 3 5 .2 Idem, ibidem, p á g . 1 9 5 .

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r

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E as experiências de Erwin Piscator, com seu Teatro Proletário, mostram que um grupo de artistas inteligentes, cônscio das suas responsabilidades políticas, pode pretender seguir a orientação política revolucionária c não conseguir se­gui-la a contento, por não possuir uma visão particularizada correta das relações entre a arle e a política.

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17Piscator

A ntes de W alter Benjamin indicar o caminho da po- litização da arte como reação contra a estetização da políti­ca (praticada pelo fascismo), a rapaziada do prolctkult na União Soviética, Meyerhold e o grupo do Teatro Proletário de Erwin Piscator, na Alemanha, já se tinham convencido da necessidade de politizar a arte e já tinham, na prática, procurado politizá-la. É possível, mesmo, que as experiências de Piscator tenham contribuído para chamar a atenção de Benjamin para o problema.

Mas as experiências do proletkv.lt e do teatro proletário mostram, precisamente, que a tese geral (de que é preciso politizar a arte) não serve de leme ao artista que se põe a navegar nos mares da arte política. Dc bons princípios ge­néricos estão calçados muitos erros particulares, na matéria.

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A proposição de Benjamin deixa margem para inúme­ras indagações. Há que se transformar tôda a arte em arte política? Mas a arte não deve refletir também os diversos aspectos da realidade não estritamente política? E , se a pa­lavra política está empregada em sua acepção mais ampla, não seria mais justo — ao invés de dizer que a arte deve ser política —- sustentar que ela é sempre política?

As relações entre a arte e a política carecem de ser pre­cisadas. É necessário não perdermos de vista o caráter polí­tico geral da produção artística: o artista produz no interior da sociedade, comunica a sua criação a outras pessoas e in­flui ativamente no movimento da história, ajudando a trans­formar, por seu trabalho, a situação social, o quadro das re­lações entre os indivíduos seus contemporâneos.

A criação artística pode ter vários graus d e influência política. Algumas obras de arte são mais políticas do que as outras, isto é, possuem um grau mais elevado de influên­cia política. Há obras que são até "explosivas” de tão polí­ticas. Mas isso não quer dizer que todas as obras de arte, em nosso tempo, precisem apresentar um determinado coefi­ciente ;* de teor estritamente político para se legitimarem.

O sentido da formulação de Benjamin é o de um brado de alerta. Benjamin adverte os artistas quanto aos perigos que a ilusão do apoliticismo pode acarretar atualmente para êles. E os conclama a explorarem melhor as possibilidades que as condições sociais e tecnológicas abriram, no presente, para o desenvolvimento de uma arte caracterizada pelo ele­vado grau de influência politica.

O sentido mais profundamente válido da advertência de Benjamin está na demonstração de que, ao criarem novas pos­sibilidades para a arte política, as condições da vida moder­na também criaram exigências no sentido de que tais possi­bilidades sejam prontamente exploradas (criando, por con­seguinte, responsabilidades políticas às quais o artista, como tal, não pode se furtar).

Benjamin, entretanto, não chega a abordar os proble­mas específicos da arte política como arte, isto é, se detém nos umbrais da problemática estética vinculada às suas pro­posições políticas. E foi precisamente com essa problemá­tica estética que Erwin Piscator se viu a braços, na década de vinte, bem antes da teorização de Benjamin.

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Piscator procurou fazer uma arte politicamente empenha­da ao máximo. E as experiências de Piscator são elucidati­vas, sobretudo pelo seu radicalism o. Elas nos mostram que, para o artista, ter clareza quanto à direção não significa, automàticamente, ter segurança quanto aos caminhos. Iden­tificado com os anseios do movimento operário e com os ideais do socialismo, Piscator foi levado n colocar a arte direta­mente a serviço da propaganda política,

O teatro de Piscator relegava o autor a uma posição de reduzida Importância i a função do autor era, multas vêzes, a de um mero compilador de dados, ( > teatro assumia a for­ma de uma reportagem, () ifot unictittuhmo, hipertrofiado, já não deixava lugar para a plena Invenção, para n expansão da imaginação criadora do artista. Os fatos brutos sufocavam a ficção. As informações consideradas politicamente úteis eram transmitidas aos espectadores em espetáculos epie re­corriam a uma grande variedade de técnicas, com o fito de evitar a monotonia, a aridez. Letreiros e quadros estatísti­cos eram alternados com canções, projeções de slides e fil­mes. Eventualmente, coros se punham a recitar ou a cantar no meio do auditório, a fim de que o espectador se sentisse envolvido na ação.

Em 1924, Piscator encenou Fahneri ( “Bandeiras” ) de Alfons Paquet, uma dramatização do julgamento de alguns anarquistas realizado em Chicago, em 1886. Assimilando de maneira rígida e sumária os princípios do marxismo, Pisca­tor não avaliava bem a complexidade da concepção marxis­ta: foi levado a inferir dela que o teatro compatível com a estética do marxismo seria aquêle que tratasse dc episódios efetivamente ocorridos na realidade, que mostrasse a signi­ficação política dos referidos episódios e, no interior dêles, mostrasse os indivíduos agindo à base de seus interesses dc classe (as forças materiais que fazem a história) . Por isso, êle concluiu que, “em certo sentido, Fahnen foi o primeiro drama marxista e sua produção foi a primeira tentativa de pôr a nu as forças materiais motivadoras da ação".1

O esquematismo de Piscator é evidente. Trilhando se­melhantes caminhos, êle jamais conseguiría criar senão per-

1 Citado por Martin Esslin em Brecht — lhe num mui hvs work, pág. 24, ed. Anchor Books, New York, 1961.

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sonagens abstratos no palco. Seus personagens nunca po­deríam alcançar o nível da tipicidade a que se refere Lukács, jamais chegariam a unir organicamente uma dimensão uni­versal e uma feição humana singular.

Os efeitos interessantes dos espetáculos de Piscator não chegaram a constituir experiências estéticas profundas e du­radouras para aqueles que os viram. Mesmo no que se refere ao rendimento político, o trabalho piscatoriano se esgotou numa influência muito mais agitacional do que educacional. No que concerne à ação educativa da sua influência políti­ca, a concepção que Piscator pôs em prática em sua arte se revelou deficiente; Piscator não levou em conta a lição de Croce, assimilada por Gramsci: “a arte educa enquanto arte e não enquanto arte educativa.”

O teatro de Piscator se submeteu direta e exclusivamen­te à propaganda política. Na subordinação da arte à polí­tica, Piscator chegou ao extremo de suprimir as categorias especificas da arte como tal, só lidando com categorias me­ramente técnicas e políticas. “Banimos radicalmente a pa- alvra ’arte’ do nosso programa: nossas 'peças’ eram mani­festos com os quais queríamos intervir na ação e fazer política".1

i Le Théaíre Politique, Erwin Piscator, ed. L ’Arche, pág. 38 .

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I o I o

Brecht

O ENCONTRO e a colaboração com Piscator desempe­nharam importante papel na politização de Bertolt Brecht (1898-1955) e na evolução do pensamento filosófico do teatrólogo alemão. O marxismoi a que Brecht se con­verteu era um marxismo carregado de formulações sectárias. Brecht, por sua vez, depois de um período em que sua ideo­logia apresentava traços vagamente aproximados dos da re­beldia boêmia e anarquista, adotou em têrmos bastante cs- quemáticos a concepção marxista do mundo e só aos poucos a foi depurando e refinando.

Como artista e criador estético, Brecht bem cedo com­preendeu que o problema da arte política não era tão simples como supunha o radicalismo de Piscator. No curso de sua atividade de criação artística, Brecht mudou muito: sua obra

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e suas concepções teóricas apresentam diversas fases. Há, por exemplo, o Brecht da primeira fase, o Brecht de Baal, vinculado ao clima espiritual que engendrou o expressionis- mo na Alemanha. Há o Brecht das peças didáticas, o Brecht que adotara um marxismo esquemático e escrevia peças com vistas à educação política dos atores e com vistas ao escla­recimento de questões político-ideológicas. Há o teórico do teatro épico, que, por sua vez, apresenta diversos momentos na sua evolução específica. Há o Brecht das “parábolas”, das “fábulas modernas”, como diz Paolo Chiarini. E, final­mente, há o Brecht da maturidade, o Brecht da versão de­finitiva da Vida de Galileu, o Brecht da M ãe Coragem , aque­le que, segundo Lukács, retoma as linhas mestras do huma­nismo clássico shakespeareano.1

De modo geral, Brecht partilha com Maiacóvski, desde0 início de sua atividade artística, da convicção de que é im­portante procurar renovar as formas da expressão estética. Os novos temas, as novas situações e os novos problemas que caracterizam a vida nas sociedades contemporâneas implicam, por si mesmos, em uma tendência tanto para novos conteú­dos como para novas formas. 'Não é possível — diz Brecht — falar de dinheiro em iambos. O petróleo é rebelde ao es­quema shakespeareano tradicional de cinco atos. Os novos temas pedem uma forma adequada e não o recurso às for­mas antigas, transformadas em clichês. Porém as novas for­mas só podem ser efetivamente criadas a partir da coloca­ção de novos fins artísticos. A arte moderna precisa enxer­gar claramente as finalidades que o mundo atual lhe impõe. E o objetivo da nova arte, para Brecht, deve ser a pedagogia.

Os preconceitos ideológicos difundidos pelas classes ex­ploradoras contribuem para que o desenvolvimento da arte teatral estacione em uma forma na qual a ação que se reali­za no palco envolve o pspectador, leva o espectador a se iden­tificar sentimentalmente com os personagens. No teatro bur­guês típico, as emoções se superpõem ao raciocínio e turvam as águas da inteligência. Brecht não quer absolutamente su­primir as emoções, mas quer suprimir a turvação da inteli­gência que se faz em nome delas.

1 Ensaios Sôbre Literatura, Georg Lukács, ed. Civilização Brasileira.

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Para conseguir a sua finalidade, Brecht se preocupa com a questão da forma (estrutura, gênero) que é capaz de pro­porcionar a clareza dc linguagem adequada à transmissão de um claro conteúdo intelectual: e acaba por concluir que o nosso tempo tende a acolher melhor, através de suas forças vivas e dínAmlru.H, o lealro é/uVo, quer dizer, o teatro que narra a ação cem o recurso excessivo aos elementos ilu~ sionistas,

Brecht sempre considerou que uma das principais obri­gações do dramaturgo em trlnção no público popular era a de jamais subestimar n Inteligência déstr e procurar estimular- lhe a reflexão critica, I lã que mostrar ao espritmlor as con­tradições de seu mundo e ajudá-lo a equnclonA las de modo justo (sem confusão artificial e sem csqucmulisino) para que0 espectador se disponha a superá-las em termos corretos,

Mesmo no período das peças didáticas, na fase cm que concebia e aplicava o marxismo um tanto rigidamente e sem bastante flexibilidade, Brecht jamais aderiu à filosofia dc Marx como um fanático, impulsionado por uma cega crença de tipo religioso. Paolo Chiarini, em seu estudo sôbre o tea- trólogo alemão, acentua isso: “Brecht jamais acreditou fi- deisticamente no marxismo, num ímpeto de entusiasmo: como artesão esperto e desconfiado que era, percebeu ter encon­trado nêle um instrumento capaz de penetrar, mais do que qualquer outro, na trama do mundo moderno, nas relações humanas, na substância da civilização”.1 O marxismo foi, para Brecht, o instrumental teórico adequado para a justa compreensão da sociedade contemporânea e a base filosó­fica a partir da qual se elaborava a visão d o mundo subja­cente às suas melhores peças.

O mundo mostrado pelo teatro épico brechtiano é um mundo que os homens criaram e podem sempre transformar: nêle, os próprios homens aparecem como sêres in ficri, defi­nidos pela interação dialética entre o condicionamento social (elemento objetivo) e a escolha que fazem de si mesmos, a cada instante, dentro do quadro circunstancial dado (elemen­to subjetivo). O espectador não é chamado a reconhecer no palco as profundezas de uma eterna natureza humana; é cha­mado a observar diversas condições humanas históricas.

1 Bertolt Brecht, Paolo Chiarini, cd. Laterza, Bari, 1954, pág. 32.

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Brecht, por conseguinte, quer um teatro que: 1) faça com que os problemas do homem sejam compreendidos a partir da única perspectiva justa, que é a perspectiva histo- ricista; 2) ajudando os homens a compreender suas contra­dições, contribua para êles as superarem, de maneira ativa. “No teatro épico — escreveu o próprio Brecht, em 1936 — as considerações morais só aparecem em segundo plano. Seu propósito é menos a moral do que o estudo”.2

O “estudo”, portanto, deve servir de base para o tea­tro alcançar o objetivo que Brecht lhe atribuira: o objetivo pedagógico. E é interessante observar que, na fase em que Brecht desenvolvia, assim, a sua teoria do teatro épico e atri­buía ao seu teatro a finalidade da pedagogia, o crítico W alter Benjamin começava a elaborar a sua tese a respeito da obra de arte no tempo da sua reprodutibilidade técnica, tese que o levaria a sustentar, conforme vimos, a necessidade de se reconhecer na arte a sua função política. A função política de Benjamin c a finalidade pedagógica de Brecht marcam as preocupações convergentes destes dois espíritos, destas duas personalidades tão diversas: e refletem a mesma preocupa­ção em face da ascensão do nazismo, uma posição basica­mente comum a ambos, um anseio de empenho e lucidez em face da arte do nosso tempo e das suas relações com a política.

Há um ponto, porém, que levou Brecht adiante de Ben­jamin. Benjamin permaneceu no plano teórico geral, quando enunciou a sua tese. Como teórico, não se preocupou com as dificuldades e os perigos inerentes ao programa de elabora­ção de uma arte política, de finalidade reconhecimento pe­dagógica. Brecht, contudo, não era propriamente um teóri­co: era um artista, um homem de teatro voltado, antes de mais nada, para a sua experiência pessoal de criação esté­tica. Suas incursões no campo da reflexão teórica eram de­terminadas pelas preocupações colocadas pelos problemas com que se defrontava ma prática, a cada passo.

Brecht compreendeu que a finalidade pedagógica do tea­tro podia torná-lo enfadonho e destruir-lhe tôda e qualquer eficácia. Em seu contato com as experiências de Piscator, Brecht percebeu que o propósito de “estudo” podia limitar demasiadamente o interêsse suscitado pelo teatro. A utiliza-

2 Êcrits sur le Thécitre, Brecht, ed. L ’Arche, pág. 117.

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çílo das mais variadas técnicas dc divertimento, que pôde observar nos Itslados Unidos da América do Norte durante o seu exílio, fascinou-o pelas amplas possibilidades de alcan­çar o público que abrira para n i liamnda "arte de massas”. li', depois de ter refletido sôbre tudo isso, escreveu, em 1948, o seu Pequeno Orgunoti /mia o Teniro, o mais amadurecido e alentado dos textos em qtit PJtpfli as suas concepções teóricas,

No P rq iirfio t irpanon Brtihf eafatlíoa n função do tea­tro como divertimento) "A luhçáo do teatro, como a de tôdas b í Httes, pempie fnf b de divertir os homens, Semelhante ta­refa sempre lhe conferiu a sttn dignidade particular".*

Ao divertimento correspondem "prazeres simples" e ‘ prazeres complexos". As grandes obras teatrais costumam proporcionar, basicamente, estes últimos; porém não excluem necessàriamente os primeiros. O teatro — como a arte em geral desempenha, em tôdas as épocas, uma tarefa "epi- curista”, na medida em que reabilita o mundo sensorial para o homem, ajudando a evitar que os sêres humanos se deixem iludir pelo excesso de ascetismo ou pelas abstrações hiposta- siadas do intelectualismo.

A função de divertimento na arte é muito importante: Brecht prestou um grande serviço à estética marxista quan­do chamou a atenção de todos para a tarefa "epicurista” que a arte desempenha. Mas não nos parece que o teatrólogo alemão tenha tido uma expressão feliz quando disse que era a tarefa de divertir que sempre tinha conferido ao teatro "a sua dignidade particular”, porque não basta divertir: se uma peça é apenas "divertida”, ainda que ela divirta muito, não tardará a ser esquecida. O próprio Brecht, no desenvolvi­mento do raciocínio exposto no P equeno Ovganon, corrige, na prática, implicitamente, a unilateralidade da sua formula­ção. Pouco após a exposição da tese acima posta sob reser­va, o autor da Vida d e Galiteu situa o divertimento cm ter­mos mais aceitáveis e o apresenta como historicamente con­dicionado.

A experiência histórica nos mostra, diz Brecht, que os modos de divertir variam de acordo com o tempo e o lugar. Através dela, além disso, acrescenta o nosso improvisado mas

Op. cií., pág. 174.

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inteligente teórico, podemos verificar que o êxito das repre­sentações nem sempre estêve ligado ao grau de parecença entre a imagem e seu modêlo. Muito pelo contrário, as re­presentações por vêzes comportaram grande inverossimilhan- ça nas imagens (ao menos aparentemente) . Em sua essência, contudo, as imagens da fantasia, por inverossímeis que pare­çam, só são bem sucedidas quando falam aos homens dêles mesmos. Quando, divertindo-os, instruem-nos, clarificam-lhes as consciências.

Uma representação pode não parecer com o modêlo e, no entanto, pode revelar mais profundamente a essência do modêlo do que a sua reprodução “fiel” . Brecht não desco­nhece o fenômeno. Mas Brecht sabe também que, em nosso tempo, mais do que nunca, é preciso que o artista procure ser claro, que o artista não prejudique a significação do que está dizendo por concessões a um espírito confusionista, Nossa época é uma época difícil, cheia de ardis: o senso comum pode nos arrastar a equívocos e o impulso espontâ­neo de bondade pode ser aproveitado pelas forças que explo­ram a crueldade como um sistema. Numa passagem d’0 Cír­culo d e Giz Caucasiano, o teatrólogo nos alerta explícitamen- te quanto à "tentação da bondade” . Outra peça — A Alma B oa d e Setsuã •— gira em tôrno da impossibilidade de se ser completamente bom para se conseguir ser justo no mundo atual. “O teatro épico — escreve W alter Benjamin — é o teatro do herói surrado. O herói não surrado não atinge a reflexão”.1

Nosso tempo apresenta características que o distanciam bastante das épocas precedentes: êle trouxe um desenvolvi­mento extraordinário e extraordinàriamente rápido para o processo de dominação das forças naturais pelo homem; em virtude da alienação do trabalho humano, todavia, em vir­tude da divisão da sociedade em classes sociais, a domina­ção da realidade social não se desenvolveu de maneira corres­pondente à dominação da natureza. O desenvolvimento tec­nológico logrou memoráveis conquistas, mas elas não estão postas, desde logo, a serviço de todos os homens. A huma­nidade domou a energia atômica, lançou-se à conquista do

i Citado por Paolo Chiarini em Bertolt Brecht, ed. Laterza, 1959, pág. 18.

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espaço cósmico, porém não conseguiu acabar com o flagelo social da fome, não conseguiu superar a situação de pobreza e Kubedesenvolvínienlo cm que vive a maior parte das nações.

O agravamento do desequilíbrio entre o desenvolvimen­to tecnológico, por um lado, r o deficiente aproveitamento do progresso tecnológico pela humanidade como um todo, por outro Indo, malum por estilhaçar n gênero humano, rompen­do-lhe a unidade em prdot Inhin e alinhando n*i próprias ins­tituições m uienp<indeitirn no uunlo capitalista de produção, Engendrou se, hmííií, uma • tUr t ivilbai inual I al crise, por mia v ti, veio a se manifestar tanto un vida material como na produção èspliiiual (Iniluslve un produção artística). E Hrecht procurou fixar-lhe os efeitos no campo particular do teatro, esforçando-se por contribuir para a reconquista tanto da clareza conceituai como da clareza de linguagem,

Brecht observou que a velha técnica de comunicação com o público nos recintos de representação teatral ainda tem qual­quer coisa de ritual mágico (ponto de contato com W alter Benjam in): os espectadores, em trajes domingueiros, rígidos, contraídos, se imergem na penumbra das casas de espetáculo e são desligados de sua existência cotidiana. O recurso a esta velha técnica já não consegue divertir o espectador e já não consegue instruí-lo em coisa alguma. Além disso, o pú­blico que vai ao teatro se restringe a setores cada vez mais reduzidos das camadas privilegiadas da população. Mesmo os indivíduos que têm condições econômicas e financeiras para ir ao teatro (e que são cada vez menos numerosos) sofrem as conseqüências alienadoras decorrentes do fato de viverem em uma realidade social indomada e em uma comunidade di­lacerada, tornam-se mais ou menos neuróticos e começam a trocar as casas de espetáculo teatral, em número crescente, por outros recintos que lhes proporcionem divertimentos mais excitantes. O teatro que pretenda concorrer com os diverti­mentos mais excitantes que a burguesia vai buscar fora das casas de espetáculo é um teatro que renuncia à sua mais alta missão cultural, abandona a riqueza do conhecimento que pode transmitir e se dedica à exploração do meramente su­gestivo, do arbitràriamente “chocante” ou do “exótico” e do pitoresco. E não conseguirá jamais escapar à sufocante tu­tela da burguesia.

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A crise trouxe consigo, entretanto, a possibilidade da sua superação. Permanecendo no campo específico do tea­tro, Brecht esforçou-se por definir os elementos que manifes­tam essa possibilidade e por indicar os meios capazes de con­cretizá-la. Ao público passivo e atomizado de burgueses ri­cos que se imobilizam nas poltronas das casas de espetáculo, sem uma comunicação mais ampla de uns com os outros, de­ve-se substituir — diz Brecht — uma platéia popular, menos preformada, mais espontânea, mais “autêntica” . À incapaci­dade de compreender a evolução da realidade social do capi­talismo (incapacidade inerente ao ponto de vista burguês), deve-se substituir uma consciência de nôvo tipo, conceitual- mente aparelhada para o entendimento das contradições so­ciais e para a apreensão do sentido necessário da transfor­mação social: o materialismo histórico pode fornecê-la. À técnica que buscava colocar o público "em transe”, deve-se opor uma linguagem que force certo distanciamento do espec­tador em relação àquilo que está sendo representado para êle.

O público não deve ser arrastado pela ação represen­tada como pela correnteza de um rio. Os acontecimentos da trama devem se encadear, mas os elos dêsse encadeamento devem permanecer bem visíveis. Para colocar diante do pú­blico, distanciadamcntc, bem visíveis, os elos de encadeamen­to, Brecht se inclina para as formas da comédia. "A comé­dia — diz êle no fim da vida a Ernst Schumacher — admite soluções. A tragédia (caso ainda se suponha, de modo ge­ral, que ela é possível) não as admite.1 O distanciamento deve contribuir para dar aos elementos da realidade que se quer mostrar — e transformar — as proporções exigidas pela perspectiva a partir da qual ela é enfocada. “A arte não dei­xa de ser realista por modificar as proporções; só deixa de sê-lo quando as modifica de modo tal que o público fracassa­ria, na vida real, caso se baseasse nas imagens representa­das para entender a realidade e agir nela”.2

A concepção brechtiana de uma linguagem com distan­ciamento e de uma técnica artística capaz de proteger a cla­reza do conteúdo inteligível contra a ambigüidade dos sen-

1 Citado por Paolo Chiarini em Bertolt Brecht, ed. Laterza, 1959, pág. 62 .2 Op. cit., pág. 205 .

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timentos em estado “bruto” é uma concepção que leva Brecht a distanciar-se bastante de Maiacóvski, poeta russo que tinha com o teatrólogo alemão, como os leitores devem estar lem­brados, a preocupação comum da renovação formal. Brecht coloca o problema da forma em termos mais precisos e mais profundos do que Maiacóvski. porque vê a forma em seú nível de significação histórico-social. A forma, para o tea­trólogo alemão, é bàsicamente a estrutura, o gênero, e não o conjunto de artifícios estilísticos ou decorativos mobiliza­dos por uma subjetividade isolada, por um "temperamento”. Para Brecht, não bastava "renovar" a forma do teatro tra­dicional e dar uma feição pessoal nova à estrutura arcaica: era preciso criar uma nova estrutura, um nôvo gênero, que -—• à falta de melhor designação — êle chamou de teatro épico. Em Brecht, a form a, analisada em seus elementos “intelec­tuais” ou “racionais”, aparece em sua ligação dialética essen­cial com a problemática do conteúdo.

Brecht não se deixa absolutamente empolgar por ne­nhum programa abstrato de renovação formal e nem encara com simpatia os movimentos de renovação formal inconse- qüente. A bandeira da renovação formal pura e simples tem

, servido para disfarçar, muitas vêzes, o vazio e a impotência conform ada de uma arte em colapso. “Em seu irremediável e acelerado declínio — escreveu o teatrólogo — a dramatur­gia e o teatro burgueses esforçaram-se por dar novamente, através de uma mudança brutal na forma, algum atrativo a um conteúdo social reacionário inalterado. Êstes esforços pu­ramente formais, êstes jogos desprovidos de qualquer signi­ficação, levaram os nossos melhores críticos a reclamar o es­tudo dos clássicos”.1

1 Op. cit., pág. 2 7 7 .

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19Lukács

A

E ntre os “melhores críticos” que foram levados, se­gundo Brecht, a “reclamar o estudo dos clássicos”, não é pos­sível deixar de enxergar o pensador húngaro Georg Lukács, nascido em 1885.

Antes de sua adesão à perspectiva marxista, Lukács já demonstrara ser um crítico de arte de notável acuidade in­telectual e um teórico de portentosa cultura estética. Num livro de inspiração neokantiana (A A lm a e as Form as) e num outro livro de inspiração neo-hegeliana (A Teoria d o R o­m ance), expusera idéias que vieram a ter grande influência JtB evolução da crítica européia.

Na Teoria do Romance, Lukács estudava o romance como forma típica dos tempos modernos. Procuraremos re- iumir aqui algumas das idéias centrais dêste livro da fase

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pré-marxista de Lukács, pois se trata de um trabalho que veio a exercer, mais tarde, apreciável influência sôbre um dos mais significativos estetas marxistas contemporâneos: Lucien Goldmann.

Na antiga epopéia grega, segundo o Lukács da Teoria do Rom ance, o herói não era um indivíduo essencialmente problemático e suas relações com o mundo em que vivia não eram essencialmente conflitivas. “Quando o indivíduo não é problemático, seus fins lhe estão dados, numa evidência ime- diata, e o mundo do qual êste mesmos fins construíram o ar- cabouço pode lhe opor dificuldades e pode lhe colocar obstá­culos no caminho da sua realização, mas jamais o ameaça com um perigo interior grave”.1

O romance moderno, contudo, exprime condições bem diversas das do mundo em que se produziu a epopéia. No mundo moderno, segundo o Lukács de 1915, “ser homem é ser solitário” . O indivíduo se tornou um ser essencialmente problemático: suas relações com o mundo excluem a possi­bilidade dêste lhe proporcionar fins claros e autênticamente humanos para a sua ação. A incoerência estrutural do mun­do moderno se introduz no universo das formas artísticas e engendra a forma do romance. O mundo grego <— lê-se na Teoria do Rom ance era um todo fechado e perfeito: o nosso não o é. Sabemos hoje, desde Kant, Fichte e Hegel, que o espírito humano é criador e autocriador. Sabemos que “nosso pensamento segue o caminho infinito da aproxima­ção sempre inacabada”.2

Na epopéia, havia uma identidade de ser e destino: a ação do herói realizava naturalmente o seu destino, uma vez que êle era, a priori, portador de valores autênticos. O poeta épico e seus leitores (ou ouvintes) discerniam claramente os valores de que o herói era portador e que determinavam os fins da sua ação. No romance moderno, o herói busca va­lores autênticos, justamente porque não os traz em si desde o início. A própria acepção da palavra herói se transforma.0 herói da epopéia nunca está verdadeiramente sozinho, ou, pelo menos, seu isolamento nunca é trágico, porque mesmo

1 La Theorie du Roman, ed. Gonthier, trad. Glairevoye, pág.- 73 . .2 Op. cit., pág. 24 .

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na solidão está com os deuses. O romance, porém, segundo a Teoria do Rom ance, é a epopcia de um mundo sem deuses.

Em nossos dias, Lucicn Goklmann, interpretando a T eo­ria d o Romance c procurando integrar suas concepções ao marxismo, escreveu que o romance é, para Lukács, a histó­ria da busca degradada de ralares autênticos cm um mundo degradado. Entre o herói problemático do romance e o mun­do burguês há algo em comumI u degradação. E há também uma contradição Irredutível! o herói não se adapta à degra­dação do mundo e busca valores autênticos que o mundo bur­guês não comporta. Ao contrário do herói da tragédia, o herói do romance participa da degradação e tem um terreno em comum com o inundo, no qual se move. No romance, há no mesmo tempo ruptura e comunidade entre o herói e o mundo. Na epopéia só há comunidade, e na tragédia só há ruptura.1

O primeiro livro de Lukács após a sua adesão a uma perspectiva marxista foi História e Consciência d e C lasse, de 1922. Aprofundando o seu exame do mundo moderno e ado­tando o ponto de vista da classe operária em suas análises, Lukács chegou à conclusão de que a organização capitalista da produção havia levado às suas mais extremas conseqüên- cias o fenômeno da reificação. Na atividade dos homens, as relações entre êles haviam assumido, sob o capitalismo, a feição genérica de coisas (coisa em latim é res: daí o têrmo re ific a çã o ) . O fruto do trabalho criador da humanidade ha­via se desligado de tal modo dos homens-produtores que aparecia diante dêles como objeto estranho, como corpo do­tado de vida própria, de movimento autônomo e inumano. A criação chegara a se defrontar com os seus criadores como um monstro independente dêlès. O mundo que os homens haviam construído lhes escapava e lhes era hostil.

Lukács compreende que a reificação — conceito que engloba o conjunto dos fenômenos acima enunciados — re­sulta da divisão do trabalho, da dilaceração da autêntica co­munidade humana e do aparecimento das classes sociais. Sabe que o capitalismo levou a divisão da espécie humana às últi­mas conseqüências e acentuou a fragmentação do trabalho

i1 Pour une Sociologie du Roman, Lucien Goldmann, ed. Gallimard,pA«. 17.

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até o ponto de tornar o trabalhador, na produção industrial, um mero apêndice da máquina. Sabe, também, que a solidão trágica do homem moderno nasce das condições a que che­gou o processo da rei/icapão nestes últimos cento e cinqüen- ta anos. ‘‘A filosofia grega certamente conheceu os fenôme­nos da reificação, mas não os viveu como formas universais do conjunto do ser’’.1 Esta explicação das diferenças funda­mentais existentes entre o mundo burguês atual e o mundo grego antigo é, sem dúvida, mais precisa e mais profunda, do ponto de vista histórico e sociológico, do que a análise das mesmas diferenças desenvolvida na Teoria do Romance,

História c Consciência d e C lasse , entretanto, não for­mula expllcitamente uma teoria estética e não concede ao tra­tamento dos problemas da arte a importância central que a Teoria do Rom ance concedia. De certo modo, é possível con­siderarmos que a estética implícita na concepção geral de História e Consciência dc C lasse tende a ser, pelo menos em seus pontos de partida, uma estética sectária. No que con­cerne às suas idéias políticas, é preciso não esquecermos que Lukács se achava, na época, sob a influência dos formula­ções de Rosa de Luxemburgo, que supunha achar-se iminen­te uma revolução de caráter proletário em tôda a Europa. Mas, além disso, Lukács adotava, em tal período, uma teo- ria^ o conhecimento de pronunciado sabor hegeliano, segun­do a qual o processo de desenvolvimento da consciência hu­mana se encaminhava para alcançar, historicamente, uma identidade d o sujeito e d o objeto do conhecim ento. Seme­lhante concepção gnoseológica leva a crer que, em um tem­po vindouro, o saber entrará na posse completa da essência do real. Isso ocorrerá depois que, prosseguindo na domina­ção da natureza, a humanidade se reunificar e superar o pon­to de vista irredutivelmente particularista das classes sociais e de suas respectivas ideologias. O proletariado moderno é o parteiro dêste estado maravilhoso de plenitude do conhe­cimento: “é somente com a entrada em cena do proletariado que o conhecimento da realidade social encontra o seu aca­bamento: com o ponto de vista de classe do proletariado, che-

1 Hirtoire et Conscience de Classe, ed. Minuit, trad. Kostas Axelos e J . Bois, pág. 142.

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ga-se a um ponto de vista a partir do qual a totalidade da sociedade se torna visível”.1

Lukács sabe, certamente, que o ponto de vista do pro­letariado ainda não é o ponto de vista da sociedade reunifi- cada; mas entende que, com a perspectiva da classe operá­ria, a teoria se encontra em condições de se apoderar, de ma­neira im.ediãta e adequada, do processo da revolução social.2

A teoria do conhecimento adotada em H istória e C ons­ciência d e C lasse inclinava seu autor para uma superestima- ção (voluntarista) da consciência de classe do proletariado. Os problemas relativos à perspectiva da classe operária en­quanto perspectiva particular, de classe, sofriam uma simpli­ficação. E o papel atribuído à arte revolucionária — isto é, à arte ideologicamente afinada com a perspectiva da revo­lução proletária •— deveria ser, no essencial, apenas o de agir sobre o estado efetivo da consciência psicológica dos tra­balhadores a fim de levar cada trabalhador, individualmente considerado, a ascender à consciência de classe do proleta­riado, a partir da qual todos os problemas da sociedade logo se lhe haveríam de esclarecer.

Após a publicação de H istória e Consciência d e C lasse e após a derrota na Hungria do govêrno Bela Kun (do qual participara), Lukács sofreu fortes críticas e acabou por fazer autocrítica, renegando a obra. Instalou-se, tempos depois, na União Soviética, onde realizou aprofundados estudos das obras de Marx, de Engels e de Lênin. Juntamente com o crí­tico e historiador soviético Mikhail Lifschitz, Lukács coligiu todos os textos em que Marx e Engels afloraram os proble­mas da arte e da literatura, reconstituindo, através de uma cuidadosa análise crítica de tais textos, o pensamento esté­tico dos fundadores do materialismo histórico.

Lifschitz -—> que sempre mereceu de Lukács a maior es­tima e o maior respeito -—■ observou que, a despeito dos es­forços de Paul Lafargue, de Franz Mehring e de George Plekhânov, o nível da literatura marxista sofreu uma sensí­vel queda no tempo da Segunda Internacional. —-

Enfrentando resolutamente o problema colocado por Marx (da sobrevivência da arte grega), Lifschitz procurou

v1 Op. cit., p á g . 4 0 .2 Op. cit., p á g . 1 9 .

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dar-lhe uma solução historicista: afirmou que o esplendor da arte da antiga Grécia (que lhe deu a sua durabilidade) não foi ensejado pelo baixo desenvolvimento das forças produ­tivas ou pelo atraso econômico e sim ocasionado pelo baixo grau de aprofundamento das contradições sociais.1

Ao se defrontar, contudo, com o alto nivel artístico —> lisamente reconhecido — de certos ramos da produção ar­tística na sociedade capitalista (sociedade na qual o antago­nismo das classes chegou a uma profundidade inédita), Lifs- chitz se limita a assinalar que o conteúdo da grande arte em nosso tempo é hostil ao mundo em que ela se engendrou. Sua explicação para o fenômeno da arte grega se revela, assim, insatisfatória. Se uma sociedade cujas contradições de classe chegaram a ser tão profundas como a nossa pode produzir uma arte de alto nível (ainda que se trate de uma arte “de oposição” ), não há como sustentar que o elevado padrão estético que garantiu a durabilidade da arte grega tenha decorrido da inexistência de contradições sociais pro­fundas, amadurecidas, na época de Homero, ou mesmo na época de Esquilo ou Sófocles.

Lukács não se prendeu às formulações de Lifschitz. Uti­lizou-lhe as investigações, mas não ficou nelas. Em sucessivas polêmicas, com críticos e autores soviéticos, com Brecht, com Ana Seghers, com os defensores de Joyce e John dos Passos, Lukács foi desenvolvendo suas próprias concepções acer­ca da arte, do realismo e dos fundamentos da estética marxista.

Em face de Brecht, que acentuava a descontinuidade do desenvolvimento artístico e cultural na era contemporânea (chamando a atenção para as exigências do n ôv o ), Lukács enfatizou a continuidade, a vinculação dos esforços de reno­vação do presente às experiências e realizações do passado. Chamou a atenção para a unidade essencial de conteúdo e forma, tal como a mesma podia ser estudada na obra dos clássicos.

Em 1937, às vésperas da tempestade com que o nazis­mo varreu a Europa, Brecht e Lukács se achavam refugiados na União Soviética e lá polemizaram a respeito do conceito de realismo que cada um dêles defendia. Lukács criticou o

1 Revista Recherches Internationales à la Lumière du Marxisme, 1963, “Esthétique” .

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expressionismo e acusou as tendências expressionistas de sa­crificarem o realismo na arte e na literatura; apresentou como expressão maior do realismo as obras dos grandes romancis­tas do século X IX . Para Lukács, um afastamento das linhas mestras da estrutura romanesca das obras-primas de Balzac e Tolstoi representaria, na literatura contemporânea, uma ine­vitável corrupção do realismo e uma queda no nível artístico.

Brecht não se conformou com o apêgo de Lukács à es­trutura das obras dos realistas clássicos do século X IX : “O realismo — escreveu o teatróiogo alemão — não é uma pura questão de forma. Copiando os métoco; daqueles realistas, deixaremos de ser realistas nós mesmos ’.1 E expôs a sua própria concepção do realismo: "Realista significa: pôr a nu a estrutura das causas que regem a vida social; desmascarar0 ponto de vista imperante como o ponto de vista da classe dominante; adotar, para escrever, o ponto de vista da classe que preparou as soluções mais amplas para os problemas mais prementes que afligem a sociedade humana; salientar o as­pecto dinâmico do desenvolvimento social; visar um tipo de concreto que encoraje à abstração generalizante”.2

Depois que Brecht formulou contra Lukács a acusação de um excessivo apêgo à estrutura do romance realista do sé­culo X IX . semelhante acusação voltou a se repetir em nu­merosas ocasiões. Lukács não estaria, realmente, identifican­do de maneira errônea o realismo com uma determ inada es­pécie de realismo (a dos grandes autores clássicos do século X IX )? Lukács não estaria, de fato, comprometendo a atitude geral do realismo com uma manifestação particular desta atitude?

A concepção de Brecht pretende rejeitar mais radical­mente do que a de Lukács o compromisso da atitude realista com qualquer estilo particular. De certo modo, porém, não será a caracterização do realismo por Brecht mais “fechada” e mais rígida do que a caracterização lukacsiana? A partir do ponto de vista brechtiano, será possível considerar realista um romance como O L eopardo de Lampedusa? O autor dêste romance, bastante identificado com a perspectiva de seu per-

1 Brecht — On Theatre, trad. de John Willet, ed. Methuen, London, pág. 112.2 Idem, ibidem, pág. 109.

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sonagem principal o (príncipe de Salina), encarando com me­lancolia crepuscular a transformação da sociedade, temperan­do de lucidez o seu conservadorismo, estará, por acaso, ado­tando o ponto de vista da classe que preparou as soluções mais amplas para os problemas mais prementes que afligem a sociedade humana?

Além disso, cabe perguntar: será a atitude realista in­diferente à tensão das tendências estilísticas contraditórias? Será o conteúdo indiferente às opções formais para a sua manifestação? Se admitirmos que o conteúdo da atitude rea­lista comporta indiferentemente qualquer forma para mani­festar-se, estaremos' lidando com concepções metafísicas de conteúdo e forma. Conteúdo e forma serão representações abstratas de entidades independentes, cuja ligação orgânica jamais será efetivamente compreendida.

Brecht se defrontou com tal problema (o problema das relações entre o conteúdo e a forma) no curso da sua ativi­dade de criação artística, como homem de teatro, e lhe for­mulou soluções mais ou menos empíricas, com vistas, dire­tamente, ao prosseguimento do seu trabalho. Êsse empiris- mo de Brecht o situou em uma posição de vantagem sôbre W alter Benjamin, como vimos, quando ambos abordaram as questões relativas à dificuldade em precisar e definir a arte

\ política por que ansiavam. O mesmo empirismo, entretanto, acarretou uma limitação para a perspectiva de Brecht quan­do se tratou de um problema de filosofia da arte, quando foi preciso aprofundar a compreensão genérica (abstrata) das relações entre as categorias estéticas de forma e conteúdo.

Neste ponto, como filósofo, Lukács levou vantagem sôbre Brecht e, amparado não só em seu conhecimento prá­tico da história da arte como no seu conhecimento teórico específico das questões estéticas, elaborou conceitualmente, sistemàticamente, uma interpretação sua, aprofundada, das relações entre a forma e o conteúdo na arte. De saída, Lukács recusou a discussão das questões da forma nos níveis em que é menos significativa: evitou a análise pouco compensa- dora das sutilezas formais como manifestações psicológicas individuais ou como flutuações estilísticas singulares, irracio­nais. Brecht tivera o mérito de colocar a discussão dos pro­blemas da forma em têrmos que facilitavam, para Lukács, a discussão: a idéia de um teatro épico punha em questão, des-

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de logo, os gêneros artísticos, a validade de estruturas for­mais da maior significação sócio-histórica. Lukács, enfren­tando o problema do revolucionatncnto dos gêneros, coloca­do por Brecht, concluiu pela necessidade da preservação da integridade dos gêneros e esforçou-se por “aplicar a teoria do reflexo, da dialética marxista, ao problema da diferen­ciação dos gêneros”.1

Ao defender a integridade dos gêneros, Lukács se filia á tradição dc Hegel e de Lcssing. 1 legei já dedicara à ca­racterização dos gêneros páginas de excepcional lucidez, que ajudavam a compreender a importância de certas opções for­mais para a plena realização e para n eficaz manifestação de um dado conteúdo. E, antes de I legei, Lcssing já advertira: "Um poeta pode ter feito muito e, no entanto, não ter feito o bastante. Não é suficiente que sua obra tenha efeito sôbre nós: deve ter outrossim aqueles efeitos que, de conformidade com o gênero, lhe competem de direito; deve ter êsses em particular, e todos os outros não podem compensar de modo algum a sua falta; espccialmente quando o gênero é de tal importância, dificuldade e valor que todo trabalho e todo em­penho seriam baldados, se nada mais produzissem salvo efei­tos tais que poderíam ser igualmente obtidos por um gênero mais fácil e que não demandasse tantos esforços”.2

Para Lukács, a relação entre os problemas básicos da forma (tomada a forma em sua acepção ampla de estrutura e analisada ao nível do gênero) e os problemas básicos do conteúdo é uma relação dialética e não deve ser encarada em têrmos reducionistas. A transformação da forma não é um epifenômeno da transformação do conteúdo: a forma possui as suas próprias exigências e a sua peculiar eficácia. Na me­dida em que uma determinada forma artística se estrutura dc maneira a permitir que se experimente, de modo imediato c concreto, as relações humanas reais enfocadas em uma obra dc arte, tanto mais segura é a sobrevivência desta obra.3

A eficácia da forma não está em que ela deva obedecer n quaisquer normas estéticas imutáveis, apriorísticas, e sim

/* l.e Roman Historíque, Lukács, trad. Robert Sailley, ed. Payot,p á i . 13.* Lessing — de teatro e literatura, trad. J . Guinsburg, ed. Herder,SBo Paulo, pág. 81 . v* Çontributi alia Storia delVEstetica, ed. c it., pág. 476.

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no fato de que ela possa conferir às relações humanas mais essenciais e mais típicas, na sua configuração, o máximo de expressão e de individualização. "A vitalidade e a duração de uma obra e dos tipos nela representados dependem, em última análise, da perfeição da forma artística”.1

A autonomia do movimento da forma, entretanto, tem os seus limites estabelecidos pelas exigências fundamentais da transformação do conteúdo. Num acerto de contas con­clusivo, podemos dizer que a forma tem o seu desenvolvi­mento subordinado às modificações essenciais do conteúdo, embora semelhante subordinação nada tenha de mecânico ou servil. De maneira alguma poderiamos dizer que a forma seja um efeito passivo do conteúdo, tal como de maneira al­guma poderiamos dizer que arte em geral seja um produto automático de determinadas condições históricas materiais. Dois axiomas fundamentais da dialética precisam ser sempre lembrados: 1) Não existem relações de causa e efeito pura­mente unívocas, já que causa e efeito são momentos que se transformam historicamente um no outro; 2) É impossivel preestabelecer o desenvolvimento do todo com base unica­mente no conhecimento das leis que regem o comportamento das partes.

A arte é um modo particular de totalização dôs conhe­cimentos obtidos na vida. Lukács opina no sentido de que a ciência funda a nossa consciência histórica, ao passo que a arte funda a nossa autoconsciência histórica.2 A arte antro- pom orfiza o real em sua representação: á ciência o desaníro- pomorfiza. A arte faz com que revivamos as experiênçias de tôdas as épocas e nos reconheçamos imediatamente nêles. Através da arte, participamos de novas relações humanas, vemo-nos envolvidos em novas situações humanas que nos solicitam reações de tipo especial. “Nas grandes obras de arte <— escreve Lukács os homens revivem o presente e o passado da humanidade, a perspectiva de seu desenvolvimen­to futuro, mas não os revivem como fatos exteriores, cujo conhecimento pode ser mais ou menos importante, e sim como algo de essencial para a própria vida, como momento impor­tante para a própria existência individual (dêles, homens)”.

1 Prolegomeni a uríEstetica Marxista, ed. c it., pág. 251 .2 Contributi alia Storia deli’ Estética, ed. c it., pág. 476 .

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Por isso, a arte jamais é inteiramente neutra em face dos conflitos humanos que representa: ou ela é universal, no sen­tido de ser a favor do homem (da comunidade humana), ou ela se deixa enfeudar a uma perspectiva particularista, nega- tivista, renunciando a servir à humanidade como um todo. Ségundo Lukács, tôda boa arte defende a integridade hu­mana — a humanitas — contra as tendências que a atacam, a dilaceram, a envilecem ou a adulteram.1

Para poder defender eficientemente a integridade huma­na, contudo, o artista precisa ter chegado, de algum modo, a conhecê-la em profundidade, isto é, na análise de Lukács, pre­cisa ter chegado a ser verdadeiramente realista. O que signi­fica: precisa ter conseguido refletir profundamente o real.

Em H istória e Consciência d e C lasse, Lukács rejeitava a teoria do reflexo como definição do conhecimento e, por conseguinte, não a utilizava como princípio para o estudo do conhecimento artístico. Em suas obras subseqüentes, po­rém, o autor húngaro reformulou o seu ponto de vista e pas­sou a admitir que a consciência — e, com ela, também a cons­ciência artística — reflete a realidade.

A teoria gnoseológica do reflexo é antiga, remonta a Aristóteles e até a Platão (embora neste último assuma um caráter radicalmente idealista). Trata-se, pois, de uma teo­ria que tem mais de dois mil anos de idade. O marxismo, todavia, procura conceituar o reflexo de maneira nova. Lukács foi buscar em Lênin elementos que o ajudassem a definir o reflexo do real na consciência como um reflexo ativo, zigue- zagueante, cheio de mediações: “Quando a inteligência hu­mana aborda a coisa individual e dela extrai uma imagem, um conceito, isso não é um ato simples, imediato, morto, não é um reflexo num espelho, e sim um ato complexo, de dupla face, ziguezagueante, um ato que implica na possibilidade de um vôo imaginativo para fora da vida”.2 Num livro anterior, Lênin já advertira que o reflexo do real na consciência não é um ato simples e direto, que a representação sensível da realidade exterior corresponde a tal realidade mas não coin-

1 Ensaios Sôbre Literatura, ed. Civilização Brasileira, pág. 4 0 .2 Cahiers Philosophiques, Lênin, E d . Sociales, pág. 2 8 9 .

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cide com ela: “a reprepresentação sensível não é a realidade existente fora de nós e sim apenas a imagem dessa realida­de”.1 Lukács aderiu à teoria leninista do conhecimento e pas­sou a defendê-la calorosamente.2

Procurando aplicar a gnoseologia leninista à estética, Lukács observou que a arte deve refletir não a superfície do real, mas a sua essência. A arte deve contribuir, através dos meios que lhe são próprios, para que o homem se apodere cada vez mais da essência da realidade em sua consciência. E esta função da arte é a grande função do realismo: ‘‘Uma® das diferenças mais relevantes que separam a estética mar­xista da estética burguesa é o modo de definir essa catego­ria. Mesmo para o estudioso burguês de estética mais fa­voravelmente disposto em relação ao realismo, o realismo será apenas um estilo entre outros mais. Para o marxismo, ao contrário, o realismo é o problema fundamental da lite­ratura”.3

O realismo não é apenas o problema teórico central que está colocado para a estética marxista: é também o problema existencial que se coloca a cada passo para os artistas, o grande conjunto de dificuldades que os artistas têm pela fren­te quando trabalham. “Captar esteticamente a essência, a idéia, não constitui, para o marxismo, um ato simples e de­finitivo, e sim um processo: um processo que é movimento, aproximação gradual da realidade essencial (mesmo porque a realidade mais profunda e essencial é sempre apenas uma porção daquela totalidade' do real que integra até mesmo^o fenômeno superficial) ” ,4

Sendo a realidade irredutível ao conhecimento, eviden­temente, sendo o movimento do real inesgotável, não é ra­zoável pedir a uma obra de arte que ela nos dê a essência da realidade como um todo definitivamente apreendido. No plano específico dos problemas humanos particulares que aborda, entretanto, a obra de arte, para atingir um nível de essencialidade, deve ser totalizanie. A criação artística bem sucedida é aquela que consegue organizar as contradições

1 Materialismo y Empiriocriticismo, Lênin, ed. Pueblos Unidos, Mon­tevidéu, pág. 116.2 C f ., por exemplo, Existencialisme ou Marxisme?, ed. Nagel.3 II Marxismo e la Crítica Letteraria, ed. c it., pág. 14.4 Ensaios Sôbre Literatura, ed. c it., pág. 33 .

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por ela representadas em função de uma visão de conjunto (não necessàriamente clarificada e explicitada conceitualmen- te, mas sempre efetiva) de tais contradições.

Tôda criação artística implica, assim, numa síntese e pressupõe uma opção do artista ante a multiplicidade do real: “A arte consiste sempre — diz Lukács —■ em reter o signifi­cativo e o essencial e em eliminar o acessório e o inessen- cial”.1 Com isso, o realismo se distingue, bàsicamente, do na­turalismo. O ideal de um artista naturalista seria, digamos, o de fazer um filme sôbrc a vida de um homem fixando todos os momentos da sua existência e se estendendo ao longo de tôda a vida do indivíduo focalizado. Na impossibilidade ma­terial de proceder desta maneira, o artista naturalista, obri­gado a fazer uma seleção, não buscará alcançar uma verda­deira síntese das suas observações e experiências: procurará cortar, ao sabor de circunstâncias mais ou menos acidentais, "fatias” da realidade. Ou, no melhor dos casos, procurará obter uma média dos sêres individuais ou das situações que registrou./'

A substituição da síntese pela média, tal como a preco­niza, por exemplo, o naturalista Emile Zola, corresponde a uma diminuição do aspecto ativo e verdadeiramente criador do trabalho artístico: representa uma tentativa no sentido de colocar o artista numa postura pretensamente semelhante à do cientista, atribuindo-lhe uma objetividade igual à do cien­tista, para que o conhecimento alcançado através da arte ve­nha a se revestir do mesmo caráter objetivo do conhecimento científico. Lukács mostra que, sob a capa desta exigência rigorosa de objetividade (que, no caso, é uma pseudo-obje- tividade), no bôjo desta exigência cientificista, o que está pre­conizado é um comportamento de pura observação, o que se recomenda é uma postura descritiva, de contemplatividâde, e de renúncia à natural participação do artista na luta em de­fesa do humano.2

O conhecimento artístico, p^ra se legitimar, não está obri­gado a se fazer assimilar à forma do conhecimento científico.

/)

• Lu Signification Présente du Réalisme Critique, ed. Gallimard, trad. Mítuiiee de Gandillac, pág. 101.- Unsaios Sôbre Literatura, ed. c it., estiklo “Narrar ou Descrever?”, ttiui. Giseli Vianna Konder.

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Lukács acentua que, “em todo ato de representação estética (difercntemcnlc da científica), o homem está presente como elemento determinante, porque na arte o mundo extra-huma- no só aparece como elemento de mediação nas relações, ações, sentimentos, etc., dos homens”.1

O conhecimento científico se dá em um plano de univer­salidade. Já a categoria central da estética, segundo o mar­xista Lukács, é a da particularidade. A particularidade é a “representação simbólica do singular e do universal". Ela não exclui, evidentemente, a universalidade: só que a universali­dade, no conhecimento artístico, não pode aparecer sôb a for­ma de leis abstratas (como aparece na ciência); ela precisa se apresentar em ligação orgânica com a concreticidade indi­vidual dos sêres singulares representados pelo artista. Lukács aprendeu com Hegel que não existe conhecimento exclusivo do que é singular, pois o singular é único e o conhecimento é sempre comparativo. Mas Lukács também aprendeu com Hegel qu#; em arte, não existe conhecimento capaz de pairar acima dos sêres singulares, capaz de se abstrair da singula­ridade do sensível.

À categoria da particularidade na estética geral lukacsia- na, corresponde, nos estudos de Lukács sôbre a literatura e especialmente sôbre o romance, o conceito de tipo. O tipo “é a síntese particular que, tanto no campo dos caracteres como no campo das situações, une orgânicamente o genérico e o individual”.2

Em defesa de sua formulação, Lukács çita Engels, que, em carta a Minna Káutski (mãe de Karl Káutski), já obser­vara, falando a respeito dos bons personagens de romance: “Cada um dêles é um tipo, mas, ao mesmo tempo, também é um indivíduo determinado - i- um 'este’, como diria o velho Hegel r - e é assim que deve ser” . O personagem de roman­ce que é capaz de ficar vivendo na lembrança do leitor após a leitura é aquêle que conseguiu adquirir feição individual concreta e rica e, ao mesmo tempo, revelou-se no quadro de uma problemática universal.

O típico não deve ser confundido com o alegórico: o alegórico é o falso típico, o típico desnaturado pelo vicio do

1 Prolegomeni a un’ Estética Marxista, ed. c it., pág. 248 .2 Saggi sul Realismo, ed. Einaudi, pág. 17.I

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intclectaalismo. Combatendo a confusão de um com o outro, Lukács recorre a Goethe. Segundo Goethe, na alegoria, o ele­mento particular fica prejudicado por valer de mera exem- plificação de um principio geral, de uma idéia abstrata, de uma universalidade não concretizada artisticamente.1

A recusa do alegórico é a recusa do intetectualismo, a recusa em admitir um processo dc criação artística que su­bordine o concreto individual ao geral abstrato. Mas é, tam­bém, a recusa da “literatura dc propaganda”, que busca a mera ilustração de teses religiosas ou políticas; é a recusa do “romantismo revolucionário” gorkiano.

A criação de personagens verdadeiramente típicos e o predomínio do m étodo narrativo sôbre o m étodo descritivo são duas características por assim dizer formais da grande literatura realista de ficção. Ê preciso que os personagens se­jam sêres vivos, isto é, que se definam pelo seu movimento, pela sua autotransformação ou transformação, no curso de uma estória. Se, ao invés de fazê-los viverem pela ação, o escritor prpeurar fixar-lhes, estàticamente, a psicologia ou o meio ambiente exterior, a descrição passará a preponderar sôbre a narração e haverá prejuízo estético para a ficção li­terária. Lukács entende que o abandono da tipicidade e a substituição do predomínio da narração pelo predomínio da descrição, quer pelo “romantismo revolucionário”, quer pela literatura moderna de avant~garde, acarretam inevitável pre­juízo para o realismo, quer dizer, para a arte, em nosso tempo.

Para Lukács, a grande arte, a arte que realmeiTfe nos interessa — aquela que, por sua profundidade e por seu ele­vado nivel estético, adquire a capacidade de sobreviver à sua época — é sempre realista. Em oposição a ela, podem se desenvolver obras “artisticamente interessantes”, capazes, de repercutir muito intensamente em sua época, mas neces­sariamente “menores”, comprometidas com uma política cul­tural oportunista ou reacionária . > A arte de avant-garde é de pouco fôlego e está identificada com a decadência da bur­guesia: em certos aspectos, seu ponto de partida teórico é a estética de Kant; em outros aspectos, entretanto, elá se ins-

J Goethe et son Epoque, G . Lukács, trad. Lucien Glodmann, ed.Nsgel.

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pira nas concepções estéticas retrógradas e irracionalistas de Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Dilthey ou Heidegger.1

Em geral, a arte de avant-garde forceja por romper, de maneira precipitada, com as formas clássicas já consagradas pela tradição realista e com os padrões humanistas da bur­guesia em ascensão. As produções da avant-gard se acumpli- ciam com um processo de dissolução d a form a artística e de confusão dos gêneros. Elas renunciam à totalização concre­ta, representam o real como se êle fôsse essencialmente frag­mentário, obscurecendo-lhe n correta compreensão. Podem, certamente, alcançar êxitos momentâneos, mas acabam logo na fossa comum do cemitério cultural.

Ao longo dêstes últimos trinta e cinco anos, Lukács tem defendido encarniçadamente tais pontos de vista. E, recen­temente, ao completar oitenta anos de idade, o filósofo hún­garo ainda insistiu: "Em arte, quando se tem algo a dizer, é preciso encontrar a forma conveniente para fazê-lo. Nesse ponto, sou conservador”.3

1 El Asalto a la Razón, G . Lukács, trad. Wenceslao Roces, ed. Fon­do de Cultura Economica, México.2 Revista La Nouvelle Critique, n.° de junho-julho de 1965, entrevista concedida a Antonin Liehm.

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20Lefebvre

A

E m dois aspectos fundamentais, pelo menos, a estética do crítico marxista francês Henri Lefebvre difere da esté­tica do crítico marxista húngaro Georg Lukács, que acaba­mos de analisar. Primeiro, à orientação dita “conservadora” de Lukács, Lefebvre opõe uma orientação auto-intitulada "modernista” . Segundo •—■ o qup é mais importante —■ à tendência “neoclássica” de Lukács (como diz Lefebvre), o francês opõe uma posição “neo-romântica”.

Deixemos que Lefebvre explique com sua próprias pa­lavras a contraposição: “Hoje, constatamos dúas tendências na estética inspirada pelo marxismo. Uma, na direção de um neoclassicismo, fundada sobretudo no estudo de romances e de obras pictóricas. A outra, na direção de um neo-roman-

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tismo, fundada no estudo da música, da poesia e do teatro.0 filósofo marxista Georg Lukács, que merece o respeito uni­versal, liga o seu nome à primeira tendência. O autor do presente livro1 espera ligar o seu nome à segunda”.

O romantismo tem sido, de fato, uma constante no com­portamento de Lefebvre. Romântico era o grupo de jovens existencialistas rebeldes que êle integrava na década de vin­te, juntamente com Georges Politzer, Norbert Gutermann e Pierre Morhange. Romântica foi a sua adesão ao Partido Comunista Francês. Romântica foi a sua militância, oscilan­do entre o servilismo e a independência exasperada em face da direção partidária, ora combatendo a simplificação dogmá­tica da verdade ora sendo conivente com os métodos stali- nistas. Romântico, também, foi o seu rompimento com o PCF. Romântico, ainda, é o seu hábito de falar de si em seus li­vros, é o seu estilo “temperamental", cheio de pontos de ex­clamação, propenso aos arroubos personalistas e às con­fissões subjetivas.

Romântica não podia deixar de ser, naturalmente, a es­tética lefebvriana. As idéias estéticas de Lefebvre se acham espalhadas, de maneira difusa, por tôda a sua obra. Elas aparecem, aqui e acolá, em seus primeiros ensaios filosóficos, mas apenas afloram, sem se desenvolverem: por vêzes são apenas aludidas. Também na Critique d e la V ie Quo- tidicenne — e com maior insistência — Lefebvre expõe seus pontos de vista acêrca da arte. O livro em que êle trata de maneira mais sistemática, como marxista; dos problemas da arte, entretanto, é a sua Contribuiçãcqà Estética.

.A Contribuição à Estética se situa num ponto pouco brilhante do desenvolvimento da reflexão lefebvriana: êle já não apresentava o talento vigoroso (conquanto irregular) que estava presente em La Conscience M ystifiée (de 1936), em Introduction aux Cahiers d e Lénine sur la D ialectique ‘(de 1938) ou em L e M atérialisme D ialectique (de 1939). Em nome da combatividade polêmica, êle andava a descuidar da objetividade de suas análises e se entregava a uma lingua­gem destemperada, estimulada pelo zdanovismo. Já em um

1 Trata-se de Problèmes Actueis du Marxisme, ed. Presses Universi- taires de France, 1960, pág. 3 .

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trabalho de 1946, Lefebvre caracterizava o Sartre de U Etre et le N éant como um literato que fazia "la metaphyisique de la merde”.1

A Contribuição à Estética pertence ao período sectá­rio que precedeu a crise ideológica provocada pela desesta- linização e a defecção ocorrida alguns anos após. O roman­tismo que se acha na raiz da perspectiva lefebvriana se ma­nifesta neste livro na teoria do conhecimento subjacente às suas análises. O conhecimento é concebido em têrmos de um surpreendente intelcctuaiismo. O campo da competência dos meios próprios para a aquisição do conhecimento pelo homem é violentamente estreitado, reduzido às proporções que o ra­ciocínio lógico pode abarcar. A arte não cabe mais na fun­ção gnoseológica.

Lefebvre repele, em seu livro, a “subordinação da arte ao conhecimento"2 e estabelece uma antítese de sensibilida­de e conhecimento, afiançando que o conhecimento não pode pretender sqprir a sensibilidade.3 Sensibilidade e conhecimen­to aparecem, em semelhante formulação, mecânicamente con­trapostos, e o conhecimento fica excluído da sensibilidade. A falta de bistoricidade dessa posição transparece bem clara- mente quando lembramos que Marx, nos setís Manuscritos de 1844, já advertira que, ao longo da história da humanidade, os sentidos humanos vinham se tornando cada vez mais teóricos.

Da perspectiva de Lefebvre, a sensibilidade não pode ser inteligente, o conhecimento não pode ser sensível. Ar arte lhe aparece, assim, como uma atividade que pode expressar o que o conhecimento ainda não alcançou e pode superar0 conhecimento.1 E essa tomada de posição romântica, com tôdas as suas conseqüências irracionalistas, acarreta gran­des danos à aparelhagem conceituai de^que Lefebvre se ser­ve em sua análise das questões estéticas.

O conceito marxista de alierlação, por exemplo — con­ceito que Lefebvre, em seus primeiros livros, ajudara a reabi-

1 UExlstencialisme, ed. Sagittaire, 1946, pág. 51 . j2 Contribución a la Estética, trad. Marcos Winograd, ed. Procyon, Buenos Aires, 1956, pág. 94 .:) Iclem, pág. 102. i ldem, pág. 9 6 .

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litar —- llic parece aqui ser um conceito “abstrato" c ele opi­na no sentido de que aquilo que se poderia chamar de alie­n a ç ã o já foi superado, em nossos dias, pela classe operária.1 Os mitos são caracterizados como intermediários "entre a praxis grega •—> as forças produtivas, a base econômica, as relações sociais, a vida transcorrida em uma estrutura social determinada — e a arte”.2 Que concepção de praxis é esta? A arte se contrapõe à praxis? Mas a arte não é ela própria uma forma de praxis?

As impropriedades pululam nas formulações lefebvria- nas. O livro tem aspectos positivos: a exigência de que as obras que expressam a moderna ascensão do proletariado sejam criticadas em nome de critérios estéticos, a recusa em adotar uma apreciação simplista da complexa obra de Pi- casso, o duplo combate ao formalismo e ao naturalismo, etc. Mas o irracionalismo de que está penetrando o pensamento do autor dilui êstes aspectos positivos. E o que resulta é uma obra que bem merece o juízo autocrítico formulado mais tarde pelo próprio Henri Lefebvre: “bastante medíocre essa Contribuição à Estética".3

As limitações da Contribuição a Estética são de tal or­dem que, em dado momento, levam Lefebvre a uma espúria frente única com o zdanovista Joseph Revai, contra Lukács e contra M arx. Essa frente única se realiza na abordagem da questão da possibilidade do desenvolvimento cultural e artístico não corresponder ao desenvolvimento econômico. Marx reconhece francamente tal possibilidade numa passa­gem da sua H istória das Doutrinas Econôm icas (T eorias sôbre a M ais-V alia) e na Introdução ã Contribuição ã Crí­tica da Econom ia Política. Lukács também a reconhece. Le­febvre, porém, citando Revai, afirma que uma sociedade eco­nomicamente menos desenvolvida que outra só lhe pode le­var uma vantagem artística limitada, setorial, isto é, só lhe pode ser superior em algumas formas artísticas, “lim a so­ciedade economicamente superior — escreve Lefebvre — será

1 Iilem, pág. 44 .- Idcm, pág. 60.* La Sonune et le Reste, E d . L a Nef, 1959, pág. 536.

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superior nas obras de arte que tenha inventado, que a ex­pressem”.1

Que quer dizer isso? A tragédia de Sófocles foi, noto­riamente, uma forma típica da sociedade ateniense do séculoV A .C . E a tragédia clássica de Corneille e Racine foi uma forma inventada pela sociedade francesa do século X V II, uma forma que expressava aquela sociedade. Que devemos concluir? Que Corneille e Racine são necessariamente supe­riores a Sófocles? Ou que a sociedade ateniense do séculoV A .C . era economicamente mais desenvolvida que a so-i ciedade francesa do século X V II?

Outro exemplo, fornecido pelo próprio Lcícbvrc: a for­ma nova que o realismo socialista conferiu ao romance e que êle dá por já atingida. É uma forma inventada pela socie­dade socialista, uma forma que a expressa. A sociedade so­cialista é economicamente superior à sociedade capitalista ou- trora existente na Rússia. Devemos, então, concluir que Ehremburg é superior a Tolstoi? Ou que Cholokhov é supe­rior a Dostoiévski? Um exame sereno das obras desses auto­res, sem dúvida, não nos permitirá semelhante conclusão.

A posição de Lefebvre na Contribuição à Estética é in­defensável. Admitindo que uma sociedade atrasada pode su­perar uma sociedade adiantada na criação de certas formas ou certos gêneros artísticos, admitindo que não haja uma cor­respondência mecânica entre o desenvolvimento de alguns se­tores particulares da arte e o desenvolvimento econômico, não há por que deixar de admitir que o mesmo possa se daj^com a arte em geral, como um todo. É o que conclui M arx: "Se isso é verdadeiro no que concerne à relação entre os diversos gêneros artísticos no interior do próprio campo da arte, não se há de estranhar que seja igualmente verdadeiro no que concerne à relação entre a esfera da arte eín seu conjunto e a evolução geral da sociedade”.2

1 Contribución a Ia Estética, ed. c it., pág. 59 .2 Introduction Géncrale à la Critique de tEconomie Politique, em Karl Marx — Oeuvrcs ( 1 ) , ed. Gallimard, 1963, pág. 265 .

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GoldmannA

N uma linha divergente da de I lenri Lefebvre, filian­do-se não a uma orientação romântica mas n uma orientação clássica, encontramos, ainda na França, o pensador Lucien Goldmann, nascido na Rumânia porém naturalizado francês.

Goldmann nasceu em Bucarest, em Í913. Atualmente leciona na Sorbonne, em Paris, na Ecole Pratique des Hautes Etudes. Êle é, por assim dizer, o principal responsável pela difusão e pela atual valorização positiva das obras do jovem Lukács, isto é, do Lukács cuja atividade se estende até 1922, Depois de ter rompido com suas concepções filosóficas idea­listas (neo-kantianas e neo-hegelianas), depois de »ter rene­gado a sua primeira obra de inspiração marxista (História e Consciência de C lasse), Lukács procurou deixar esquecidos os livros que escrevera até então. Goldmann, entretanto, re-

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descobriu os livros "malditos” e tratou de aproveitar-lhes cri­ticamente a riqueza.

O marxismo goldmanniano parte de História e Consciên­cia d e C lasse, corrigindo-lhe a perspectiva, abandonando a tese da identidade total do sujeito e do objeto no conheci­mento e repelindo o “luxemburguismo” político da obra. De H istória e Consciência d e C lasse, Goldmann extrai o concei­to de comunidade humana, desenvolve-o e centra sôbre êle todo um esboço de história do pensamento dialético, mostran­do que, após a fragmentação da espécie humana, ocorrida com o aparecimento das classes sociais, o problema crucial da humanidade passou a ser o de forjar uma nova comuni­dade, uma unidade superior dos indivíduos, na qual a rique­za individual das personalidades, longe de ser suprimida, se desenvolva em harmonia com a coletividade dos homens. É0 anseio pela realização dêste ideal que podemos localizar, segundo Goldmann, sob diferentes formas, no cristianismo, nos ideólogos da Revolução Francesa c no marxismo (socia­lismo moderno),'

De História e Consciência d e C lasse, também, Gold­mann retira e desenvolve a teoria da reificação, dedicando à sua análise um brilhante ensaio.2

Os livros da fase pré-marxista de Lukács fornecem a Goldmann, igualmente, idéias que êle- utiliza, corrigindo-as e reformulando-as. A A lm a e as Form as3 fornece-lhe ele­mentos de que êle se serve em sua análise das obras de Pas­cal e de Racine.4 Da lukacsiana Teoria d o Rom ance,D por sua vez, Goldmann filtra a sua idéia de que entre a sociedade burguesa e a forma do romance existe uma hom ologia d e estruturas, idéia cheia de implicações polêmicas e que procura­remos expor mais adiante.

A despeito do muito que lhe deve, a obra de Goldmann está longe de ser uma mera repetição da obra do jovem

1 La Communauté Humaine et VUnivers chez Kant, ed. Presses Uni- versitaires de France. Goldmann acentua, neste livro, a ligação entre o conceito de totalidade e o conceito de comunidade humana,2 Recherches Dialectiques, ed . Gallimard, ensaio “L a Reification”, págs. 64-106.3 L'Anima e le Forme, ed. Sugar, trad. Sérgio Bologna.* Le Dieu Cachê, ed. Gallimard.5 La Theorie du Roman, ed. Gonthier, trad. J . Clairevoye.

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Lukács; esta última seria, quando muito, o ponto de partida da reflexão que conduziu àquela. O princípio da relação exis­tente entre as estruturas sociais e as estruturas das obras de arte criadas em cada/sociedáde é trabalhado pelo crítico ru- meno-francês até ser transformado em um método de crítica que pressupõe tôda uma teoria da literatura e, em sentido ainda mais amplo, tôda uma metodologia geral das ciências humanas e sociais: o estrutaralismo genético.

Se os princípios do estruturalismo genético se encontram já em Lukács, não há dúvida de que foi Goldmann quem os organizou de maneira mais explícita em um método de bem definidos pressupostos teóricos.

Segundo Goldmann — na trilha de Lukács — tôda grande forma artística (genérica) nasce da necessidade de exprimir um conteúdo» essencial. A estrutura interna das grandes obras filosóficas e literárias se liga ao fato delas ex­primirem, tanto na “fôrma” como no “conteúdo”, ao nível de uma coerência notavelmente desenvolvida, atitudes globais do homem ( visões do mundo) em face dos problemas de seu grupo, numa situação e num momento dados.1

Os grupos humanos fundamentais, do ponto de vista his­tórico e do ponto de vista sociológico — aqueles grupos ge­rais aos quais corresponde uma “visão do mundo” particular, capaz de se erigir cm estrutura significativa — têm sido as classes sociais. “Cada vez que se trata de achar a infra-es­trutura de uma filosofia, de uma corrente literária ou artís­tica, chegamos, não a uma geração, nação ou igreja, nem a uma profissão ou a um agrupamento social qualquer, e sim a uma classe social e às suas relações com a sociedade”.2

No quadro geral de uma sociedade dividida em classes, não há consciências individuais situadas acima das classes. A personalidade do indivíduo é um todo dinâmico que se for­ma e transforma ao longo de tôda a sua vida: sua particular visão do conjunto das coisas, dos outros homens e de si mes­mo, insere-se no quadro mais amplo de outras totalidades, cuja formação remonta a épocas anteriores ao seu nascimento como indivíduo. Essas totalidades mais amplas são a da sua

1 Recherches Dialectiques, e d . c i t . , p á g . 108 .2 t.as Ciências Humanas y la Filosofia, trad. castelhana de Josefina Murtinez Alinari, ed. Galatea-Nueva Vision, pág. 85.

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classe, a do seu povo e as das forças vivas que fazem a his­tória do seu tempo. Todos os movimentos do indivíduo se concretizam no interior do quadro dos movimentos econômi­cos, sociais, políticos e culturais da sua época.

Cada totalidade possui a sua própria estruturação inter­na. No caso que nos interessa — que é o da criação artís­tica — a psicologia do autor serve de mediação entre a to­talidade da obra e a totalidade da classe a que o autor perten­ce. E a totalidade da classe a que pertence o artista, por sua vez, só pode ser devidamente compreendida quando si­tuada no tempo e no espaço, quer dizer, quando relacionada, em sua essência, com o povo que integra e com a fase His­tórica que êsse povo atravessa. As totalidades forman. assãn, para usarmos uma expressão hegeliana, círculos dentro de cír­culos. E é preciso tomarmos cuidado para que os problemas de um círculo maior não absorvam c diluam neles os proble­mas específicos dos círculos menores. Como, também, é pre­ciso tomarmos cuidado para que os problemas dos círculos menores não venham a ser por nós arbitràriamente situados fora dos círculos maiores que aqueles integram.

O estruturalismo genético visa apreender a totalidade da obra de arte em sua conexão com a totalidade mais ampla em que a obra de arte se insere, rejeitando a redução sociologista da totalidade menor à condição de subproduto epifenomêni- co dos movimentos da totalidade maior. Um crítico brasi­leiro que segue a orientação de Lukács nos explica: "vendo na criação artística apenas um momento — ainda que privi­legiado — da pvaxis humana global, o marxismo estrutura- lista permite reconduzir a obra de arte àsrealidade e, por isso, não apenas com preende-la (descobrir o seu significado in­terno enquanto estrutura), como também explicá-la ( inseri- la na estrutura mais ampla da qual ela é, ao mesmo tempo, um produto e um fator estruturante)"d

Para Goldmann, as ciências humanas não possuem, no atual estágio do desenvolvimento delas, meios seguros e efi­cazes para a reconstituição da psicologia individual dos ar­tistas, e assim nós não temos condições para a apreensão cien-

i Ensaio “Uma Análise Estrutural dos Romances de Graciliano R a­mos”, de Carlos Nelson Coutinho, publicado na Revista Civilização Brasileira, n s. 5-6.

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tífica dessa psicologia em sua verdade mais profunda. Não dispomos, pois, de um conhecimento suficiente no que con­cerne à totalidade mediadora existente entre a obra e a classe a que pertence o artista. ‘‘No estado atual das ciências hu­manas — escreve Goldmann — é muito mais a interpreta-

,ção da obra que determina a imagem que a gente faz do au­tor do que ao contrário”.1 Querer desconhecer esta situação e procurar estabelecer interpretações de tipo psicologista para as obras de arte é incorrer em equivoco. Ou, pelo menos, em ato de temeridade.

Segundo Goldmann, entretanto, podemos reconhecer francamente o atraso em que se encontra a psicologia como ciência e isso não nos impedirá de trilharmos caminhos muito mais fecundos para a avaliação das obras de arte: baseado na metodologia dialética (cujos fundamentos foram estabe­lecidos por Marx e Lukács), o estruturalismo genético nos permite situarmo-nos, 'tlesde logo, num nível de ciêntificidade bem mais rigorosa do que, por exemplo, as análises de tipo impressionista, a crítica de tipo positivista, empirista ou psi­cologista, quando procuramos formular juízos sôbre realida­des artísticas.

O conceito de consciência possível, que o método dia­lético utiliza, é um dos elementos responsáveis pela vantagem que o estruturalismo genético leva sôbre as demais correntes da crítica filosófica da literatura. __,

A cada classe social, cm cada situação histórica deter­minada, corresponde, na expressão de Lukács e Goldmann, um máximo de consciência possível. O que significa que, a cada classe social, em cada situação histórica determinada, corresponde a possibilidade concreta dc scr> alcançado um máximo de organicidade e coerência interna (estrutural) na elaboração da sua visão do mundo, bemrcomo na sua expres­são conceituai ou sensível.

O gênio dos filósofos e dos artistas se manifesta nessa elaboração e nessa expressão, no fato de que êles consigam conferir às suas obras uma coerência interna capaz de de­senvolver, no máximo de suas possibilidades, a visão do mun­do da classe a que pertencem.

i Recherches Dialectiques, L . Goldmann, ed. Gallimard, pág. 115.

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Dependendo da realidade social em que esteja inserido, dependendo da sua época histórica e da classe social a que pertença, dependendo da consciência possível que esteja aber­ta para a sua classe, o artista será levado a representar o mundo de maneira globalmente diversa. Tomemos um exem­plo: o antigo poeta épico e o moderno romancista. A diver­sidade de condições em que êles vivem e trabalham não se reflete apenas no tema, no cenário ou no conteúdo das suas composições: reflete-se na estrutura geral delas, na forma geral que elas assumem.

Sabemos que o autor e declamador das antigas epopéias se integrava, por seu trabalho, na sociedade em que vivia, era o intérprete de uma comunidade não submetida aos efei­tos devastadores da divisão capitalista do trabalho, refletia critérios, valores e sentimentos mais ou menos definidos e seguros para todos (tanto para êle como para o seu público). O romancista moderno, entretanto, se sente um tanto con­fuso, não sabe bem o que (ou quem) representa, é o intér­prete de uma comunidade radiealmentc dilacerada, cuja exis­tência como comunidade não se faz sentir: vê-se, assim, a cada passo, premido por pressões antagônicas inconciliáveis. A arte do romancista é uma arte de o posição à sociedade do seu tempo. Os criadores do romance moderno — os autores que retomaram a velha tradição narrativa do gênero épico e criaram o gênero especificamente romanesco — foram artis­tas que experimentaram exigências humanistas e que se vi­ram forçados, em virtude dessas próprias exigências huma­nistas, a entrar em choque com o mundo em que viviam. Ape­sar de profundamente sentidas, as aspirações humanistas dos romancistas clássicos permaneceram algo vagas, já que o con­dicionamento da época, através de um quadro agudamente contraditório que envolve todos os indivíduos e através do espêsso cipoal das ilusões ideológicas, não facilita a aquisi­ção pelo artista de uma clara consciência histórica (e revo­lucionária) de sua própria situação.

De acordo com Lukács, o romance é prqcisamente o gê­nero no qual a ética do autor se torna um problema estético da obra. Por não ter uma visão clara dos valores autênticos de que é portador, o romancista é levado por suas exigências humanistas a assumir uma atitude de ironia e auto-ironia, pas­sando a ironia a ser, desde logo, um elemento essencial à

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estrutura do romance, um meio do autor se distanciar do que está narrando e dar-lhe uma objetividade que não. seja inu­m ana. A ironia é, de certa forma, um modo de participação nos conflitos narrados: um meio, também, de não se deixar envolver inteiramente por êles. É um modo de participação

' diferente do dos antigos autores épicos; mas, precisamente, os ternas são outros, a realidade mudou muito.

xSob o capitalismo, num regime de produção para o mer­cado, os valores de uso cederam lugar aos valores de troca, as mercadorias só interessam pela possibilidade de lucro que oferecem, as coisas só contam pelo preço que podem ter no mercado. As pessoas também só contam como compradores em potencial ou como proprietários de mercadorias: o mundo do ter invade o mundo do ser e o subverte. Os sêres huma­nos são assimilados aôs movimentos do mercado, sofrem de­formações decorrentes de uma reificação generalizada.

O romancista criâ o romance como uma narração na qual se acha implícito um protesto do humanismo contra a degradação do mundo: o herói do romance nega, em sua ação, o mundo degradado, mas — tal como o romancista — é im­potente para suprimir a degradação, de cujas raízes não tem uma visão crítica passível de clara conceitualização. O ro­mance aparece, assim, como a forma literária típica do hu­manismo burguês, isto é, do humanismo que não chegou a superar os limites da consciência de classe da burguesia.

Esta parece ser a abordagem mais rigorosament^' lu- kácsiana — estruturalista genética — das relações entre o romance e a sociedade burguesa. Goldmann, entretanto, pro­põe uma modificação dela: sustenta que o romance exprime valores que se acham implícitos no comportamento de todos os membros da sociedade capitalista, valores que não são defendidos por qualquer grupo social em especial.

Entre o romance e a economia dar sociedade burguesa, afirma Goldmann, há uma rigorosa hom ologia de estruturas. A ligação da praxis individual cotidiana dos indivíduos no mercado capitalista, em sua estrutura, com a estrutura do ro­mance é uma ligação direta, que prescinde da m ediação de qualquer form a d e consciência d e classe.

A relação existente entre a arte do nosso tempo -—1 como, jmr exemplo, o nouveau roman — e a sociedade altamente ítlíiemla que ela exprime é uma relação qualitativamente di-

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versa daquela que existia entre as tragédias de Racine ou os pensamentos, de Pascal, de um lado, e a sociedade fran­cesa do século X V II, de outro. Entre as obras de Racine ou Pascal e a sociedade francesa do século X V II havia a me­diação de uma determinada estrutura particular da consciên­cia: a “visão do mundo” da noblesse d e robe, (A noblesse d e robe se compunha de burgueses enobrecidos postos no serviço burocrático da monarquia absoluta. Na luta entre o rei e os senhores feudais, o monarca se serviu da noblesse d e robe e fortaleceu-a, de modo que êsses burgueses burocratas chegaram a dispor de algum poder efetivo, embora, como

. grupo social, se achassem em uma situação eminentemente trágica, pois não dispunham de futuro histórico) . Entre o nouveau roman e a sociedade reificada da França contempo­rânea, contudo, não existe, segundo Goldmann, qualquer es­trutura consciente a servir de mediação. E isto porque n rei- ftcação, na sociedade contemporânea, alcançou um estágio tão desenvolvido que afeta, de um ou de outro modo, Iodas as formas de consciência capazes de se organizarem em "visões do mundo".

Semelhante situação, inédita, se reflete, de modo nôvo, na arte do nosso tempo, especialmente no romance. E é ela que justifica o acréscimo goldmanniano da teoria da homolo- gia das estruturas à teoria mais geral ( lukacsiano-goldmannia- na) do estruturalismo genético. Isso, pelo menos, é o que sustenta Goldmann. Lukács, porém, não o acompanha.

E onde se pode ver mais claramente como Goldmann se afasta de Lukács é nos estudos do crítico rumeno-francês sôbre o nouveau roman. A teoria da liomologia das estrutu­ras leva Goldmann a ver no nouveau roman (o romance sem sujeito) a expressão literária estèticamente válida da socie­dade capitalista altamente reificada (que alcançou, no en­tender de Goldmann, seu estágio pós-imperialista). Ao que parece,1 pouco importa, para Goldmann, que o nouveau ro­man abandone a linha de predominância do método narrati-

1 Visando esclarecer êste ponto, o autor do presente trabalho escreveu a Goldmann uma carta. Em sua amável resposta, Goldmann falou da “total incompreensão” revelada por Lukács em face das obras da mo­derna avant-garde, mas não se referiu à validade ou não das análises lukàcsianas do necessário predomínio da narração no gênero épico.

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vo sôbre o método descritivo, que sempre caracterizou a gran­de literatura épica realista; a reificação legitima êsse aban­dono e a entrega à descritividade.

A posição de GjSldmann em face do noveau roman fran­cês, aliás, se liga à posição assumida por êle, em geral, em 'face da avant-garde. Para Goldmann, há duas avant~gard.es possíveis: uma, aquela que é a mais importante, porque até hoje- é a única que conseguiu frutificar na literatura, é a avant-garde da ausência. "Ô uni tios fatos mais marcantes da cultura ocidental contemporânea que a maior parte dos grandes escritores clc avant-garde exprima, sobretudo, não valores realizados ou realizáveis, mas a ausência, a impossi­bilidade de perceber ou de formular valores aceitáveis, em nome dos quais êles pudessem criticar a sociedade".1 A outra avant-garde possível, segundo Goldmann, seria uma avant- garde positiva, que exprimisse a presença de forças capazes de resistir ativamente à reificação, à desumanização da vida social, “Infelizmente — cibserva o crítico — seria difícil opor aos escritos de Kafka, a L ’Etrangcr, a La Nausee, às obras de Beckett, Ionesco, Adamov, Nathalie Sarrautc e Robbe- Grillet, uma criação literária de igual importância centrada sôbre a presença dos valores humanistas e do devenir his­tórico”.2

Da perspectiva de Lukács, essas posições de Goldmann são inaceitáveis. Com sua teoria das duas avant-gardes, Goldmann tem o mérito de chamar a nossa atenção-para a complexidade daquilo que Lukács chama de avant-garde. No interior do quadro constituído pelas obras ditas -de avant- garde há, realmente, perspectivas diferentes, valores estéti­cos diversos. Em seguida, contudo, é o próprio Goldmann quem mistura num mesmo saco avant-gardísta nomes de sig­nificações tão díspares como Kafka, Sartre, Camus, Beckett, Ionesco e outros. Por êste caminho, Goldmann não conse­guirá, seguramente, fazer com que o conceito de avant-garde deixe de ser uma fórmula vaga e simplista, ensejadora de injustiças.

I Revista Médiation, n.° 4 .S Idem.

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Além disso, quando Goldmann reclama de uma avant- garde que reconhece ainda não existir a criação de uma li­teratura afirmadora- de valores humanos, êle deixa margem para que um lukacsiano. "ortodoxo” lhe diga que êle está cobrando de uma avant-garde impossível a tarefa que cabe ao realismo.

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(

22Garaudy

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o realismo na literatura c na arte tem sido uma preo­cupação constante de Rofjcr Garaudy, critico nascido em Máíselha, em 1913. Garaudy já foi um romancista medío­cre (A ntée1 e L e Huitième Jour dc Ia Crcution") e já foi um filósofo sectário (T héorie M atérialiste dc^la Connaissance3 e La L iberté) d Até recentemente, o sectarismo ainda sobre­vivia nêle. Em Humanisme MarxiÉtk — livro de 1957 — Garaudy, polemizando contra o marxista polonês Oskar

1 Ed. Hier et Aujourd.’hui, 1945.- Ed. Hier et Aujourd’hui, 1946.• Ed. Presses Universitaires de France, 1953.* Editions Sociales, 1955.

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Lange, ainda se escorava na autoridade ideológica do Comi­tê Central do Partido Comunista da China.1

Nestes últimos 'seis ou sete anos, entretanto, Garaudy vem se revelando um ensaísta de grandes méritos, um exce­lente polemista e um dos intelectuais mais responsáveis pela elevação do nível ideológico, bem como pela dinamização e ampliação da política cultural do Partido Comunista Fran­cês. Em Marxistnc eí jExistcncialisme,2 saiu-se bem de uma polêmica cordial com Sartre e Jean Hypollite. Em Perspecti­ves de VHomm.e,3 entrou em fecundo diálogo com as princi­pais correntes da filosofia francesa contemporânea. Em D e U A nathem e au Dialogue,'1 dirige-se ao Concilio Ecumênico

' e convoca os católicos para um debate construtivo com o mar­xismo. O livro que mais nos interessa aqui, porém, aquêle a que nos reportaremos para examinar os aspectos mais im­portantes da atual posição de Garaudy em matéria dc esté­tica, é D ’Un Realismo Sans Ri vages.n

Em D Un Realismo Sans /Reages, Garaudy empreende uma reavaliação tio eonceiln de realismo que havia adotado no passado e que lhe tinha impedido uma apreciação mais justa de obras como as de Picasso, Saint-John Perse e Kafka. Ao invés de procurar desenvolver a sua nova concepção do realismo através de uma sistematização teórica, o ensaísta francês procura definir sua posição por meio de análises con­cretas, examinando precisamente a criação artística de Kafka, Saint-John Perse e Picasso. Segundo Garaudy, as obras dês- tes três artistas são "obras das quais estivemos durante muito tempo proibidos de gostar em nome de critérios demasiado estreitos de realismo”. (Pág. 244) ^

O ensaio dedicado a Saint-John Perse é pequeno e não tem maior significação. O ensaio dedicado a Kafka é inte­ressante e ajuda a destruição alguns preconceitos criados em tôrno da obra do genial autor tcheco; no que concerne à pro­fundidade, contudo, parece-nos inferior ao ensaio escrito por

1 E d . Sociales, 1957, ensaio “Dialectique et Liberte” .2 E d . Plon, 1962.3 E d . p .u . f . Há edição em português, lançada pela Ed. Civiliza­ção Brasileira.4 E d . Plon, 1965. Há edição em português, lançada pela Editora Paz e T erra.5 E d . Plon, 1963.

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Ernst Fischer, de idêntica perspectiva, sôbre o mesmo tema, Para um ensaio que se pretende crítico, o trabalho de Garau- dy se limita demais à explicação da obra de Kafkà em função da vida de seu autqí, sem procurar legitimá-la como realidade estética objetiva. O que D ’U.n R ealism e Sans R ivages ofe­rece de mais significativo está no ensaio sôbre Picasso.

Picasso, para Garaudy, representa uma revolução plás­tica que destrona uma tradição de seis séculos de pintura. Nestes seis séculos, o pintor sc esforçava cada vez mais para chegar à imitação do modelo, partindo da pesquisa das linhas de fôrça e do tracejamcnto estrutural com que o modêlo se oferecia aos seus olhos experimentados. Com Picasso, a imi­tação do modêlo deixa de ser o fim visado e passa a ser so­mente o ponto de partida do trabalho criador do pintor.

A pintura de Picasso é um rompimento radical com a concepção segundo a qual a pintura deveria proporcionar uma ilusão capaz de substituir a realidade, "fingindo-lhe” a presença. O "ilusionismo” pictórico pressupunha a imobili­dade do espectador; o cubismo (a pintura impròpriámente chamada de cubista) pressupõe, ao contrário, a mobilidade do sujeito. “A pintura de Picasso é tipicamente a pintura da idade do cinema” (pág. 46 ), escreve Garaudy. Ela se dá na forma de uma síntese de impressões visuais realizada no movimento.

De resto, como síntese, ela não se pretende puramenta sensorial e nem almeja competir com a fotografia: é uma sín­tese em que se fundem livremente elementos epidérmicos e elementos intelectuais. É, sobretudo, criação humana, supe­ração da natureza bruta e dada. Resulta do exercício, pelo homem, do seu poder de se criar a si mesmo, de modificar o mundo e de plasmar formas novas ■—• poder que não pode ser simplòriamente assimilado à habilidade Imitativa. Enquan­to a pintura dos séculos imediatamente precedentes era feita para ser consumida por um público contemplativo, em situa­ção de receptividade passiva e de imobilidade, a pintura de Picasso não pode ser consumida senão por um ato daquele que se dispõe a apreendê-la: é uma pintura que cobra um caráter evolutivo para a percepção, é uma pintura que con­firma no homem a convicção de que êle é dono de si mesmo e de que a atividade humana não está sujeita a ncnhtun ile*= tino imutável.

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A revolução plástica de Picasso adquire, assim, notável significação humana. Segundo Garaudy, “o empreendimen­to cubista de Picasso é um despertar de responsabilidade. Esta estética é uma moral” . (Pág. 6 4 ). À sua maneira, o cubismo está lembrando à humanidade, que cabe a ela tornar-se efeti­vamente dona de si mesma, pois lhe está demonstrando ao vivo, no campo da plasmação de formas, que ela é dotada de tal poder e o utiliza.

Por outro lado, adverte Garaudy, é preciso não esque­cer que, a despeito das implicações políticas da pintura, pin­tura é pintura, não é política. Um quadro é um quadro, não é um manifesto. E um quadro que pretenda ser um mani­festo estará sempre em uma situação de desvantagem quan­do comparado a um verdadeiro manifesto, caso lhe queira­mos medir a utilidade como manifesto. Na pintura, os va­lores políticos conteudísticos só existem de fato através dos valores pictóricos, formais. Na obra de Picasso, ”a signi­ficação se consubstancia no plano da tela e o pensamento não lhe é anterior e nem superior: o pensamento constitui uma só realidade com o traço ou o toque”. (Pág. 83)

Assim, não se há de pedir café à vaca. Não tem senti­do abstrair-se da realidade concreta e viva de um quadro para buscar nêle apenas o evento que o inspirou. "Se eu qui­ser me informar sôbre o acontecimento, o historiador mais medíocre atenderá melhor ao meu desígnio.do que o mais genial dos pintores”. (Pág. 77). Cumpre-nos renunciar de vez ao hábito simplista de formular para "aquilo que o artista quis dizer” uma "tradução” conceituai capaz de tornar des­necessária a aproximação pessoal do ppblico, através de um esforço próprio, na direção do artista, através da apreensão da obra de arte em sua riqueza concreta.

Que dizer dessas idéias que Garaudy desenvolve com tanto arrojo? Elas refletem, sem dúvida, o anseio dos jovens que não mais se conformam com os padrões estreitos e dog­máticos do zdanovismo e exigem do marxismo uma atitude de diálogo aberto e franco com a arte moderna. Q esforço de Garaudy é paralelo ao de outro teórico marxista que en­contraremos neste livro, em um capítulo posterior: Ernst Fischer. A despeito da simpatia que nos inspira êste esforço no sentido de uma renovação da estética marxista e de um acolhimento mais decidido por parte dela às experiências da

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arte moderna, a despeito de tal esforço corresponder a uma profunda exigência intima da nossa sensibilidade, marcada pelo turbilhão contemporâneo, não podemos ignorar o que há de problemático nas posições de Garaudy e de Fischer.

Fixemo-nos por ora em Garaudy. Qual é o valor opera- tório da sua concepção de um r.calismo aberto, de um “rea­lismo sem margens”? Garaudy proclama: “O realismo se de­fine a. partir das obras e não antes delas”. (Pág. 243). Que quer isso dizer? Significa, talvez, que a crítica não deve pre­tender apresentar receitas para a criação artística, que ela não pode definir prèviamente os caminhos para a criação? Neste caso, trata-se de uma afirmação pacífica e um tanto banal. Nenhuma teoria estética pode pretender suprir a fal­ta de inspiração dos criadores, pode pretender assegurar re­sultados na criação. Mas o sentido da afirmação de Garaudy é outro.

Tôda grande obra de arte nos obriga a revermos os nossos padrões teóricos, porque, sendo resultado de uma cria­ção livre, ela comporta necessariamente certo ineditismo. Mas a própria avaliação do que a obra de arte nos traz de nôvo exige de nós a utilização rigorosa (e, por isso mesmo, não dogmática) dos critérios críticos que forjamos com base em nossa experiência anterior.

Na ânsia de combater os métodos dogmáticos da crítica zdanovista (infelizmente ainda largamente praticados em muitos lugares), Garaudy c levado a preconizar o acolhi­mento ao nôvo em termos quase agnósticos, parnirradonalis- tas, limitados pelo empirismo, marcados por uma atitude de indeterminação consentida. Assim como não podemos nos encastelar em uma teoria estética definitivamente fechada, não podemos ter a ilusão de que a nossa "abertura" espiritual exi­ge de nós que, em face do nôvo na criação artística, abando­nemos completamente as exigências a que respondem os prin­cípios e métodos de que já chegamos a dispor.

Tôda autêntica obra de arte é realista, dizem os marxis­tas. Mas o que é que caracteriza a validade estética da re­presentação do real na arte? Quanto mais profundo seja o co­nhecimento da realidade que a arte nos proporciona, tanto mais os problemas humanos de que trata a arte estarão sen­do enfocados de uma perspectiva totalizante. Por isso, a hi­pertrofia subjetivista, a representação excessivamente frag-

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mentária do real (que torna o artista em seu trabalho mero reflexo passivo da fragmentariedade do mundo capitalista), a entrega a experiências lingüisticas inconseqüentes, os pro­cedimentos avant~gardistas e naturalistas, são inimigos do realismo na arte. Mesmo que concentre a sua atenção num campo bastante restrito de problemas humanos, o autêntico artista realista só alcança a universalidade e a profundidade no conhecimento que transmite quando a essência dos proble­mas tratados não está falseada, isto é, quando êles estão im­plicitamente situados de maneira correta na totalidade dos problemas humanos de que fazem parte. Garaudy, porém, entende que o artista não está obrigado a refletir a totalidade do real.

“Uma obra — escreve Garaudy — pode ser um testemu­nho muito parcial e até muito subjetivo sôbre a relação do homem com o mundo em uma dada época, c esse testemunho pode ser autêntico e grande”. (Pág, 24á). Não é difícil en­contrar, cm nosso tempo, obras pardals c subjetivas, unila­terais e fragmentárias, c|iie oferecem interesse, comovem e elucidam algo a respeito do homem contemporâneo; mas a solidez de tais obras se refletirá na capacidade delas perdu­rarem? A questão está em sabermos: quantas e quais as obras de arte que, em nossos dias, são tão bem realizadas e tão ricas de conhecimento que sobreviverão às circunstâncias em que nasceram?

Na medida em que renuncia aos padrões que a história da arte poderia lhe fornecer para a caracterização do realis­mo, Garaudy poderá distinguir a grande ârte dos modismos passageiros, que causam poderoso impacto mas logo se hão de desvanecer? Em que critérios objetivos êle poderá se basear para estabelecer essa distinção? O “realismo sem margens” de Garaudy não será, também, um realismo sem determinações, isto é, um realismo indeterminado? E que utilidade pode ter um conceito marcado pela indeterminação? O crítico marxis­ta que procure elaborar a sua estética à base de semelhante conceito não será levado a um procedimçnto impressionista, arbitrário e superficial?

Embora não lhe faltem observações bastante verdadei­ras e muito agudas, a análise da obra de Picasso por Garau­dy parece confirmar a nossa tese de que o crítico francês não pôde escapar'■ a um impres,sionismo básico. Notemos, por

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exemplo, que a análise de Garaudy incide apenas sôbre um aspecto, uma fase, da pintura picassiana: a fase cubista. A variada obra dêste extraordinário pintor abarca tendências di­versas, anteriores e posteriores ao cubismo, que Garaudy dei­xou estranhamente de lado. Além disso, Picasso é apresen­tado como o responsável exclusivo por inovações e mudanças que estão fundamentalmente ligadas aos nomes de outros im­portantes pintores.

x Por outro lado, a caracterização dos seis séculos de pin­tura que precederam o aparecimento de Picasso é discutível. Seria a pintura de Michelãugelo ou de El Greco, de Gau- guin ou de van Gogh, uma pintura "ilusionista , cujo obje­tivo central fôsse dado pelo esforço para atingir a perfeita imitação do modêlo e para atingir um resultado capaz de "fingir” a realidade? A relação entre a pintura cubista de Picasso e seu público "ativo” (?) será tão rica e definida como a relação que existia entre a pintura dos já citados El Greco, Michelângelc „Gauguin e Van Gogh e o público "con­templativo” (?) da época daqueles pintores? <

Uma última observação, ainda: só o procedimento im­pressionista nos parece explicar a timidez de Garaudy em face da questão do figurativismo e do abandono da figura pela pintura moderna. Desprezando a figura, os pintores co- mumente chamados de abstracionistas (no sentido amplo do têrmo) conquistaram a possibilidade de criar uma represen­tação mais livre e mais essencial da realidade ou sacrifica­ram um elemento que lhes era necessário para que suag, obras proporcionassem um conhecimento orgânico do real? Embora não lhe endossemos n análise, não podemos deixar de ver na abordagem do problema por Pamieelo Bianchi Bandinelli uma coragem e uma disposição sistemática que não encontra­mos no estudo de Garaudy.

Na esteira de Arnold Hauser, Bianchi Bandinelli vê na história da pintura uma oposição constante entre a organici- dade da tendência realista e a abstração. Para Bianchi Ban­dinelli, do ponto, de vista puramente estético, as duas orien­tações se equivalem; se verificarmos, entretanto, a que for­ças sociais correspondem (como superestruturas) as obras de arte que consubstanciam uma ou outra das duas tendências, concluiremos que o abstracionismo representa (independen­temente dos desígnios subjetivos do pintor que o pratica) uma

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orientação irracionalista, de conteúdo conservador ou reacio­nário, ao passo que a representação orgânica representa a presença de fôrçasque confiam na razão e na história, isto é, de forças sociais progressistas, interessadas no conheci­mento concreto da realidade histórica.

Não cremos que a distinção feita pelo crítico marxista italiano entre o plano "puramente estético” (onde as duas orientações se equivaleríam) e o plano em que se manifesta0 condicionamento sócio-histórico seja dialética. Para nós, a questão estética pode ter a sua solução encaminhada a partir de valores estéticos: as contradições que marcam a história da estética não podem ser corretamente avaliadas se conce­bermos a estética como um campo metafisicamente autônomo da praxis criadora do homem; em suas raízes, essas contra­dições nos remetem à atividade humana global e, especial­mente, às bases sócio-econômicas de tal atividade; mas, des­de que reconheçamos uma autonomia rcladva (e, por conse­guinte, uma cspccijicidnde) à criação artística, não podemos deixar de admitir que há uma balalhn a ser travada no pró­prio plano d o conhecimento estético. Para legitimar uma orientação pictórica, não podemos nos limitar ao recurso a formulações ideológicas genéricas e razões estritamente polí­ticas: precisamos encontrar os valores especificos que assina­lam a sua superioridade estética sôbre outras orientações (outras orientações que, tanto do ponto de vista geral do humanismo como do ponto de vista particular da arte, sejam menos fecundas).

Bianchi Bandinelli parece admitir isso, quando, no final de seu livro,1 formula argumentos que pretendem estabelecer uma superioridade estética da representação realista (orgâ­nica) sôbre a tendência abstracionista: "Somente o artista realista é livre em sua individualidade; a abstração conduz sempre a uma routin.c impessoal” . Os abstracionistas são le­vados à imobilidade das formas geométricas e a um’ número muito limitado de esquemas, enquanto a representação orgâ­nica do realismo se agita sempre e se renova, sem jamais po­der fechar-se sôbre si mesma, jã que se acha essencialmente li-

1 Organicità e Astrazione, ed. Feltrinelli, 1956. H á uma tradução castelhana de Elsa dei Rio de Maragno, lançada em 1965 pela Edito­rial Universitária' de Buenos Aires.

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gada a uma realidade mais ampla, que é a realidade humana geral e só existe em permanente transformação.

Mas, receoso de que o reconhecimento da especificida- de da estética acarrete uma visão idealista (esteticista) das questões da arte, o crítico italiano acaba por se fixar na tese ,de que as razões estéticas como tais são, a rigor, inúteis, por­que de fato impotentes (considerando que, se elas não podem tudo. então não podem nada).

Apesar dessa reserva que lhe fazemos, contudo, estamos convencidos de que Bianchi Bandinelli pelo menos enfrentou um problema crucial de que Garaudy evitou falar em seu livro.1

i Deixando de enfrentar certos problemas em tôda a complexidade de que se revestem e encastelando-se, às vêzes, em formulações grandilo­quentes e pouco precisas, Garaudy manifesta debilidades teóricas que são aproveitadas por seus contraditores no marxismo francês, sobretudo por I ouis Althusser e Pierre Macherey. À retórica de Garaudy, entretanto, Allhusser e Macherey opõem, a meu ver, uma versão neopositivista do marxismo.

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23Hauser

i *

A relação existente entre a estética e a sociologia da arte é, sem dúvida, uma relação no mesmo tempo íntima, de­licada e complexa. Se as questões de estética e de história da arte são consideradas inteiramente independentes das questões sociológicas, o observador fica de todo incapacita­do para dar conta, de uma perspectiva marxista, da cone­xão essencial da arte com o seu tempo: a arte perde a sua historicidade concreta. Por outro lado, se as questões de estética são reduzidas a questões de sociologia da arte, o observadqr se vê limitado pelo sociologismo e não consegue dar conta, de uma perspectiva marxista, da durabilidade do conhecimento artístico e da sua especificidade.

O sociologismo não existe,como pecado de todo e qual­quer trabalho de sociologia da arte; só existe nos trabalhos

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de sociologia da arte que extrapolam dos limites próprios da área que lhes cabia. Freqüentemente, o sociologismo se manifesta nas considerações estéticas apressadas de soció­logos que, lidando com problemas estéticos, dominam-nos mal e não têm pela arte como tal o mesmo interêsse que têm pela sociologia. Freqüentemente o sociologismo revela no soció­logo ou no historiador, além de uma aparelhagem conceituai deficiente, uma escassa familiaridade com tôda a riqueza de que é capaz o conhecimento artístico. Êste, evidentemente, não é o caso de Arnold Hauser.

Poucas pessoas ter-se-ão dedicado tão integralmente à arte como Hauser. Nascido na Hungria, Hauser estudou F i­losofia, Literatura e História da Arte em Budapest, em Paris, ■em Berlim e, sobretudo, na Itália, onde viveu durante vários anos. Mais tarde, lecionou História da Arte em Budapest, Viena, Londres e Estados Unidos. O resultado desta vida inteira de convívio com a arte e de estudo dos seus problemas foi uma obra monumental, de leitura obrigatória: a Ilistória Social da. Arte.'

Esta Ilistória Social tia Arte proporciona uma informa­ção tão importante c tão vasta que não nos é possível pensar em fazer referencia aqui sequer nos seus aspectos principais. Hauser lança luz sobre as relações existentes entre a arte do período paleolítico e as condições de vida dos homens pri­mitivos de então; lança luz sobre os efeitos da revolução neo- litica na história da arte; lança luz sôbre alguns aspectos básicos da arte e da cultura grega. Sob sua penetrante aná­lise, são esclarecidos alguns pontos delicados e básicos da passagem da arte românica à arte gótica, é explicada a as­censão social dos artistas sob o Renascimento e são elucida­das algumas características sutis do barroco, do maneirismo, do rococó, do romantismo, do classicismo, do impressionismo e da arte moderna em geral.

A preocupação constante de Hauser é a de não perder de vista o condicionamento social dos movimentos artísticos que analisa. Embora não seja marxista, êle (tal como já vi-

1 The Social History of Art, Arnold Hauser, ed. Routledge & Kegan Paul, 1951. Há edição espanhola (História Social de la Literatura y el Arte, ed. Guadarrama) e portuguesa ( História Social da Arte e da Cultura, ed. Jornal do F ô ro ).

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mos ocorrer em W alter Benjamin) se serve dos métodos mar­xistas, situa-se na perspectiva do materialismo histórico. Sua convicção é a de que uma mudança substancial em um estilo artístico só pode setf explicada através do recurso a um con­dicionamento exterior: em última análise, as grandes altera­ções formais da história da arte são sempre condicionadas de fora do campo estritamente estético. Não há — diz Hauser — nenjkum prazo interno para que um estilo seja substituído por outro.

A pesquisa do condicionamento social dos movimentos artísticos, entretanto, por imprescindível que é, não há de dei­xar de ser cautelosa. A sociologia da arte é necessária mas não deve ser absorvente, tirânica. Percebendo que os mé­todos por meio dos quais lhe fôra possível reconstituir a evo­lução da arte em suas conexões essenciais com a sociedade eram métodos que exigiam esclarecimentos e desenvolvimen­tos teóricos, Hauser escreveu seis ensaios que reuniu em um nôvo livro —- A F ilosofia da H istória da A rte1 — publicado como uma espécie de introdução que ftão chegara a ser es­crita para a obra anterior. ..

Na H istória Social da Arte, por vezes, Hauser fôra le­vado a interpretar um tanto mecânicamente alguns movimen­tos estilísticos. A crescente melancolia mórbida de que Botti- celli se vai deixando possuir no último período da sua ativi­dade criadora, por exemplo, era explicada meio forçada- mente — como um reflexo da diminuição da clientela pro­vocada pela opressão fiscal dos Médicis sobre Florença.2 Na F ilosofia da História dn Arte, Hauser reconhece, generica­mente, uma aplicação deficiente do mélodo dialético cm seu livro anterior.

Definindo a função necessária da sociologia da arte e seus limites, escreve o crítico húngaro-inglês: “tôda arte é socialmente condicionada, mas nem tudo na arte é passível de ser definido em termos sociológicos”.3 O approach socio­lógico, adverte êle, não nos dá e nem pode nos dar o conhe­cimento concreto daquilo que é específico, individual, na obra? de arte: “Que conhecemos nós realmente a respeito dos pro-

i lhe Philosophy of Art History, ed. Routledge & Kegan Paul.« lid. espanhola, pág. 416 .■ The Philosophy of Art History, ed. c it., pág. 8 .

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blemas artísticos com que Michelângelo teve de se defrontar, que sabemos nóç da individualidade dos seus meios e métodos quando nos limitamos a observar que êle foi contemporâneo das fórmulas do Concilio' de Trento, do nôvo realismo polí­tico, do nascimento do capitalismo moderno e do absolutis- mo?”.1 Hã na arte sutilezas mil, flutuações de cadência e de ênfase quase imperceptíveis, que não podem ser negligencia­das. A riqueza singular de cada obra de arte exige de nós, para que a apreendamos, que nos formemos idéias bàsicamen- te justas a seu respeito e, também, que nos familiarizemos pràticamente com a obra, que convivamos com ela. As in-

, formações teóricas que a sociologia da arte nos pode propor­cionar (como as informações teóricas da própria estética) nos ajudam na orientação que temos possibilidade de impri­mir à crítica da nossa experiência artística, mas não podem suprir essa experiência.

A perspectiva de que arte é encarada pela critica socio­lógica e n perspectiva de que a ar(e é encarada pela crítica estética, dc resto, não devem ser confundidas. Hauser lem­bra que, “de um ponto de vista sociológico, um artista de segunda ou terceira ordem pode ocupar uma posição-chave em um determinado movimento artístico”.2

O reconhecimento expresso dos limites qqe a sociologia da arte está obrigada a respeitar tanto em face da teorização estética como em face da variedade concreta das sutilezas que0 individual sensível apresenta na experiência artística, entre­tanto, é um reconhecimento ainda meramente negativo. Para melhor definir os seus pontos de vista acêrca da autonomia relativa da arte (autonomia que faz dela algo mais do que a pura ilustração de uma tendência social genérica), Hauser é levado a analisar, em seiu segundo livro, o caráter especial da arte como estrutura ideológica.

Ele parte da observação de que cada uma das diversas estruturas culturais — tais como a religião, a filosofia, a ciên­cia, o direito e a arte — mantém certa “distância” em rela­ção às suas respectivas origens sociais, de módo que elas não podem ser “reduzidas” a tais origens sem um desrespeito à realidade do tempo que as destacou delas. Êsse destacam ento

1 Op. cit., pág. 15,2 Op. cit., pág. 11.

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explica a autonomia relativa conquistada pelo movimento ideo­lógico . Para Hauser, a esfera da criação cultural -artística é mais autônoma e mais destacada que a do desenvolvimento das ciências exatas e. bem mais autônoma especialmente do que a dos conhecimentos aplicados diretamente à satisfação

,das necessidades econômicas básicas ou à satisfação das ne­cessidades tecnológicas.

Outra observação do critico húngaro-inglês é a de que o condicionamento exercido pelo desenvolvimento econômico e pela situação social assume diferentes modalidades nos di­versos campos da cultura e, até mesmo, nas distintas áreas de cada campo. Para demonstrar a inexistência de uniformi­dade nesse condicionamento c chamar a atenção para as me­diações que êle utiliza em cada caso particular, Hauser lem­bra o que se deu com a arte européia do século X V III, quan­do a burguesia em ascensão exercia maior influência sobre a literatura e a pintura do que sôbre a música, de modo que o número crescente de burgueses estimulava a elaboração de novos critérios literários e pictóricos, çnquanto na produção musical ainda predominavam (com feçundidade) os velhos padrões, afinados com o gôsto da Conte e das autoridades eclesiásticas.

A despeito da lucidez a argúcia reveladas por estas e outras observações de ambos os livros de Hauser, a perspecti­va do crítico apresenta, a nosso ver, alguns aspectos proble­máticos. Sua aparelhagem conceituai nos parece carecer de uma base filosófica mais definida. Seu imenso convívio com a grande arte fá-lo perceber mtanees que um enfoque socio- logista de tipo tradicional não podería levar em conta. Mas, apesar da sensibilidade refinada e de todas as ressalvas que faz, Hauser se serve de uma aparelhagem conceituai que não lhe permite uma completa superação do sociologismo.

Uma queda de Hauer no sociologismo, por exemplo, já foi por nós assinalada na interpretação da melancolia de Bot- ticelli exposta na História Social da A rte. Outra é apontada pelo crítico tcheco Karel Kosik (a quem dedicamos outro ca­pítulo deste livro), examinando uma formulação desenvolvi­da na Filosofia d a História da A rte : Hauser parte da cons­tatação de que os costumes mudam mais depressa do que o vocabulário dos homens para concluir que “é em conseqüên- cia desta inércia que as formas da arte também sobrevivem

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às condições em que se originaram e sobrevivem ao signifi­cado original que tiveram”.1 Ora, a durabilidade do conhe­cimento artísticò nãó pode ser explicada como decorrência da inércia na transformação do vocabulário humano. Na arte que sobrevive ao desgaste do tempo e perdura como conhe­cimento artístico vivo, há uma capacidade de renovação que transcende da mera inércia, há uma força fecundante e plas- madora de valores ativos que o mero caráter de inércia não consegue tornar compreensível.

O fato de que Hauser por vêzes deslize para o sociologis- mo não é casual; êle deriva dos aspectos confusos do seu pen­samento filosófico. A apreensão das leis dos fenômenos es-

. téticos exige que o observador se distancie da singularidade imediata e, só depois da generalização filosófica, volte ao con­tato mais direto com a individualidade dos sèrcs. À nocivi­dade do empirismo está em que êle fida Pste vôo necessário da abstração e fctichiza o individual. Por adotar uma pers­pectiva marcada pelo empirismo, a nosso ver, é que Hauser não consegue superar o soctalogismn. B , pela mesma razão, êle é levado a encarar com suspeita o marxismo, formulando- lhe reservas infundadas. Como, por exemplo, quando escre­ve: “O indivíduo como tal é, em última análise, irrelevante para Marx, como o era para Hegel”.2 Trata-se de uma po­sição falsa. Nos termos em que Marx o formulou (e que não se confundem com a versão stalinista ou chinesa), o mar­xismo não se opõe à valorização fundamental do indivíduo, que, segundo uma tradição iniciada com os gregos e impulsio­nada pelo cristianismo, culminou no humanismo clássico bur­guês; o que o marxismo combate nesta tradição é o caráter impróprio, abstrato, limitado, idealista, da referida valoriza­ção . A exigência de uma forma humana de comunidade é for­mulada pelo marxismo justamente em termos que possibili­tem efetivamente o pleno desenvolvimento humano dos indi­víduos. O marxismo apresenta, assim, uma concepção mais realista e mais conseqüente do indivíduo que a concepção do individualismo tradicional.

1 Op. cit., pág. 185.2 Op. cit., pág. 199.

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Prêso a uma concepção empirísta do indivíduo, Hauser não percebeu isso. E, embora êle mesmo tenha utilizado tão amplamente em seu trabalho os métodos da dialética de Marx, foi levado a “estranhá-la” em sua formulação filosófica gené­rica. Juntamente com a dialética idealista de Hegel, acabou

■ por rejeitar a dialética materialista de Marx (que vinha aplicando).

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X *

1S9

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(

27Fischer

■)

E r n s t F is c iih ií , poeta c crítico austríaco, nascido em 1899, foi Ministro da Educação do governo provisório da Áustria estabelecido cm 194*5, logo após o final da guerra. Comunista desde 1^34, Fischer foi, em certo período, um lu- kacsiano. O crítico italiano Cesare Cases conta o seguinte episódio: Lukács estava, uma ves, falando a respeito de seu próprio estilo, comentando a dificuldade que suas frases lon­gas, tortuosas e nuançadas, acarretavam para a leitura. E dizia: "Sei que nenhuma de minhas frases, isoladamente, so­breviverá. Acho, contudo, que alguns dos meus livros sobre­viverão” . Fischer, presente à conversa, corrigiu Lukács: "Alguns, não; todos”.1

1 Saggi e Note di Letteratura Tedesca, Cases, cd. Einaudi.

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Atualmente, Fischer se afastou das posições de seu an­tigo mestre e diverge dêle no enfoque de diversas questões. Em face da arte moderna, por exemplo, a atitude de Fischer é muito menos rigorosa do que a de Lukács e suas conclusões são bem menos negativas. Fischer tende a rejeitar o concei­to de decadência nos termos em que êste conceito tem sido aplicado à caracterização da arte moderna e, especialmente, à caracterização do a van t~gardismo,

Para Fischer, nem tôdas as expressões culturais de uma época de decadência, como a nossa, mesmo no interior de uma classe decadente, devem ser consideradas comprometi­das com a decadência. Neste sentido, Fischer considera a decadência da burguesia no mundo contemporâneo qualitati­vamente diversa da decadência do antigo mundo romano: esta última foi culturalmente estéril, mas a outra (a da bur­guesia) não o é. Durante o colóquio de Praga, realizado em 1963, Sartrc adotou esta distinção de Fischer,1

Como crítico, Flseher Irm exercido poderoas influência. Entre os marxistas franceses, por exemplo, suas idéias encon­tram grande receptividade. Os melhores esforços de Fischer estão dedicados à defesa da necessidade da arte: A N ecessi­dade da Arte, aliás, é o titulo de seu principal livro, um livro que já foi traduzido para diversas línguas e editado em di­versos países, inclusive no Brasil.2

Para explicar a natureza da arte, Fischer se reporta às suas origens históricas e mostra que, nos alvores da huma­nidade, a arte era um instrumento mágico a serviço da cole­tividade humana- em sua luta pela sobrevivência. Naquele tempo, o trabalho humano era rudimentar, dominava muito deficientemente o mundo exterior e, por isso, o mundo subje­tivo não se distinguia bem do mundo exterior, objetivo. “A religião, a ciência e a arte eram combinadas, fundidas, em uma forma primitiva de magia, na qual existiam em estado latente, em germe”.3 “A função decisiva da arte nos seus primórdios foi, inequivocamente, a de conferir poder: poder

1 Revista La Nouvelle Critique, n.° de junho-julho de 1964.2 A Necessidade da Arte, Ernst Fischer, ed. Zahar, 1966.3 Op. c it., pág. 19.

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sôbre a natureza, poder sôbre os inimigos, poder sôbre o par­ceiro de relações sexuais, poder sôbre a realidade”.1

Quando se processou a divisão social do trabalho e apa­receram as classes saciais, a comunidade humana -—■ que per­dera a unidade natural primitiva — deixou de se servir da

'arte na função que esta vinha tendo: a arte se vinculou aos antagonismos de classe (que não existiam no período antqrior) e passou a ser um meio para a superação da soli­dão individual, um melo para cada indivíduo se ligar à co­letividade dilacerada,

A subjetividade se desenvolveu, mas o seu desenvolvi­mento se deu cm condições que não ensejaram um aprofun­damento na comunicação inlersnbjctiva, porque o espírito co­munitário não pode se impor onde a vida prática se rege pela competição mais exacerbada entre os indivíduos. O indiví­duo se sente inconformado com a idéia de que êle é apenas um indivíduo e se esgota em si mesmo.1 )‘Sente que só pode atingir a plenitude se se apoderar das experiências alheias que potencialmente lhe concernem, que poderíam ser dêle. E0 que um homem sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo com o todo”.2

No curso da história, à medida que se desenvolve a do­minação da natureza pelo homem, a arte vem tendo multi­plicadas e diversificadas as suas funções. Sem perder de todo a sua serventia mágica original, ela amplia o scit poder de proporcionar ao homem um melhor conhecimento de si mesmo e do mundo em que vive. Sendo um meio de eenheci- mento, por outro lq.do, e cm virtude dn natureza especial que possui, não deixa de funcionar, também, como veículo de re­creação, como fator de equilíbrio, como terapêutica psicoló­gica, como “jôgo sério” (Goethe), como superação simbó­lica do isolamente individual, e até como arma na luta política.

As cjiversas funções que a arte exerce, em nossos dias, não se equivalem umas às outras. Essas funções correspon­dem a níveis de ação cultural que comportam possibilidades

1 Op. c it., pág. 45 .2 Op. c it., pág. 13.

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diferentes para a praxis humana. Existe nelas uma hierar­quia de significações. O valor que uma obra possui apenas como veículo de recreação, por exemplo, não pode ser so­breposto ao seu valor especificamente estético-gnoseológico. O sistema capitalista ■—• com sua rejeição prática da comuni­dade humana e com sua aversão à arte — é que procura lançar a confusão sôbre isso. O capitalismo alimenta nas massas um espírito que as leve a só buscar na arte experiên­cias culturalmente inócuas, que as leve a procurar obras su­perficiais, de ação meramente digestiva, e nunca obras real­mente capazes de levar os homens a uma compreensão mais profunda de seus próprios problemas.

Sob a pressão da ideologia capitalista, alguns críticos e alguns artistas perdem de vista o essencial na arte, deixam de se preocupar com ns possibilidades de maior alcance da criação estética e se pflein a superestimar funções secundá­rias do trabalho artlslleo, Sacrificada a dignidade que lhe advém do falo de ser um modo dê" conhecer o real, a arte deixa de ser o "jôgo sério" de que falava Goethe e fica sen­do apenas um jôgo sem seriedade, equivalente a qualquer outro jôgo; deixa de ser uma atividade de desalienação para se tornar uma atividade gratuita e fútil, um acumpliciamcnto com a alienação. s

Fischer, como marxista, não ignora a existência dessa pressão ideológica do capitalismo no sentido de combater a eficácia particular da arte como meio de conhecimento; algu­mas das melhores páginas de seu livro estão dedicadas ao desmascaramento da patranha. Surpreendentemente, contu­do, o brilhante ensaísta austríaco faz uma concessão — difí­cil de se entender — à ideologia burguesa: abre mão da teo­ria marxista do realismo.

Na acepção ampla que lhe dá o marxismo, o conceito de realismo abarca tôda a grande arte e não se deixa encerrar em fórmulas comprometidas com quaisquer "escolas”, “cor­rentes”, “estilos” ou "métodos” particulares. Empregado em sua máxima amplitude, o conceito de realismo serve à estéti­ca marxista para frisar na arte o seu caráter de conhecim en­to da essência da realidade. Com base em tal conceito, a es­tética marxista define, desde logo, uma posição de combate às teorias que vêem na arte acima de tudo uma atividade lú­dica gratuita, a m anifestação d e uma subjetividade fetichiza-

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da (desligada de seu condicionamente histórico-social) ou a representação fragmentária de uma realidade epidèrmicamcn- te captada. Em outros têrmos: definindo-se pelo realismo, a estética marxista Rejeita o esteticismo, o psicologismo e o naturalismo; rejeita as atitudes idealistas, românticas e em-

’ piristas.Fischer, entretanto, acha que o têrmo realismo, usado

nes^a acepção ampla, enseja multas confusões. E preconiza o confinamcnto do conceito de realismo às dimensões de um método particular, equivalente a outros métodos possíveis.

Reduzido o realismo aos limites de um método parti­cular, de um estilo ou dc uma escola, ele já não proporciona ao crítico marxista um critério de valor estético. Ser realista, em princípio, vale tanto como ser romântico, ser expressio- nista, ser clássico, etc. Fischer vê nisso uma vantagem: a crí­tica marxista seria levada a respeitar mais a liberdade de cria­ção do artista. Mas, a noss'so ver, a legitimação teórica desta “vantagem" é precária. Para respeitarem ) liberdade de cria­ção artística, os críticos marxistas não estão obrigados a re­nunciar à crítica e às suas exigências: cabe-lhes exbrcerem honestamente o seu mister, recusando-se a dar cobertura a medidas burocrático-repressivas, recusando-se a apoiar qual­quer política cultural de orientação dogmática ou imediatista, mas defendendo as idéias em que acreditam e utilizando a aparelhagem conceituai mais adequada para a expressão dessas idéias.

Por ter adotado uma concepção estreito chi realismo, Fis­cher é levado a análises criticas por vezes bastante discutí­veis, como a da evolução de Thoinas Mana (segundo a qual o D oktor Faustag seria menos “realista" do que Os Budden- brook) ou a da evolução de Stendhnl (segundo a qual o Lu- cien Lewen seria mais “realista" do que O Verm elho e o N e g r o ) . Também em sua interpretação dos acontecimentos ocorridos com a literatura soviética durante o período stali- nista, Fischer é levado a conclusões que nos parecem suma­mente insatisfatórias. Para êle, já que a expressão realismo socialista. se acha comprometida com a literatura de propa­ganda de baixo nível que a burocracia staliniana oficializa­va e se acha comprometida igualmente com um espírito acadêmico o melhor é substituí-la pela expressão “arte socialista”.

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A nosso ver — como já dissemos ao tratar das origens do realism o socialista no capítulo dedicado a Górki — o equí­voco não está no substantivo e sim no adjetivo: o voluntaris- mo stalinista promoveu a hipertrofia d o caráter socialista (alvo que se visava atingir) e a atrofia do caráter realista (apreensão das condições concretas do presente). As reali­zações do chamado realismo socialista não foram deficientes em virtude da orientação realista e sim em decorrência do deficiente aprofundamento dessa orientação, dada a falta de penetração na essência do real, dada a simplificação das con­tradições existentes na realidade soviética e, também, dada a subordinação anômala do substantivo às exigências imedia- tistas formuladas em nome do adjetivo.

Estas reservas não nos devem impedir de enxergar em Fischer um crítico dc amplos horizontes ideológicos e cultu­rais, um teórico dc* inegável talento. Seu livro — como assi­nalou um crítico brasileiro — cnrcce dc uma sfstematizaçáo mais elaborada e de uma metodelonlp mais definida no tra­tamento das questões estéticas.* Mas, n despeito do seu im- pressionismo, assinala um êxito na renovação da crítica marxista.

1 Revista Civilização Brasileira n.° 7, resenha de Ferreira Gullar, pág. 459.

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28Kosik

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^ Í ão é só noa pnlxes capitalistas que podem ser regis­tradas iniciativas dignna ile atençHo no sentido de uma revi­talização e um desenvolvimento do pensamento marxista e da estética do marxismo: também nos países socialistas, supera­dos alguns dos entraves burocráticos stalinistas, a teoria mar­xista da arte se renova. Tomemos, como exemplo, o filósofo tcheco Karel Kosik.

Kosik nasceu em Praga, em 1926. Participou clandes- tinamente1 da resistência antinazista, durante a guerra, quan­do seu paL/-~ a Tcheco-Eslováquin —1 foi ocupado pelas tro­pas hitlerianas. Exerceu, na década de cinqtienta, como mi­litante comunista, uma ativa influência na luta contra a es- treiteza dogmática e contra os métodos stalinistas. É um dos

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responsáveis pela reavaliação da obra de Kafka na Tcheco- Eslováquia.

Em 1965, a editora Bompiani lançou, na Itália, a tradu­ção de uma importante, obra dêste pensador tcheco: a Dra- letica dei Concreto (trad. Gianlorenzo Pacini) . Nela, Kosik analisa as mistificações do mundo da "pseudoconcreticida- de”, que é o mundo da reificação, das aparências enganado­ras, dos preconceitos e da praxis fetichizada. A Dialética d ei Concreto, de resto, não é fecunda apenas para a estética mar­xista: ela possui uma fecundidade mais ampla e ajuda a apro­fundar a própria teoria marxista do conhecimento.

O mundo da "pseudoconcreticidade”, segundo Kosik, é o mundo da confusão da verdade com o êrro, é o mundo da ambigüidade generalizada. Na realidade que a autêntica praxis vai desvendando ao homem, essência e fenômeno cons­tituem o mundo concreto: há entre essência e fenômeno uma unidade mas não unm identidade. Para não se afastar do concreto, o conhecimento humano ^precisa distinguir, a cada passo, cm cada nível, onde se situa cá essência c onde se si­tua a sua, manifestação íennmánkrt, n fim dc poder apreen­der-lhes a efetiva unidade,

Kosik enxerga nessa dificuldade inerente ao processo de desenvolvimento do cunhei intento humano as próprias raízes gnoseológicas do pensamento religioso. Em face das condi­ções extremamente duras em que o conhecimento se vê obri­gado a avançar, separando continuamente o fenômeno e a essência para reencontrar-llu-s a unidade, o sujeito costuma impacientar-se e recorrer ás fórmulas misticas de um conhe­cimento que prescinde de mediações e que forja a apreensão imediata da essência do real: “o mistltismo é exatamente a impaciência do homem por conhecer a verdade”.1

Por outro lado, mesmo que não recorra ao procedimento místico, o sujeito humano pode levar seu conhecimento a per- der-se em descaminhos vários. A reflexão e a observação comportam o reconhecimento das mediações, mas também admitem que o sujeito humano se desvie ,da apreensão da essência do real. Â própria atividade do sujeito humano no

r Dialettica dei Concreto, edição referida no texto, pág. 2 7 . Os tre­chos citados neste capítulo são todos extraídos dêste livro e as páginas se referem a esta edição.

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sentido de se apropriar do real, por conseguinte, precisa ser analisada. E Kosik apresenta o problema com notável cla­reza: “O problema fundamental da teoria materialista do co­nhecimento é constituído pela relação e pela possibilidade de transformação da totalidade concreta em totalidade abstra­ia : como fazer para que o pensamento, reproduzindo espiri­tualmente a realidade, se mantenha à altura da totalidade conpreta, ao invés de degenerar cm totalidade abstrata?” (Pág. 62).

A importância atribuída por Kosik ao caráter totalizan- te do conhecimento filia-o, desde logo, à linha racionalista de Georg Lukács. Kosik não é um lukacsiano ortodoxo, como era até bem pouco Cesarc Cases, porém possui uma dívida em relação a Lukács c espccialmente em relação ao Lukács de História e Consciência c/c C lasse No entanto, a orienta­ção mais resolutamente materialista de Kosik faz com que, em sua compreensão do caráter da praxis fn.umana, êle seja capaz de discernir uma variedade de aspectos que era- des- curada pelo Lukács hegelianizante- de 1922. ,

“O grande conceito da moderna filosofia materialista -—■ escreve Kosik — é a praxis” (pág. 2 3 7 ). Com tal formula­ção, Kosik passa de uma posição lukacsiana (conhecimento concebido como totalização) a uma posição gçámsciana (mar­xismo concebido como filosofia d a praxis) . A praxis é a atividade pela qual o homem se caracteriza como homem e pela qual êle sc apodera do mundo. Ela implica na relação sujeito-objeto. O trabalho ê uma modalidade de praxis, po­rém, para Kosik, a praxis t mnls ampla do que o trabalho, de vez que ela compreende, fllétn do momento propriamente la~ borativo, o momento existencial,

A praxis é não só atividade de dominação cia natureza e formação dos sentidos humanos como — cumpre não perder isso de vista — elaboração da subjetividade (pág. 2 4 3 ). Se a relação do homem com qs coisas fosse uma mera relação entre objetos, não haveria liberdade, a praxis não possuiría um caráter ontocriador. A relação sujeito-objeto cria um nôvo modo de s a , um modo de ser que não sc deixa esgotar pelo presente e que envolve, conjuntamente, o passado, o presen­te e o futuro. A praxis sintetiza o passado, sc realiza no pre­sente e projeta o futuro.

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À tarefa de projetar o futuro corresponde certa "inten- cionalidade” característica da consciência humana. .Não se trata de uma .intencionalidade genérica e abstrata, e sim de uma intencionalidade sempre particularizada por formas con­cretas da praxis. A atividade do homem, em geral, é múlti­pla, tem vários aspectos; e a cada u mdêsses aspectos está ligada uma “intencionalidade” característica. “O homem — escreve Kosik — vive em múltiplos mundos, mas cada mundo tem úma chave diversa, e o homem não pode passar de um ao outro sem essa chave, quer dizer, sem mudar a intencio­nalidade e o correspondente modo de apropriação da rea­lidade”. (Pág. 29)

Retomando uma reflexão que o jovem Marx desenvol­vera nos Manuscritos lü onôm icos e F ilosóficos d e 1844, Ko­sik assinala que a descoberta do sentido objetivo das coisas é, ao mesmo tempo, n criação de um sentido subjetivo apro­priado para capacitar o homem àquela descoberta.

Com a divisão social do trabajho e seus efeitos aliena- dores, o momento subjetivo tlã realidade social se desligou do momento objetivo, criandone, assim, duas ilusões: a do subjetivismo e n tio objctivism o. No terreno da estética, po­dem ser encontradas, com fm ilidude, expressões tanto do subjetivismo como do ohjetivismn.

A tendência subjetivlstn leva a desvincular a criação ar- tistica do mundo objetivo em que vive o sujeito criador, leva a uma concepção arbitrária da subjetividade, leva a uma con­cepção irracionalista da criação. A tendência objetivista, por sua vez, leva a estabelecer uma ligação direta ou insuficien­temente mediatizada entre a obra de arte e a situação objeti­va dada, a circunstância histórica em qúe se realizou a cria­ção. “Mas a realidade social é infinitamente mais rica e mais concreta do que a situação dada e do que a circunstância his­tórica, porque ela (realidade social) inclui em si a praxis humana objetiva, que cria tanto a situação como as cir­cunstâncias”. (Pág. 145)

O sociologismo promove, sem dúvida, a confusão em torno da natureza da arte, acolhendo uma metodologia vicia­da pelo objetivismo. Porém o sociologismo promove, também, a confusão em tôrno da natureza da economia e da situação social, deixando de encará-las como produtos da praxis hu­mana criadora. Os críticos de orientação sociologista tomam

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a economia e a situação social como realidades fetichizadas, encarando-as como se elas criassem a atividade do homem e não ao contrário. A realidade é mais ampla do que a si­tuação, pois abrange a praxis humana que criou tal situação e a vai superar. "A economia — adverte Kosik — não en­gendra a poesia, quer direta quer indiretamente, quer me- Siata ou imediatamente; é o homem que cria a economia e a poesia como produtos da praxis humana” . (Pág. 132)

realidade que se desvenda ao homem na arte não é uma realidade que o homem já conhecesse e que a arte lhe esteja apenas apresentando sob outra, diversa forma. "A obra de arte exprime o mundo enquanto o cria”. (Pág. 144). Para compreender isso, é preciso ter em mente que o conhecimento humano totaliza uma realidade que se renova a cada instan­te. O nôvo é uma qualidade estrutural do real. (O Lukács de História e Consciência dc Clas'se já havia enxergado na realidade que a praxis nos vai desvendando um “jorrar inin- terrompido de novidade qualitativa” ) . /

Em sua essência, o real vai se desvendendo à atividade prático-espiritual do homem como uma totalidade; mas o real é irredutível ao conhecimento, a consciência jamais esgota de­finitivamente o real, e a totalidade-categoria em que a cons­ciência humana busca reproduzir a realidade deve ser uma totalidade "aberta” . A consciência que descura a infinita ri­queza do real e busca encerrá-lo de uma vez por tôdas cm uma concepção ncabmla, "fechada”, não-contrnditória, da to­talidade acaba inevitãvelmente lidando com uma mfalidade abstrata, vazia c dcforinndorn do real,

Um dos modos de evitarmos a degenernção da totalida­de concreta em totalidade abstrata ê justamenle não perder­mos de vista essa inesgotabilidade do real, não deixarmos de ter em mente o caráter ontocrlador da praxis humana. Na elaboração de tôda obra de arte, como em qualquer modali­dade de praxis, a reprodução do passado se completa com a criação do nôvo, o objetivo sctompletn com o subjetivo, o absoluto se cria no relativo. Ilamlet, Pmisto, Don Quixote e Gregor Samsa escreve Kosik — representam formas de consciência Caídas de uma determinada situação histórico-so- cial e que, uma vez formadas, se inseriram ativamente no fluxo histórico, justamente por estarem criando a história. E, por

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estarem criando a história, sobrevivem às circunstâncias par­ticulares da sua gênese.

Aqui, Kosik chega ao problema colocado por Marx: a dificuldade não está em compreender a ligação da antiga arte grega com a sociedade do seu tempo, está em explicar por­que elg ainda hoje pode nos proporcionar uma rica experiên­cia estética e, do ponto de vista formal, vale como norma e modelo insuperado. O filósofo tcheco enfrenta o problema e começa por observar que a “supratemporalidade” da obra de arte não é outra coisa senão a sua “temporalidade” perdu­rando como atividade. E acrescenta, com agudeza e rigor, que não pode ser “supratemporal” (isto é, não pode se situar acima 'do tempo) algo que nasce no tempo.

A seguir, procurando explicar como a "temporalidade" de uma obra de arte consegue perdurar como influência ati­va, Kosik se reporta a um caráter humano genérico, que exis­te como condição geral <le lôdas as fases históricas c, ao mes­mo tempo, como produto particular de cada época. (Pág. 161). Kosik ressalva que semelhante caráter humano gené­rico não existe de maneira autônoma, como substância imu­tável. Mas, ao mesmo tempo, funda nêle um valor “meta- histórico” . Falando cm valor "mela histórico”, Kosik não es­tará abandonando o terreno tio rigoroso imanentismo histo- ricista? Não estará acolhendo elementos metafísicos em sua concepção do marxismo? Nao estará deixando de conceber o marxismo como hisforicismo absoluto, como postulava Gramsci? E a concepção th- um caráter humano genérico pelo pensador tcheco não estará assumindo uma feição inevitàvel- mente substancialista?

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Conclusões

X Com Karel Kosik encerramos, um tnnto nrbitrària- mente, nossa evocação sumária clc alguns vultos significati­vos da história da estética marxista. Muita gente importan­te ficou de fora (Meycrhold, Ernst Bloih, T, W . Adorno, Paul Lafargue, Adam Schaff, Cesare Pnvese, Gcorge Thom­son, Sidney Finkelstein, Antonio Danfi, ele.), Muitos proble­mas de primeira grandeza não terão sequer sido aflorados. Mas .—' conforme tivemos oportunidade de assinar na "In­trodução” — estamos convencidos de que, nas nossas condi­ções de trabalho, as omissões eram mesmo inevitáveis. Por isso, conformamo-nos com os limites modestos admitidos para o plano do presente estudo.

Kosik nos colocou diante da necessidade de aprofundar­mos a nossa compreensão da história e da historicidade. A

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concepção marxista da história pressupõe uma interação re­cíproca entre o passado, o presente e o futuro. Para a cons­ciência humana, encarada da perspectiva marxista, não exis­te presente sem projeção para o futuro: dado o caráter essen­cialmente projetivo da consciência humana (vinculado ao ca­ráter éssencialmente teleológico do trabalho humano), o fu­turo é um fator estrutural do presente. No entanto, o futuro também não existe como um por-vir inteiramente desligado do presente. O futuro existe já no presente como possibili­dade, existe em germe: sua determinação não é indiferente às condições atuais do presente.

Por outro lado, o marxismo entende que não há pre­sente sem passado. O passado é um agente vivo na plasma- ção do presente e, por meio do presente, condiciona o futu­ro. Reconhecida csla capacidade do passado de marcar sua presença na criação do ftiltiro, é fácil compreender por que o passado não morre fm/o, é fácil compreender por que êle consegue persistir como fõrçn ativa no presente.

A aquisição, ampliação e transmissão da autoconsciên- cia humana conseguidas nas grandes realizações artísticas não fazem senão manifestar êsse poder de persistência do passado. A durabilidade do conhecimento artístico decorre da interação dialética de passado, presente e futuro.

O poder da arte de sobreviver às circunstâncias que a vêem nascer não manifesta valores supra-históricos ou valo­res meta-históricos, como supõe Kosik. No máximo, poderia­mos falar em valores I rans-históricos, valores vinculados à continuidade existente no movimento da história, a respeito dessa capacidade de perdurar da arte.

O reconhecimento de uma continuidade no movimento da história e de valores ligados a ela não implica em aban­dono de uma perspectiva rigorosamente imanentista, não im­plica em abandono da perspectiva de um historicismo absolu­to. A propósito, queremos citar aqui uma passagem de um escrito do crítico marxista N. Sapegno, que observou que as obras de arte só perduram "quando passam a fazer parte da

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experiência que progride em uma contínua acumulação da realidade adquirida e sistematizada em uma tradição es­tável”.1

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Do hiologismo de Káutski, do sociologismo de Ple- khânov c das posições idealistas de Mehring até os nossos dias, um longo caminho foi percorrido pela estética marxis­ta. Muitos equívocos foram cometidos, mas algum progres­so se fêz, inegàvelmcntc: o quadro dos problemas com que se defronta hoje a estética marxista é mais diferenciado e mais amplo do que na época dos pioneiros.

As indicações de Marx e Engels foram trabalhadas, de­senvolvidas e organizadas de maneira sistemática. Nenhuma forma definitiva de sistematização, entretanto, conseguiu, ainda, se impor como expressão indiscutida do pensamento estético do marxismo.

Das duas estéticas marxistas sistemáticas propostas em nosso tempo — a de Lukács e a de Delia Volpe -— é a pri­meira que nos parece levar vantagem. A elaboração de uma estética marxista tanto quanto possível definitiva e com pleta , segundo cremos, deverá partir das conquistas do sistema lukacsiano.

Em nossa opinião, n estética de Lukács exige certos de­senvolvimentos, certas elurlflcnções. fí possível que o exten­so tratado que o filósofo húngaro ora está publicando," ao estender a sua visão sistemática dos problemas estéticos à pintura e, sobretudo, à arquitetura e t\ musica, leve a doutri­na lukacsiana a superar certa unllaterulidade decorrente da sua aplicação quase exclusiva às questões da literatura, es­pecialmente às questões da literatura épica c dramática.

1 N atalin o Sapegno, artigo “ P rosp cctivc d elia S toriografia T .ctterária” , em L ’Approdo Letterario, n.° de jan eiro de 1 9 5 8 .2 A p rim eira p arte da Aesthetik já foi p uhlicnda em a lem ão , em dois alentados volum es, ed ição L u ch tcrh an d , 1 9 6 3 . A ela, d ever-se-ão se­guir, aind a, ou tras duas p a rte s . E m castelh an o , o editor Ju a n G rijalbo

1 está publicando em q u a tro volum es a l . a p arte ap arecid a em alem ão .

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O Os esquemas de Lukács comportam certos riscos. O maior dêsses riscos é, sem dúvida, aquêle que mais insis­tentemente tem sido apontado pelos antilukacsianos: o de uma atitude .excessivamente conservadora em face da arte mo­derna.1

A caracterização da avant-garde por Lukács é menos precisa do que a sua caracterização do realismo: por vêzes, Lukács é levado a rejeitar um tanto sumàriamente, em nome da sua repulsa ao avant-gardismo, obras que, embora proble­máticas, sugerem possibilidades novas para o moderno de-

. senvolvimento do realismo. Um estudo rigoroso porém com- prcensivo das obras que Lukács inclui na avant-garde deve levar a distinções cujas conseqüências não podem ser subes­timadas. Alguns críticos burgueses, por exemplo, estabelece­ram a aproximação de Kafka, Proust c Joyce. Lukács, em certo período, mlmlliu a identidade básica das tendências consubstanciadas nas obras dêsses três autores. Somente agora é que êle começa a assinalar o diferente significado estético de tais escritores,8

Outra manifestação de t onscrrtulorismo potencial nas posições de Lukács pode ser encontrada, a nosso ver, na aná­lise de Kafka feita pelo critico há cêrca de dez anos, quando êle considerava a obra de Kafka fundamentalmente compro­metida com a decadência e propunha para o escritor (bur­guês) de nosso tempo o seguinte dilema: ou Franz Kafka ou Thomas Mann (quer dizer: ou uma literatura decadente “ar­tisticamente interessante" mas limitada e de uma só dimen­são, ou uma literatura realista crítica, legítima continuadora dos mestres do século passado).8

1 R esp ond end o a u m a ca rta que lh e en viam os, L u k ács ad m itiu n ão te r lido G ra m sci. É u m d escon h ecim en to sin to m ático . A assim ilação d a flexibilidade e cap acid ad e de ac lim a ta çã o de G ram sci ao rig o r teó ­rico de L u k ács ap resen ta p roblem as n um erosos e d elicad o s: m as nos p arece co n stitu ir o cam in h o m ais fecu n d o p a ra o desenvolvim en to da estética m arxista .2 C f . a en trevista co n ced id a a A n to n in L ich m e p u b licad a em L a Nouvelle Critique, n .° de jun ho-ju lh o de 1 9 6 4 .3 C f . L a Signification Prêsente du Realisme Critique, e d . G allim ard , 1 9 6 0 .

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Em um pequeno trabalho que escrevemos sôbre Kafka e que foi recentemente publicado,1 tivemos oportunidade de expor a nossa discordância da formulação lukacsiana. Opina­mos no sentido de «jue a estrutura do romance kafkiano se­ria um caso anômalo de incorporação bem sucedida de ele­mentos trágicos à estrutura épica. Embora reconheçamos se­rem em geral problemáticas as obras em que existe hibridez estrutural, achamos que as obras de Kafka constituiríam ex­ceções na história da literatura. E lembramos que o próprio Lukács reconheceu uma dessas exceções quando admitiu a qualidade do Iltjpcrion dc Iloehlcrlin, que é uma obra de estrutura sinudtâueamente épica e lírica.-

Nossa interpretação do fenômeno Kafka pode ser insu­ficiente e pode estar equivocada. A ela fomos levados pela convicção de que a interpretação proposta por Lukács em 1956 era inaceitável. E , ainda que admitamos a possibilida- m de de um engano em nossa crítica de Kafka, sentimo-nos hoje mais fortalecidos do que nunca em nossa convicção da ina- ceitabilidade da análise lukacsiana. O próprio Lukács se en­carregou de fortalecer a nossa convicção quando, recentemen­te, deixou de caracterizar Kafka como avant-gardista e "de­cadente” para compará-lo a Swift. Lukács afirma que a pe­culiaridade destes dois autores está em que êles parecem se colocar acima do hic et nunc em suas obras, porém, na reali­dade, esta impressão deriva apenas do fato delas (obras) não fixarem só as condições imediatas do momento e da socie­dade particular cm que surgem, mas abarcarem os proble­mas de um período inteiro da história da humanidade.3 Kafka, por conseguinte, aparece aqui, tal como Swift, na con­dição de autor realista.

r* Comparadas com as demais posições já formuladas em nome do marxismo, as posições dc Lukács em matéria de

1 Kafka, Leandro Konder, José Álvaro, Editor, 1966. .2 Goethe ct son Epoque, Lukács, cd. Nagcl.:l Revista The New Hungarian Quarterly, n.° 18, 1965, artigo “The Question of Romanticism” .

231

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estética apresentam inúmeras vantagens. Duas destas van­tagens podem ser encontradas na caracterização lukacsiana da especificidade do conhecimento artístico e nas exigências racionalistas da atitude de Lukács em face do nôvo e em face do abandono da totalização preconizado por algumas corren­tes da arte moderna.

No que se refere à especificidade do conhecimento ar­tístico, Lukács tem sido, ao que sabemos, o campeão da de­fesa da arte contra a assimilação do conhecimento artístico ao conhecimento sociológico ou à informação jornalística. “O que eu me pergunto sempre, diante de um livro — dizia Lukács a Antonin Liehm -— é o seguinte: o que está dito aqui não poderia ser dito com, digamos, as mesmas dimen­sões através da reportagem? Foram propostos e resolvidos, aqui, problemas situados num plano que é realmente o da arte e não o da sociologia?".1 Numa época cm que as con­cepções nconaturallslas ganham, entre nós, tanta penetração, parece-nos que de fato não são ociosas as preocupações de Lukács.

A arte não sc reduz, nn§ suas possibilidades de maior alcance, a um valor meramente documental. Se eu quiser me informar a respeito das condições políticas, sociais e econô­micas de uma determinada sociedade, as obras de arte que ela produziu poderão me prestar boa ajuda, mas não há dú­vida de que outros documentos (tais como escritos historio- gráficos, crônicas, dados estatísticos, etc.) me poderão ser de maior utilidade. O que a arte faz por mim de essencial é que ela me permite ver por dentro a experiência de uma condição histórica particular da humanidade e assimilar à minha consciência individual algo desta experiência.

No que serefere às exigências racionalistas da sua gno- seologia, Lukács nos parece ser, entre os teóricos marxistas da arte, aquêle que sustenta as posições mais eficazes no com­bate à confusão idealista e aos equívocos românticos.

Ainda que rejeitemos o conservadorismo potencial dos seus esquemas, não podemos deixar de reconhecer a legiti­midade de suas exigências em fase do nôvo. Lukács sabe muito bem —- e já o dizia em 1922 — que a atividade hu­mana implica em um “jorrar ininterrompido de novidade qua-

1 La Nouvelle Critique, n.° de junho-julho de 1964.232

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/

litativa” . Por isso, êle procura utilizar criticamente a sua apa­relhagem conceituai, com a preocupação de evitar que ela se esclerose e impeça a necessária abertura para a compreen­são do nôvo.

Entretanto, para a efetiva assimilação e reconhecimento do nôvo, é preciso que êle não seja fetichizado, é preciso que êle não seja encarado cm tênnos irracionalistas, é preciso que êle não seja aceito cego e abstratamente. Para que o nôvo enriqueça a nossa consciência, precisamos determinar-lhe os aspectos essenciais e rejeitar a psctidonovidade com que êle vem constantemente misturado.

As posições que renunciam às exigências de totalização no conhecimento artístico sacrificam no crítico que as adota a capacidade de avaliar o nôvo, isto é, de compreendê-lo em têrmos próprios; e dão margem a que o crítico coma gato por lebre, dão margem a que êle superestime um modismo passa­geiro e deixe de enxergar o nôvo significativo onde êle de fato está surgindo.

A perspectiva de Lukács estabelece que o reflexo da rea­lidade na arte é sempre um reflexo totalizante, é sempre um reflexo que simultâneamente aprofunda e amplia o conheci­mento do mundo humano. Para que cada problema humano apresentado em uma obra de criação artística seja mostrado em sua dimensão própria, é preciso que o complexo dc pro­blemas enfocado pela obra seja entendido como uma totali­dade orgânica, é preciso que as partes sejam avaliadas cm função do todo. Quando êste caráter totalizante do conhe­cimento artístico deixa de ser levado em conta c uma parte do real deixa de ser avaliada em função do todo, é impossí­vel evitar que a avaliação dessa parte passe a ser arbitrária.

Lukács adverte os artistas contra n pseudoprofundidade da especialização. A representação da realidade humana na arte só pode ser viva e profunda se unir a observação dos pormenores à visão do conjunto, rt amplitude de horizontes. As árvores <— já prevenia I legei —- não, nos devem impedir de enxergarmos a floresta. As correntes teóricas que se opõem à trilha racionalista de Lukács c abandonam a totali­zação só podem perceber o nôvo das árvores: nunca podem aferir-lhe a importância para a floresta.

233

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O Revendo o caminho percorrido, verificamos que o principal obstáculo com que se tem defrontado no plano teó­rico a estética marxista tem sido o do sociologism o. Ora o sociologism o tem resultado da aplicação mecânica dos prin­cípios'e métodos do materialismo histórico ao estudo dos fe­nômenos artísticos, por despreparo teórico, má formação fi­losófica ou deficiente sensibilidade do observador, ora tem resultado das pressões de uma política cultural imediatista e sectária, que procura reduzir os valores estético-gnoseoló- gicos à sociologia da arte para, em seguida, transformá-los em valores políticos diretos e imediatos (como fêz o stalinis- mo e como faz hoje em dia a política cultural praticada na China de Mao Tse Tung).

Em reação conlra o sociologismo, alguns pensadores marxistas tem sido levados, na defesa da autonomia relativa da arte e de seu caráter específico como nutoconhecimento humano, a perder de vista ns reais conexões existentes entre a criação artística e a sociedade ou a história.

Numa linha vinculada genèrienmeníe ao sociologismo, examinamos as idéias de Flckhflnnv, Bukhárin e Max Ra- phael, entre outros, Registramos, também, a influência da orientação sociologlsta nog trabalhos de um historiador da arte influenciado pelo marxismo: Arnold Hauser. E pode­riamos ter examinado, ainda, os trabalhos de um erudito mar­xista norte-americano, o ensaísta Sidney Finkelstein, cuja abordagem das questões da arte e da literatura revela níti­dos elementos sociologislus.1

1 A propósito, consulte-se o livro Existencialism and Alienation in American Literature, ed. International Puhiislicrs, New York, 1965. Em um trabalho anteriormente publicado pela mesma editora, em 1947, Finkelstein fazia a Marcei Proust a seguinte reslrição: embora A La Recherche du Temps Perdu contivesse um quadro pormenorizado da sociedade francesa do princípio do século, “acontecimentos como o caso Dreyfus tornam-se apenas impivssõcs acidentais, de importância não maior do que um chá ou uma noite na ópera” (Art and Socieíy, pág. 151). Com isso, Finkelstein não estava levando em conta a re­lação estrutural que o livro de Proust como como uma totalidade pode ter ou deve ter com a sociedade e a história: estava buscando no livro a exatidão documental e informativa que êle precisaria ter se fôsse

234

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fNa mesma linha — embora estèticamente menus BÍytih

ficativos — situamos os ideólogos comprometidos com n pn= lítica cultural stalinista, como o falecido André Zdânov. Apí* sar de têrmos procurado omitir os nomes de outros reprcscn* tantes dessa tendência, tanto no passado como no presente — por não lhes reconhecermos méritos teóricos — abrimos ex­ceção para dois autores que foram ràpidamente citados a tí­tulo exemplificativo, no capítulo 12: Joseph Revai e Maurice Mouillaud.

Na linha dos críticos que, dando combate ao sociologis- mo, foram levados a acolher cm suas formulações elementos idealistas c foram levados a perder de vista, em alguns mo­mentos, as reais conexões da arte com a sociedade e com a história, colocamos os nomes de Franz Mehring, Trótski, Eisenstein, Caudwell, Delia Volpe e Kosik. E mostramos, através do exame do caso de Mehring e de Trótski, que o anti-sociologismo, quando praticado em têrmos inconseqüen- tes, longe de superar sociologismo, fortalece-o.

A nosso ver, os “desvios” da linha anti-sociologista tem tido, historicamente, gravidade menor do que o sociologismo. No quadro geral dos esforços a serem desenvolvidos para a sistematização de uma legítima estética marxista, a luta cop- tra estes “desvios” da linha anti-Sociologista pode ser consi­derada um aspecto complementar da luta essencial contra o sociologismo.

Para levarmos esta luta avante, contamos com a base que nos é dada pelas formulações de Lukács e, ainda mais, contamos com a base que nos é proporcionada pelo próprio Marx: 1) a franca denúncia da inépcia do sociologismo, con­tida no texto que foi pôsüo como primeira epígrafe dêste livro; 2) a historicização das formas da percepção sensorial e da sensibilidade de que são capazes os órgãos dos sentidos, cuja atividade é apresentada por Marx como um aspecto da atividade geral de apropriação do mundo pelo homem e de humanização da vida. É o que se infere do texto colocado como segunda epígrafe.

não uma criação artística e sim um estudo historiográfico, um ensaio sociológico ou uma reportagem. Trata-se de um enfoque tipicamente sociologista. A obra de Proust apresenta aspectos problemáticos, mas êles não estão onde Finkelstein os enxergou.

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A segunda epígrafe, assim, aponta a direção historicis- ta e antintelectualista em que os marxistas deverão trabalhar para resolver o problema colocado pela primeira epígrafe.

O Em face das indicações de Marx e das formulações de Lukács, há duas atitudes que precisam ser evitadas. Pri­meiro, a atitude negativista, que leva o crítico a não dar im­portância alguma ao que já foi logrado no campo da estética

' marxista. Esta é, por exemplo, a atitude do crítico marxista tcheco Eduard Goldstucker. Quando o professor Goldstu- cker estêve no Brasil, cm 1966, êle declarou pessoalmente ao crítico Carlos Nelson Conlinho c ao autor destas linhas que, em matéria de estética, os marxistas precisavam partir do marco zero.

À atitude negallvistn, por outro hulo, se contrapõe fre- qüentemente outra atitude, também Inaceitável, que é a ati­tude simplista segundo a qual a estética marxista já alcan­çou a sua elaboração teórica madura e plenamente satisfató­ria, cabendo à crítica marxista apenas o trabalho de aplicar- lhe os princípios e métodos ao exame da arte contemporâ­nea, complementamlo-a exelusivamente em questões de pormenor.

No presente trabalho, procuramos evitar os equívocos ligados a qualquer dessas duas atitudes. Dispusemo-nos a analisar minuciosamente certas idéias que nos foram legadas pela experiência já concretizada de alguns estetas marxistas, reconhecendo, assim, implicitamente, a importância de seme­lhante experiência. Ao mesmo tempo, esforçamo-nos por marcar, com franqueza e ênfase, as deformações e os limites que julgamos localizar na perspectiva de cada um desses estetas.

Julgamos que o respeito aos críticos, teóricos e artistas cujas posições analisamos não só nos impedia de formular­mos as nossas reservas e discordâncias como até exigia de nós que as reservas e discordâncias fôssem formuladas com o maior rigor doutrinário. Não consideramos que uma poli-

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>tica cultural voltada para o favorecimento do diálogo c a ga­rantia da liberdade de criação e debate implique, para o.s crí­ticos de orientação marxista, numa necessária flexibilização d e princípios (coisa que nos parece ocorrer com Ernst Fis- cher, e sobretudo, cám Roger Garaudy). Pelo contrário: para que a discussão seja realmente fecunda, é preciso que os pon­tos de vista teóricos sejam desenvolvidos com rigor e coerên­cia doutrinária, embora expostos de maneira cortês e não dogmática.

Em alguns casos, é possível que o leitor nos tenha visto numa situação meio marota: embora combatendo certas for­mulações teóricas para determindas questões da estética mar­xista, nem sempre oferecemos alternativas definidas para tais formulações; embora apontando deficiências nas interpreta­ções alheias, não apresentamos elementos capazes de suprir tais deficiências. Em alguns casos, temos consciência de ter­mos proposto problemas cuja solução não chegamos sequer a encaminhar.

Mas podemos defender o nosso trabalho com as pala­vras que Brecht põe na bôea de um seu personagem nas H is­tórias d e Calendário: “Já observei que afastamos muita gente da nossa doutrina por termos para tudo uma resposta-feita. Não seria conveniente estabelecermos, em benefício da nossa propaganda, uma lista de tôdas as questões que nos parecem ainda não estar solucionadas?”

Rio, setem bro dc 1966.

237

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INDICH ONOMÁSTICO

A b u s c h , Alexandcr — 20K. A d a m o v , Arthur — 1 7 1.A d o r n o , Theodor Wiescgmnd ■—

227.A k h m a t o v a , A n a — 9 4 .A L i N A R r , Josefina Martinez —

165n.A l t h u s s e r , Louis — 1 5 , 1 8 1 n . ,200.A m b r o g i o , Ignazio — 200. A n d r a d e , A r y de — 40n. A n t o n i o n i , Michelangelo — 212. A r i c o , J. — 114n.A r i s t a r c o , tinido — 72n„ 74,

75n., 78n., capítulo 26. A r i s t ó f a n e s — 50.A r i s t ó t e l e s •— 1 5 1 .A r m e n g o l , J o s ó Kovirn — 6 n . Assis, S. Francisco de — 115, A u e r b a c h , Eric — 209, 210. A x e l o s , Kostas — 5 , 1 4 4 n .

B a d a l o n i , Nicola — 200.B a l z a c , Honoré de 2, 30, 31, 34,

77, 193, 203, 204.B a n f i , Antônio — 227.B a n c e s , J. Peres — 3 4 n .B a r b a r o , Umberto — 43, 200,

201, 201n„ 211.B e c k e t t , Samuel — 1 7 1 . B e e t h o v e n , Ludwig Van — 61. B e l a K u n — 1 4 5 .

B e n j a m i n , Walter — 119, c a p í ­t u lo 1 6 , 127, 128, 134, 136, 137, 148, 185, 196.

B e r g m a n , Ingmar — 81.B e r n s t e i n , Eduard — 33, 36, 48,

50.B e r g s o n , Henri — 7 7 .B i a n c h i - B a n d i n e l l i , Rannucchio

— 179, 180, 181.B i e l i n s k i — 4 0 .B l o c h , Ernst — 208, 227.B o e c h a t , Dalton — 63n.B o g d Á n o v — 62, 74.Bois, Jacqueline — 144n.B o l o , Ernest — 66n.B o l o g n a , S é r g i o — 1 6 4 n .B o n a p a r t e , N a p o l e ã o — 4 0 .B o s a n q u e t , B c r n m d — 6 , 6 n . , 1 4 .B o i i k t i i i , S u n d r o — 1 8 5 , 1 8 7 .H o t t i o e u - I , E m i l e — K 7 n .H r i í i t i r , B e r t o l t — 1 1 6 , 1 1 9 , 1 2 2 ,

1 2 9 n . , ca p itu lo 18 , 1 4 1 , 1 4 6 ,1 4 7 , I 4 7 n „ 1 4 8 , 1 4 9 , 1 9 5 , 1 9 6 , I 9 6 n . , 2 0 3 , 2 3 7 .

H u k i i a h i n , N i c o l a u — c a p í t u lo 8 , 7 1 , I 1 2 , 1 1 6 , 2 3 4 .

Binou, M i c h e l .— lOn.

Camiis, Albert — 171.C ândido, Ànlônio — 102.C a s e s , ( lesare — 3n., 86, 200, ca­

pítulo 26, 213, 215, 215n„ 223. C a u d w e l l , Christopher — 98, ca­

pítulo 14, 109, 235.

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C e r v a n t e s , Miguel de — 30. C e t r â n g e i . o , I-n/io — 49n. C h a p l i n , Charles — 72.C h i a r i n i , Luigi —• 195, 213. C h i a r i n i , Paolo — 132, 133,

133n., 136n., 138n., capítulo 24. C h o l c k h o v , Mikhail — 97, 161. C h r i s T i e , Agatha — 77. C h u r c h i l l , Winston — 111. C l a i r e v o y e , J. — 142n., 164n. C o d i n o , Fausto — 107n. C o l l e t t i , Lúcio — 200. C o r n e i l i . f . , Pierre — 161,C o s t a , José Fonseca — 74n.C o s t a L i m a , Luiz •— 5 5 . C o u t i n i i o , Carlos Nelson —

112n., 166n., 236.C r o c e , Benedetto — 3n., 4, 112,

113, 114, 130, 193.

D ’ A n n u n z i o , G a b r i e l — 1 2 3 , 1 9 3 . D a r w i n , Charles — 3 7 . D ’ A u b i g n a c , Hedelin — 196n.D a V i n c i , Leonardo — 122. D e l l a V o l p e , Galvano — 12,

12n., 15, 116, 192, 197, capí­tulo 25, 208, 229, 235.

D e s c a r t e s , René — 208. D e u t s c i i e r , Isaac — 58, 58n., 66n. D i l t h e y , Wilhclm — 156. D o b r o l i u b o v — 40.D o n Q u i x o t e — 225.Dos P a s s o s , John — 9, 146. D o s t o i ú v s k i , Fiodor Mikhailóvitch

— 61, 161.D r e i s e r , Theodor — 5 6 .D r e y f u s — 2 3 4 n .D u m e s n i l , Michel — 6 1 n .

E h r e n b u r g , I l y a — 6 2 , 6 3 n . , 1 6 1 . E i n a u d i — 1 1 1 .E i n s t e i n , Albert — 5 6 . E i s e n s t e i n , Sérguei Mikhailóvitch

— ca p ítu lo 9 , 7 9 , 1 0 6 , 2 3 5 .E l G r e c o — 1 7 9 .E l i o t , T h o m a s S . — 1 9 6 , 2 0 3 .

E n g e l s , Friedrich — 2 , 3 , 4, 1 8 , ca p ítu lo 2 , 3 3 , 3 7 , 6 0 , 8 7 , 8 8 , 8 8 n . , 9 2 , 1 0 0 , 1 0 0 n „ 1 4 5 , 1 5 4 , 2 0 4 , 2 2 9 .

E s q u i l o — 3 0 , 3 2 , 1 0 1 , 1 4 6 . E s s ê n i n , Sérguei — 6 2 .E s s l i n , Martin — 1 2 9 n . E u r í p e d e s — 3 2 , 1 0 1 , 1 9 6 , 1 9 6 n .

F a u c c i , Dario — 9 4 n .F a u s t o — 2 2 5 .

F i c i i t e , Johann Gottlieb — 142. F i n k e l s t i í i n , Sidney — 227, 234,

234n., 235n.FioRr, Giuseppe — llOn.F i s c h e r , Ernst — 175, 176, 177,

213, ca p ítu lo 2 7 , 237.F i . a u b e r t , Gusfnvc — 77, 203. b i ( i T m a n , Joe — 7Kn.I 'Kl II KIKA I II --- 51.F r e u d , Sigmund — 56, 78, 106. F r é v i l l e , Jean — 60.F r i o u x , C l a u d e — 8 6 .

G a n d i l l a c , M a u r i c e d e — 1 2 2 n . , 1 5 3 n .

G a r a u d y , Rogcr — capítulo 22,1 9 1 , 2 3 7 .

G a u g u i n — 1 7 9 .G i b e l i n , J. — 18n.G i o c o n d a — 1 2 2 .G i s s e l b r e c h t , André — 1 9 1 . G o e t i i e , Wolfgang — 5 0 , 5 1 , 1 5 5 ,

1 9 2 , 2 1 7 , 2 1 8 , 2 3 l n .G o l d m a n n , L u c i e n — 1 0 n . , 1 4 2 ,

1 4 3 , 1 4 3 n . , 1 5 5 n . , capítulo 21, 1 9 2 , 2 0 8 .

G o l d s t u c k e r , Eduard — 236. Górki, Máximo — 61, 62, 71, 72,

capítulo 11, 93, 220.G r a m s c i , A n t o n i o — 3 , 3 n . , 4 , 9 ,

3 1 , 4 1 , 4 3 , 6 8 , 6 9 , capítulo 15, 1 3 0 , 2 2 6 , 2 3 O n .

G r a m s c i , Júlia (Iulca) — 1 1 5 n . G r i f f i t h , David Wark — 7 2 . G u e r r a , E . Carrera — 8 0 n . G u i n s b u r g , J. — 1 4 9 n .

240

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G u l l a r , Ferreira — 220n. G u t e r m a n , Norbert — 158.

H a g e r , Kurt — 208. (H a m l e t — 225.H a r k n e s s , Margaret — 2, 30, 204.H a u s e r , Arnold — 179, capítulo

23, 234.H e b b e l — 5 1 .H e g e l , Georg Wilhelm Fricdrich

— capítulo 1, 25, 26, 34, 5(1, 56, 60, 81, 94, 142, 149, 154, 188, 189, 191, 197, 199, 200, 206,233.

H e i d e g g e r , Martin — 1 5 6 .H e r z e n , Alexander — 60.H i t l e r , A d o l f — 1 2 4 .H o f f m a n n , Ernst Theodor Ama­

deus — 62.H õ l d e r l i n , Friedrich — 231.H o m e r o — 32, 36, 80, 101, 146.H y p p o l i t e , Jean — 17n., 18, 22n.,

174.

I g l e s i a s , Pablo — 34n. I m a z , E . — 210n. I o n e s c o , Eugène — 171.

J o y c e , James — 76, 77, 146, 196, 230.

K a f k a , Franz — 122, 171, 174, 175, 212, 222, 230, 231, 231n.

K a n t , Emanuel — 49, 50, 142, 155, 164n.

K á u t s k i , Karl — 2 , capítulo 3, 3 9 , 48, 50, 154, 2 2 9 .

K á u t s k i , Minna — 30, 154. K i e r k e g a a r d , Soren — 156. K i r i l o v — 63, 80.K l e e , Paul — 122.K o n d e r , Giseh Vianna — 153n. K o n d e r , Leandro — 5n., 23 ln. K o s i k , Karel — 187, capítulo 28,

227, 228, 230, 235.K o t t , Jan — 12.K r ú p s k a i a — 9 2 .

• 1

K u b a — 2 0 8 .K u r e l l a , Alfred — 208.L a b r i o l a , Antonio — 4, 205. L a f a r g u e , Paul — 145, 227. L a m p e d u s a , Giuseppe Tomasi de

— 147.I . a n g e , Oscar — 173, 174.I .AssAi.LE, Ferdinand — 3, 30, 50,

51.I . e f i í b v r e , Henri — 11, capítulo

20, 163, 191.I . É n i n , Vladimir Ilitch — 3 , 3 4 ,

4 0 , 4 1 , 4 7 , 5 3 , 5 4 , 5 8 , capítulo 7 , 6 5 , 6 6 , 7 2 , 7 3 , 8 5 , 8 6 , 9 2 , 9 3 , 9 7 , 1 4 5 , 1 5 1 , 1 5 1 n . , 1 5 2 n . , 1 5 8 .

L e s s i n g , Gotthold Efraim — 3 6 , 4 9 , 4 9 n . , 1 4 9 , 1 4 9 n . , 1 9 5 , 1 9 6 , 1 9 6 n .

L e w i s , Sinclair — 114.L i e h m , Antonin — 156 n., 230n„

232.L i f s c h i t z , Mikhail — 41, 97, 99,

100, 145, 146.Luiz X IV — 40.L u k á c s , Georg — 3, 9, 10, 20, 51,

52, 95, 96, 97, 99, 100, 107, 116, 122, 130, 132, 132n„ ca­pítulo 19, 157, 158, 160, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 170, 170n., 171, 191, 192, 192n., 193, 195, 196, 197, 199, 203, 205n„ 207, 211, 212, 212n„ 215, 216, 223, 225, 229, 230, 230n., 231, 231n., 232, 233, 235, 236.

L u n a t c h á r s k i , Anatol — 60, 66, 73, 86.

L u p o r i n i , Cesare — 200, 204.

M a c i i e r e y , Pierre — 18 In.M a i a c ó v s k i , Vladimir — 60, 62,

71, 72, capítulo 10, 132, 139, 203.

M a n n , Thomas — 196, 212, 219, 230.

M ao-Tse-Tüng — 234.M a r a g n o , Elsa dei Rio — 180n.M a r i á t e g u i , Juan Carlos — 82.Marx, Karl — 2, 3, 4, 5n., 23,

capítulo 2, 33, 36, 37, 51n., 60, 78, 88, 88n., 92, 99, 100, 101,

2-11

Page 188: Leandro Konder- Os marxistas e a arte (trechos)

101n., 102n„ 104, 110, 113, 133, 145, 159, 160, 161, 161n„ 167, 188, 189, 199n., 200, 204, 204n„ 224, 226, 229, 235, 236.

M a u r i a c , François — 96.M é d i c i s (De Florença) — 185.M e h r i n g , Franz — 2, 3, 40, ca­

pítulo 5, 53, 54, 57, 58, 80, 107, 145, 229, 235.

M e l i á , Juan — 34n.M e y e r , Hanns 208.M e y e r h o l d , Vsiévolod — 72, 106,

127, 277.M i c h e l â n g e l o Buonarroti — 179,

186.M i l a n o , Pablo — 116.M iller , Henry — 212.M i n a r d i , Victorio — 1 9 5 n .M o n d o l f o , Augusta — 18n.M o n d o l f o , Rodolfo — 18n.M o n t i n a r i , Mazzimo — I07n.

M o r á v i a , Alberto — 193.M o r h a n g e , Pierre — 158.M o u i l l a u d , Maurice — 96, 235.M o u s s i n a c , Leon — 76, 76n.M o z a r t , Wolfgang Amadeus —

69.M u s i l , Robert — 212.M u s s o l í n i , Benito — 110, 111,

124.

Nietzsciie, Friedrich Wilhelm — 1 5 6 .

P a c i n i , Gianlorenzo — 222. P a q u e t , Alfons — 129.P a s c a l , Blaise — 164, 170, 208. P a s o l i n i , Pier Paolo — 193. P a v e s e , Cesare — 227.P i c a s s o , Pablo — 100n., 101n .,

102, 102n„ 174, 175, 176, 178, 179, 195, 196.

Picoo, Emilio — 20n., 51n. P i é c h k o v , Alexis Maximovitch —

ver G órki.P i r a n d e l l o , Luigi — 114, 115,

193.P i s a r i e v — 4 0 .

P i s c a t o r , Erwin — 19, 125, ca­pítulo 17, 131, 134.

P l a t ã o — 6 , 7 7 , 1 5 1 .P l e k h â n o v , George — capítulo 4,

47, 48, 93, 102, 107, 145, 229,234.

P o l i t z e r , Georges — 158.P r e s t i p i n o , Giuseppe — 192, 205,

205n.P r é v o s t , Claude — 191.P r o u s t , Marcei — 122, 230,

234n., 235n.Pudóvkin, Vsiévolod — 73.P u s u k i n — 4 4 , 7 9 .

R a c i n e , Jean — 161, 164, 170, 196.

R a f a f . i . S a n z i o — 6 3 .R a g g i i i a n t i , Cario — 2 1 2 . R a p i i a i í i , Max — 98, capítulo 13,

1 0 3 , 1 0 7 , 2 3 4 .R e v a i , loscph — 95, 96, 160, 235. R i l k e , Rainer Maria — 122. R o b b e - G r i l l e t , Alain — 171. R o c e s , Wenceslao — 51n., 88n.,

156n.R o s a d o d e L a E s p a d a , Dicgo —

34n.R o s s i , Mário — 200.R o u s s e a u , Jean-Jacques — 21,

199n.R u b e l , Maximilien — lOln.

S a i l l e y , Robert — 149n.S a i n t J o h n P e r s e — 1 7 4 .S a j o n , R. — lOOn.S a l i n a , Príncipe d e — 1 4 8 . S a l i n a r i , Cario — capítulo 24. S a m s a , Gregor — 2 2 5 .S a p e g n o , Natalino — 228, 229n. S a r r a u t e , Nathalie — 171. S a r t r e , Jean-Paul — 96, 159, 171,

174, 191, 216.S c h a f f , Adam — 2 2 7 .

S c h e l l i n g , Friedrich Wilhelm Jo- seph — 156.

S c h i l l e r , Johann Friedrich von — 30.

S c h m i d t , Conrad — 18.

242

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S c h o p e n h a u e r , Arthur — 156. S c h u m a c h e r , Ernst — 138. S e g h e r s , Ana — 9, 146.S e t o n , Marie — 77, 77n.S e u r a t — 102. |S h a k e s p e a r e , William — 30. S ó f o c l e s — 32, 80, 101, 146,

161.S o r e l , Georges — 114.S p i t z e r , Leo — 209.S t a i g e r , Emil — 209.S t a l i n , Joseph Vissarianovitch —

53, 54, 76, 77, 92, 93, 94. S t e n d h a l (Henri Beyle) — 219. S t r a v i n s k i , Igor — 196. S t r u n s k y , Rose — 54n.S w i f t , J o n a t a s — 2 3 1 .

T a i n e , Etyppolite — 41. T c h e r k i s s , L. A. — 93, 93n. T c h e r n i t c h é v s k i — 40.T h o m s o n , George — 227. T o l s t o i , Leon — 61, 115, 147,

161, 192, 203.T r i o l e t , Elsa — 83.T r ó t s k i , Lev — 52, capitulo 6,

65, 66, 92, 235.

U l b r i c h t , Walter — 208.

V a n G o g h , Vincent — 179. V a s q u e z , Adolfo Sanchez — 26. V i rto v , Dziga — 7 4 .V II-I.ANUEVA, I. — 210n.V i s c o n t i , Lucchino — 212. V i r r o R i N i , Elio — 9 6 .V o i t a i r e , François Marie Arouet

— 36.V o r ô n s k i — 86, 93.

W a h l , Jean — 191. W e i t l i n g , Wilhelm — 29. W i l l e t , John — 147n. W i n o g r a d , Marcos — 159n. W o o l f , Virgínia — 211.

X a v i e r , L í v i o — 1 8 n .

Z a v a t t t i n i , Cesare — 213. Z d â n o v , André — capítulo 12,

235.Zola, Emile — 30, 77, 153, 203.

243

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