introd ao pentateuco

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1 PENTATEUCO Sumário I. INTRODUÇÃO GERAL AO PENTATEUCO .................................................................................. 2 1. A FORMAÇÃO DO PENTATEUCO .............................................................................................. 2 2. A “NOVA” HIPÓTESE DOCUMENTÁRIA DO PENTATEUCO ...................................................... 3 3. AS CARACTERISTICAS DO PENTATEUCO ............................................................................... 3 4. AS TRADIÇÕES DO PENTATEUCO ............................................................................................ 4 4.1 Tradição Javista ...................................................................................................................... 5 4.2 Tradição Eloista....................................................................................................................... 5 4.3 TRADIÇÃO DEUTERONOMISTA ........................................................................................... 6 a) O Código Deuteronômio ........................................................................................................ 7 b) O Livro da Aliança ................................................................................................................. 7 c) As grande linhas teológicas do Deuteronômio ....................................................................... 9 4.4 A Tradição Sacerdotal ............................................................................................................. 9 a) Características da Tradição Sacerdotal ............................................................................... 10 b) A Teologia da Tradição Sacerdotal ...................................................................................... 10 c) A Lei de Santidade .............................................................................................................. 11 d) As Leis suplementares ........................................................................................................ 12 4.5 Síntese das Tradições do Pentateuco ................................................................................... 12 5. A MENSAGEM DO PENTATEUCO ............................................................................................ 13

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PENTATEUCO

Sumário I. INTRODUÇÃO GERAL AO PENTATEUCO .................................................................................. 2

1. A FORMAÇÃO DO PENTATEUCO .............................................................................................. 2

2. A “NOVA” HIPÓTESE DOCUMENTÁRIA DO PENTATEUCO ...................................................... 3

3. AS CARACTERISTICAS DO PENTATEUCO ............................................................................... 3

4. AS TRADIÇÕES DO PENTATEUCO ............................................................................................ 4

4.1 Tradição Javista ...................................................................................................................... 5

4.2 Tradição Eloista....................................................................................................................... 5

4.3 TRADIÇÃO DEUTERONOMISTA ........................................................................................... 6

a) O Código Deuteronômio ........................................................................................................ 7

b) O Livro da Aliança ................................................................................................................. 7

c) As grande linhas teológicas do Deuteronômio ....................................................................... 9

4.4 A Tradição Sacerdotal ............................................................................................................. 9

a) Características da Tradição Sacerdotal ............................................................................... 10

b) A Teologia da Tradição Sacerdotal ...................................................................................... 10

c) A Lei de Santidade .............................................................................................................. 11

d) As Leis suplementares ........................................................................................................ 12

4.5 Síntese das Tradições do Pentateuco ................................................................................... 12

5. A MENSAGEM DO PENTATEUCO ............................................................................................ 13

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I. INTRODUÇÃO GERAL AO PENTATEUCO A tradição judaica sempre viu em Moisés o autor do Pentateuco. Esta tradição levou naturalmente à designação do Pentateuco como “os cinco livros de Moisés”. Conseqüentemente, os rabinos fizeram de Moisés, o autor não só da Torá escrita (Lei), mas também da “Torá oral“. O Antigo Testamento só atribui a Moisés o “código da aliança” (Ex 24,4), o “decálogo cultual” (Ex 34,27), o grande discurso histórico e legislativo do Deuteronômio (Dt 1,1.5; 4,45; 31,9.24; etc.), assim como algumas perícopes menores (Ex 17,14; Nm 33,2; Dt 31,30; etc.). Portanto, antes de tudo, a Lei estava associada à pessoa de Moisés (também Ml 3,22; Esd 3,2; 7,6; 2Cr 25,4; 35,12; etc.), mas só a partir do período pós-bíblico o Pentateuco como um todo lhe foi atribuído, concepção que predominou até o século XVIII.

Contudo, muitas contradições podem ser observadas no texto e revelam sua complexa origem, proveniente de fontes diversas: quantos pares de animais de cada espécie Noé levou em sua arca? Um (Gn 7,15) ou sete (7,2)? Quantos dias durou o dilúvio? Quarenta (Gn 8,6) ou cento e cinqüenta (8,3)? Por que Jacó foi para a Mesopotânia? Para escapar da vingança de Esaú (Gn 27,41-45) ou para encontrar uma mulher de sua própria raça (27,46-28,5)? José foi levado ao Egito por uma caravana de ismaelitas (Gn 37,27) ou de madianitas (37,28)? O Pentateuco compreende também dois relatos da criação (Gn 1,1-2,4a e 2,4b-25), dois relatos da aliança com Abraão (Gn 15 e 17), dois relatos da expulsão de Agar (Gn 16 e 21,9-21), dois relatos da vocação de Moisés (Ex 3,1-4,17 e 6,2-7,7), duas menções do Decálogo (Ex 20,2-17 e Dt 5,6-21), três relatos de Sara entregue ao harém de um rei estrangeiro (Gn 12, 10-20 e 20 e 26,6-14), etc.

Entretanto, não foram somente esses anacronismos que despertaram a desconfiança a respeito da atribuição tradicional do Pentateuco a Moisés. Foram, sem dúvida, as observações que dependem da lógica literária que levaram os exegetas a levantar a questão das “fontes”. Uma maneira bastante óbvia de tentar resolver o problema das “contradições, dos dobletes” (mais de uma versão para o mesmo fato) e das diferenças de estilo foi atribuir as passagens em conflito a fontes, documentos ou camadas redacionais diferentes. No próximo número aprofundaremos mais esta questão.

1. A FORMAÇÃO DO PENTATEUCO No Pentateuco, é gritante o recurso variável dos narradores a “Javé” e a “Eloim” para falar de Deus. O aparecimento de dois nomes diferentes dados a Deus levou H. B. Witter (1711) a sugerir duas fontes distintas, transmitidas a Moisés pela tradição oral. Todavia, o critério dos dois nomes divinos somente foi plenamente explorado por Astruc e por Eichhorn, por volta de 1760. Eles propuseram que deve-se distinguir dois documentos, um dos quais emprega o nome divino de “Iahweh” (“Documento Javista”) e o outro, o nome de “Eloim” (“Documento Eloísta”). Tais documentos seriam oriundos de fontes preexistentes, compilados por Moisés.

A partir daí, muitas questões se impuseram: “como, precisamente, teria sido feita essa transmissão, sob que forma devem ser imaginados os documentos transmitidos, e o que continham precisamente esses documentos, e como foram reunidos no conjunto chamado Pentateuco?” (De Pury/T. Römer). Para tentar responder a essas questões e explicar a presença de fragmentos literários de proveniências diversas num único relato, nos séculos seguintes, surgiram três hipóteses: a “documentária”, a dos “fragmentos” e a “dos complementos”.

A teoria documentária afirmava haver na base do Pentateuco duas, três e até quatro tramas narrativas contínuas (“fontes” ou “documentos”) que, redigidas em épocas diferentes e em meios diferentes, teriam sido justapostas umas às outras por sucessivos redatores. A questão foi colocada, mas a solução proposta quanto à formação do Pentateuco continuou ainda muito vaga. Posteriormente, essa teoria será reformulada por Graf e Wellhausen, como se verá no próximo artigo.

A teoria dos “fragmentos” asseverava que originalmente existia um número indeterminado de relatos esparsos e de textos isolados (sem continuidade narrativa). Estes teriam sido reunidos ulteriormente por um ou vários redatores-compiladores. Portanto, o Pentateuco não seria fruto de uma compilação de “documentos”, mas de fragmentos de fontes escritas. “Essa teoria expressa um dos dois extremos entre os quais se move a crítica do Pentateuco; um dos extremos é a unidade óbvia de suas fontes, ao passo que o outro é a igualmente óbvia diversidade, que torna a unidade imperfeita” (J. L. McKenzie).

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3 A teoria dos complementos admite inicialmente a existência de uma única trama narrativa contínua (Eloísta). Ao longo dos séculos, teria recebido inúmeros acréscimos e complementos, até chegar ao Pentateuco atual. No próximo artigo, veremos a continuação dos estudos do Pentateuco ao longo da História até os nossos dias.

2. A “NOVA” HIPÓTESE DOCUMENTÁRIA DO PENTATEUCO Já vimos que, com o início da época Moderna (1700), o problema literário do Antigo Testamento se impôs a propósito do Pentateuco. A dificuldade se originou dos dados espaciais e cronológicos não conformes com os lugares e o tempo da vida de Moisés; descobriu-se que a narração não é dele, mas sobre ele. Constataram-se “duplicatas” e também várias redações de um mesmo texto da Lei; falta de unidade no desenrolar da exposição, interrupções, cortes, desigualdades e contradições dentro de um mesmo contexto. Tudo isso levou à conclusão de que muitos autores trabalharam na composição do Pentateuco. Esta conclusão foi também confirmada pela constatação de diversidades lingüísticas, léxicas e de estrutura, muito evidentes e claras, principalmente nos casos dos “dobletes”, ou seja, aqueles episódios ou narrativas com mais de uma versão.

Apoiados nessas observações, os exegetas procuraram individualizar as diversas camadas literárias mais ou menos delineadas no Pentateuco. No artigo anterior, abordamos as hipóteses “Documentária”, “Fragmentária” e “Complementária”, que foram os primeiros passos dados pela pesquisa científica visando a uma compreensão mais acurada da origem dos livros tradicionalmente atribuídos a Moisés.

A Julio Wellhausen (1844-1918) coube o mérito de reelaborar a antiga hipótese Documentária. Essa nova hipótese vigorou inquestionável até há pouco tempo. O Pentateuco, nessa nova sistematização, é concebido como uma obra redacional, para cuja formação concorrem os seguintes extratos literários: O “Javista” (J), textos compostos na época da Monarquia (950 a.C.); o “Eloísta” (E), textos posteriores ao ano 750 a.C.; o “Deuteronomista” (D), textos dos anos 600 a.C. aproximadamente; e o Sacerdotal (P), escritos no exílio babilônico, por volta do ano 500 a.C. As datas indicam a época aproximada de sua composição. Oportunamente, trataremos as principais características desses “documentos”.

Julio Wellhausen compreendeu que o sistema das fontes se coadunava perfeitamente com uma nova concepção da história de Israel e com a evolução da religião de Israel. O que mais lhe interessava era a evolução histórica das instituições cultuais, como se refletia nas diversas fontes. Assim, com sua crítica literária, Wellhausen procurou abranger todo o material do Pentateuco, “classificando-o segundo o tempo e procedência, reestruturando-o nas suas unidades originalmente autônomas. O seu trabalho visa a descobrir e a destacar as fontes, a reconhecer e a separar as elaborações, a classificar os extratos pela sua antiguidade e sucessão. Ela visa ainda a compreender o modo e os motivos de seu entrelaçamento com a obra literária em questão; procura, finalmente, determinar, no decurso da história cultual do Antigo Testamento, o lugar certo de cada trecho e das suas colocações” (J.Schreiner).

Certamente, tal intento não pode ser realizado em todos os detalhes de um texto, dada a existência de perícopes que resistem à atribuição a uma fonte determinada, pois os livros bíblicos não são simples coletâneas de fontes literárias, mas foram formados na corrente viva da Sagrada Tradição.

3. AS CARACTERISTICAS DO PENTATEUCO Já vimos que os escritos de Julius Wellhausen contribuíram sobremaneira para difundir a “nova teoria documentária”, tanto junto ao público, como junto aos estudiosos, a ponto de ser identificada com ele. Sabemos, entretanto, que tal teoria fora recebida substancialmente completa por outros exegetas que o precederam (Wette, Ilgen, Vater, Hupfeld, Graf, Künen…). Contudo, J. Wellhausen a consolidou pelo argumento e a discussão. Sua principal contribuição foi a união da teoria dos “documentos” com a da “evolução religiosa e cultual de Israel”.

Porém, a impossibilidade de distinguir entre a “hipótese literária” e a “hipótese histórica” resultou na rejeição de toda a teoria, considerando-a como ofensiva à religião divinamente revelada. A princípio, muitos estudiosos católicos reagiram positivamente em relação à teoria de Wellhausen,

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4 mas, na atmosfera do Modernismo do começo do século XX, foi difícil julgar a teoria objetivamente, e a Pontifícia Comissão Bíblica, em 1906, rejeitou a aplicação tanto das teorias literárias quanto da evolução ao estudo da Bíblia. Isso interrompeu os estudos dos exegetas católicos até a publicação da encíclica Divino Afflante Spiritu, em 1943. Desde então, tem sido possível fazer as devidas distinções entre os problemas literários, os problemas históricos e a evolução cultural de Israel.

A “hipótese documentária” de Wellhausen dominou a crítica bíblica depois de 1900. A maioria das obras produzidas depois desta data dedicou-se a análises posteriores das fontes e ao isolamento de outras fontes especiais, além dos “quatro documentos” de Wellhausen. A análise das fontes em extratos suplementares se desenvolveu a ponto de uma reedição da “teoria dos fragmentos” ser novamente sugerida. Mas, tal teoria foi elaborada justamente no início das grandes descobertas da literatura e da cultura do antigo Oriente Médio, que lançaram nova luz sobre a história e a cultura de Israel e ofereceram paralelos primitivos a muitos textos bíblicos. Essas descobertas mostram que a teoria de Wellhausen era insustentável e provaram ser impossível uma construção da História de Israel sem referência ao material do antigo Oriente Médio. De fato, a teoria literária de Wellhausen fora concebida de maneira teórica demais; os “documentos” eram descritos à maneira de documentos de uma cultura diferente e posterior. Por isso, muitos exegetas já não falam mais de “documentos” do Pentateuco. Alguns falam em “escolas”, outros preferem falar em “tradições”, termo que parece mais apropriado.

Essas considerações têm levado os estudiosos a pensar que a complexidade das origens literárias do Pentateuco é tão grande, que jamais poderá ser inteiramente solucionada, e que “a investigação estará mais segura de seus resultados, se prosseguir por linhas mais gerais; a identificação de cada frase e mesmo de cada palavra, como foi feita no passado, é insegura. Os estudos recentes enfatizam a forma literária e a tradição oral” (J. L. Mckenzie).

4. AS TRADIÇÕES DO PENTATEUCO Quanto à formação do Pentateuco, vimos que muitos exegetas modernos – críticos de J. Wellhausen – já não falam mais de “Documentos”, mas de “Tradições”. Todavia, ao longo da história, mesmo depois de sua composição literária, essas tradições receberam numerosas modificações. Assim sendo, deve-se considerar alguns dos “escritores da Bíblia” mais como autores do que meros compiladores dessas tradições. Esses autores deixaram traços de caráter complexo das tradições pré-literárias em sua obra. Por isso, alguns estudiosos falam em “escolas”, mais do que “documentos” e “escritores”; outros, como Roland de Vaux, preferem chamá-las simplesmente de “tradições”, sem afirmar sua origem oral ou literária. Embora não haja consenso entre os estudiosos sobre os “documentos” (a hipótese de Wellhausen é cada vez mais questionada) ou as “tradições” que deram origem ao Pentateuco, faz-se mister um aprofundamento de suas características, uma vez que a terminologia empregada por Wellhausen ainda vigora.

Assim, o Pentateuco seria a compilação de quatro “tradições” ou “documentos” – a tradição

“Javista” (J), a “Eloísta” (E), a “Deuteronomista” (D) e a “Sacerdotal” (P) – diferentes quanto à idade

e ao ambiente de origem, mas todas elas muito posteriores a Moisés.

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4.1 Tradição Javista

A mais antiga seria a “tradição Javista” (J) – segundo Wellhausen-Graf, “Documento Javista” – assim denominada por designar a Deus, desde o relato da criação, com o nome “Javé”. Sabemos que, após a morte de Salomão, filho de Davi, a “Terra Santa” foi dividida em dois reinos distintos e rivais entre si: Israel e Judá. O “Javista” teria sido redigido em Judá, no reino do Sul, por volta do século IX. Entretanto, críticos modernos estão inclinados a datá-la no reinado de Salomão ou mesmo de Davi, portanto, antes do cisma Norte-Sul.

Segundo os estudiosos, a tradição Javista contém a história do Paraíso e do pecado original; o relato sobre os “filhos de Deus e as filhas dos homens”; o dilúvio, Noé e a vinha; parte da lista das nações; a torre de Babel; a vocação de Abraão e sua viagem a Hebron; a promessa da terra e de uma numerosa posteridade; Agar e Ismael; os hóspedes de Abraão; a destruição de Sodoma e Gomorra; Ló e suas filhas; o nascimento de Isaac; a corte de Rebeca; a história de Isaac; Esaú e Jacó; o nascimento dos filhos de Jacó; Jacó e Labão; Jacó em Siquém; a genealogia edomita; José e seus irmãos; José no Egito; a bênção de Jacó; a opressão de Israel no Egito; o nascimento e a vocação de Moisés; provavelmente, sete das dez pragas; a passagem pelo mar; a viagem do mar ao Sinai; as codornizes e o maná; uma breve notícia da teofania do Sinai; o bezerro de ouro; os mandamentos (Ex 34); a partida do Sinai; o envio dos exploradores à terra de Canaã; a rebelião de Datã e Abiram; a viagem de Cades a Moab; os oráculos de Balaão; a adoração de Baal Peor; a luta entre as tribos orientais e ocidentais; a morte de Moisés.

A “tradição Javista” foi chamada “a épica nacional israelita e é a expressão da consciência nacional de Israel que se originou das vitórias de Davi e da prosperidade que seu reino iniciou” (J. L. McKenzie). O Javista é considerado um dos maiores narradores do Antigo Testamento. Tanto que suas histórias figuram entre as mais conhecidas e apreciadas de toda a Bíblia.

4.2 Tradição Eloista

Nos últimos cem anos, a história da exegese muitas vezes pôs em dúvida a existência da “tradição Eloísta”. Ora, a presença de duplicações que não pertencem nem à tradição Javista nem às outras tradições (Deuteronomista e Sacerdodal), foi o argumento utilizado para se propor sua existência, mas nem todos os pesquisadores concordam que isso signifique a existência de outra tradição. De fato, torna-se difícil estabelecer a prova decisiva de sua existência. Entretanto, não se deve insistir demais nas dificuldades, porque a leitura atenta dos textos ditos eloístas permite chegar a uma conclusão razoável. Atrás dos trechos que possuímos, delineia-se uma obra bem organizada, que transmitiu uma interpretação da tradição antiga de Israel.

Sua composição se deu no Reino do Norte. Sabemos que, com a morte de Davi, em 933, o reino unido de Davi e Salomão se divide em Reino do Sul (Judá) e Reino do Norte (Israel). O Reino de Israel foi marcado pela instabilidade: as rivalidades entre as tribos e a importância do exército e de seus chefes não permitiram uma estabilidade dinástica semelhante à do Reino de Judá. As freqüentes mudanças de dinastia não impediram, contudo, fases de grande prosperidade econômica. O Reino de Israel estava em situação mais vantajosa do que o de Judá. Seu território era mais vasto e mais rico. Suas forças militares eram inegavelmente superiores. No campo religioso, conservam-se as grandes tradições do passado. Porém, desde o começo do reinado de Jeroboão I (933-911), Israel se vê obrigado a conviver com os cananeus, profundamente apegados aos seus costumes e às suas idéias. Pela sua posição geográfica, Israel estava exposto às influências externas e sofreu, ao longo de toda a sua história, pressões muito fortes de seus vizinhos do norte: fenícios, arameus e assírios.

No século IX, principalmente no tempo de Acab (875-853), o Reino de Israel conheceu grande prosperidade econômica. Mas com grande injustiça social. As forças de resistência vieram dos círculos proféticos, dominados pelas figuras de Elias e Eliseu. Havia, pois, forte oposição à realeza, com raízes no espírito tribal; graças à atuação dos profetas, herdeiros de Moisés, era animada de grande coerência religiosa: “os profetas eram, de fato, os juízes da monarquia, na medida em que permaneciam fiéis a Deus e à herança mosaica (cf. 1Rs 19)” (J. Briend). Com tais informações, podemos compreender o contexto histórico da tradição Eloísta.

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6 São atribuídos à tradição Eloísta as seguintes passagens: aliança de Abraão; nascimento de Isaac, o repúdio de Agar; o sacrifício de Isaac; a corte de Rebeca; Esaú e Jacó; Jacó em Betel; o casamento de Jacó; o nascimento dos filhos de Jacó; Jacó e Labão; José e seus irmãos; José no Egito; a morte de Jacó; a opressão no Egito; nascimento e vocação de Moisés; provavelmente cinco das dez pragas; a passagem pelo mar; a viagem ao Sinai; a estada no Sinai; o bezerro de ouro; a partida do Sinai; as codornizes e o maná; os exploradores; a rebelião de Datã e Abiram; a viagem de Cades a Moab; a adoração de Baal; luta entre as tribos orientais e ocidentais; nomeação de Josué à sucessão de Moisés; o cântico de Moisés; a bênção e a morte de Moisés.

É assaz difícil definir os limites da tradição Eloísta. Entretanto, pode-se afirmar que ela não traz nada sobre a história das origens, visto que nela não se encontra nenhum vestígio de relatos cosmogônicos. De fato, a tradição eloísta, sendo menos universalista, não se interessa, como a javista, pelos outros povos, se bem que não se deva exagerar essa diferença. Ela preocupa-se, em primeiro lugar, com Israel, e, secundariamente, pelas relações entre Israel e os povos vizinhos.

Para os estudiosos, a tradição Eloísta começa com o “ciclo de Abraão”. Embora se reconheçam fragmentos dela em Gn 15, há um consenso entre a maioria dos exegetas de que o primeiro trecho seguido da eloísta é Gn 20.

O fim da eloísta também não é fácil de ser determinado. Fragmentos seus, podem ser encontrados em Nm 25 e 32, mas, provavelmente, não constituem o fim primitivo dessa tradição. Há quem afirme a presença de textos eloístas no Deuteronômio: “É uma possibilidade que tem a seu favor bons argumentos, mas que não permite precisar a extensão do documento em sua origem” (J. Briend).

A situação histórica da purpleação eloísta, pelo menos aproximativamente, é mais fácil de se conhecer. Ela se formou no reino do Norte, bem depois, portanto, da divisão dos reinos de Judá e Israel. Nela, a monarquia e o sacerdócio não são reconhecidos como instituições de salvação. Somente nos “homens de Deus” ou profetas pode-se constatar a presença de Deus no meio de seu povo. O maior deles é Moisés. Sinal de que essa concepção era bem conhecida no reino do Norte, é o fato de o profeta Oséias, sem citar o nome de Moisés, designá-lo “um profeta” (Os 12,14). Além disso, constatou-se que existem semelhanças entre os textos eloístas e as narrações que evocam a ação dos profetas Elias e Eliseu. Pode-se comparar a função desempenhada pelo bastão do profeta Eliseu (2Rs 4,29-31) com Ex 4,1-4 (cf. Ex 4,6 e 2Rs 5,27). O zelo de Moisés por Deus em Nm 25,5, pode comparar-se ao de Elias em 1Rs 18,40 ou ao de Jeú em 2Rs 9-10.

Daí que se devem procurar as raízes da tradição eloísta no movimento profético do reino do Norte, sem menosprezar a influência da corrente sapiencial. Realmente, pode-se notar nela uma viva preocupação pelas questões morais, um sentido muito profundo de obediência a Deus, um real interesse pelo verdadeiro culto, muito cuidado em deixar claro que Deus é totalmente diferente do homem, e, portanto, fugirá drasticamente de todo antropomorfismo, quando a Ele se referir.

Certamente, a tradição eloísta foi purpleigida quando o movimento profético, inaugurado por Elias, já tinha adquirido certa força política e moral em Israel. Ela revela afinidades com esse movimento e com sua atitude perante a sociedade. Por isso, os estudiosos situam, com relativa segurança, sua purpleação na primeira metade do século VIII a.C.

4.3 TRADIÇÃO DEUTERONOMISTA

O livro Deuteronômio não foi elaborado de uma só vez. Ele é fruto da tradição Deuteronômica ou Deuteronomista. Para se compreender o seu alcance e significado, é necessário, em primeiro lugar, situá-lo no seu contexto histórico. A partir do ano 628, quando o império Assírio começou a ruir, o rei Josias (640-609) iniciou uma reforma política e religiosa no reino do Sul. De fato, Josias logrou libertar-se do jugo assírio, reconquistou grande parte do território de Israel, e realizou uma reforma religiosa sobre a qual a Bíblia longamente se detém (2Rs 22-23). Ele decidiu mandar fazer restaurações no templo de Jerusalém, onde o sacerdote Helcias descobriu um livro, “o livro da Lei” (2Rs 22,3-10). Ora, ao constatar que não se tinha obedecido às palavras desse livro (2Rs 22,13), Josias decidiu mandar lê-lo diante de todo o povo (2Rs 23,2).

Que é, afinal, esse “livro da Lei” ou “livro da Aliança”? Reconhece-se nele uma “primeira edição” do Deuteronômio que temos hoje. Refletindo as tradições do reino do Norte, foi composto

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7 provavelmente em Jerusalém, no reino do Sul, após a queda da Samaria em 722. De fato, numerosos são os sólidos indícios que permitem concluir que o núcleo do Deuteronômio esteja mesmo ligado ao do reino do Norte: nota-se a intenção deliberada de fazer a Lei emanar da autoridade de Moisés e de Deus; admite-se Moisés falando nos discursos dos capítulos 1-11. Neste sentido, o Deuteronômio segue a linha da tradição Eloísta e dos profetas do Norte, como Elias e Oséias; a revelação fundamental de Deus, a Lei ou Decálogo, situa-se no Horeb e não no Sinai, como na Javista. Há, de um lado, uma versão do Decálogo (Dt 5,6-21) ligada ao Horeb (5,2); ora, o Decálogo moral provém do Norte, como o mostra o texto de Ex 20,1-17. De outro lado, o centro do livro é ocupado pelo código deuteronômico (Dt 12-26).

A “primeira edição” do Deuteronômio deve ter sido depositada no templo durante o reinado de Ezequias (715-687). Não nos esqueçamos que habitantes do reino do Norte tinham procurado refúgio em Jerusalém, trazendo consigo suas tradições. Não nos esqueçamos também que, durante o reinado de Ezequias, desenvolveu-se intensa atividade literária: fusão das tradições Javista e Eloísta; redação de coleções de Provérbios (Pv 25,1), de Salmos e de ditos de Oséias etc. Apoiando-se nas palavras desse livro, é que, certamente, Josias tomou algumas medidas tais como a centralização do culto em Jerusalém (Dt 12.13s) e a destruição dos altares e do “lugares altos” (Dt 12,2-3; 2Rs 23,4-14). Assim, a partir de 622, a influência do Deuteronômio primitivo não deixou de crescer, no decorrer do tempo, o que explica as numerosas fases que ele conheceu até chegar à sua redação final. “As descobertas de manuscritos bíblicos, em Qumran, mostram que esse livro era muito lido e recopiado, quase como o rolo de Isaías” (J. Briend).

a) O Código Deuteronômio O “código deuteronômico” reúne, sem ordem clara, diversas coleções de leis de diferentes origens, algumas oriundas do reino do Norte e introduzidas no Sul, após a queda de Samaria (722). Este conjunto considera a evolução social e religiosa de Israel que deve substituir o antigo código da Aliança. Ele começa e termina com normas e diretrizes em relação ao culto a Javé (12,1-16,17 e 26,1-15). Ora, é típico da legislação israelita, situar um complexo de leis em um quadro cultual. Esse código sublinha, desde o início, o lugar onde se deve prestar culto a Deus e proíbe a prática de ritos pagãos (12,1-31). De fato, esta lei pretende, no mesmo espírito dos profetas, defender o culto a Javé de qualquer contaminação dos cultos cananeus, mediante a destruição dos “lugares altos” destes cultos e pela imposição de um só lugar para o culto javista. Daí a fórmula “lugar que Deus escolheu para aí colocar o Seu nome“, “para aí habitar o Seu nome” ou “para aí lembrar o Seu nome“. A lei que abre o código deuteronômico se assenta na unidade de santuário. O israelita deve prestar culto a Deus “no lugar que o Senhor escolher” (12,5), expressão assaz vaga que não se refere necessariamente ao templo de Jerusalém. Sabemos, entretanto, que, no momento da redação do código, provavelmente depois da queda de Samaria, o único templo existente para os refugiados do Norte é o de Jerusalém, e que essa cidade se tornou, de fato, “o santuário no qual Deus faz residir o seu nome” (12,5).

Podemos afirmar que este código é uma compilação de leis já existentes, mesmo que sua estrutura reflita a do Decálogo. De fato, uma análise do texto leva a reconhecer “coleções de leis” que têm, provavelmente, origem independente. Mas o código não pode ser separado de seu contexto, pois ele faz parte de uma estrutura mais vasta que é a da aliança.

Nota-se no código uma mistura de gêneros, tanto no plano literário quanto no do conteúdo. O Deuteronômio, em seu conjunto, é uma reflexão sobre a infidelidade de Israel, infidelidade que levou ao desaparecimento do reino do Norte. Percebe-se, atrás do código, uma reflexão teológica sobre aquilo que Israel deveria ter feito para corresponder à vontade de Deus. “Pela leitura do código deuteronômico descobre-se que o que a legislação queria era suscitar uma comunidade fraterna, o que explica o uso do termo “irmão”, que se encontra 25 vezes no Deuteronômio” (J. Briend).

b) O Livro da Aliança O termo “Aliança” (berit, em hebraico) ocorre 27 vezes no Deuteronômio. Em numerosas passagens, o Deuteronômio designa o acontecimento do Sinai como uma “Aliança”. Contudo, em 5,2-3 acrescenta-se algo novo: “Iahweh, nosso Deus, concluiu conosco uma Aliança no Horeb. Iahweh não concluiu esta Aliança com nossos pais, mas conosco, conosco que estamos hoje aqui, todos vivos“. Note-se a expressão “conosco“, que mostra que, seja qual for o papel de Moisés, a Aliança foi feita entre Deus e o povo.

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8 O Deuteronômio insiste que Iahweh é Aquele que guarda a Aliança e a misericórdia para com os que o amam (7,9.12); Ele é o Deus fiel, que faz conhecer sua Aliança (4,13) ou ainda que estabelece sua Aliança (8,18). Contudo, não obstante a fidelidade de Deus, infelizmente paira em todo o livro grande inquietação: Israel pode transgredir a Aliança (17,2), romper a Aliança (31,16.20), abandonar a Aliança (29,24), esquecer a Aliança (4,31). O livro põe assim em relevo a liberdade de escolha do povo perante Iahweh e a fragilidade de sua adesão ao projeto de Deus. Essa inquietação nasce da experiência real da constante infidelidade do povo. Daí que a exortação à obediência à Lei confirma uma situação de desobediência generalizada. Essa é a questão que está no cerne do Deuteronômio.

O Deuteronômio é o Livro da Aliança. Mas, de algum tempo para cá, se começou a pensar que na sua estrutura ele se aproximava dos tratados de vassalagem então em uso. Já se sabia pelos próprios textos bíblicos que a aliança na linguagem dos homens do Oriente antigo designava uma realidade político-religiosa: “O estudo da aliança como realidade político-religiosa se enriqueceu no decorrer dos anos, com o conhecimento dos tratados de aliança celebrados entre soberanos do Oriente antigo nos séculos XIV-XIII, dos tratados aramaicos (séc. VIII), dos tratados assírios (séc. VII). Esses textos podem dividir-se em dois grupos: os tratados entre iguais e os tratados de vassalagem constituindo estes últimos o grupo mais importante” (J. Briend).

De fato, encontra-se no Oriente antigo, apesar das variações, a mesma estrutura dos tratados de vassalagem: pode-se falar do gênero literário “formulário de Aliança” que seria comum a todas as cortes reais. Entretanto, esse “formulário”, tal como é conhecido, não se aplica diretamente ao Deuteronômio. Compreende-se isso sem dificuldade admitindo-se que se pode passar de uma linguagem política e religiosa para uma linguagem propriamente teológica. Essa passagem não se faz sem rupturas, das quais uma das mais claras é que Deus não pode ser testemunha nem mediador, como em Oséias 2,20; na Aliança, Ele é parceiro.

Em que consiste afinal a Aliança? Não se trata de um acordo bilateral entre iguais, como nos “tratados de vassalagem”, que abordamos no artigo anterior. Ora, no Deuteronômio, é evidente a distância entre as partes: Iahweh e Israel. O povo de Deus sempre teve consciência da transcendência de Iahweh. Ele sabe que é Deus quem toma a iniciativa, mas deixa Seu povo livre para decidir se aceita ou não essa escolha (Dt 30,15-20). Por que o Deuteronômio desenvolveu uma teologia da Aliança e utilizou o “formulário da Aliança”? Aceitando ser esse livro obra do Reino do Norte, encontramos duas respostas que se completam mutuamente: os últimos anos do reino do Norte mostraram que as alianças políticas só levaram ao desastre.

Oséias condenou essas alianças (Os 10,4;12,2) e disso o Deuteronômio era conhecedor; por isso, repete uma antiga condenação das alianças referente à época da conquista (Dt 7,2; Ex 23,32; 34,12.15; Jz 2,2). Israel é cônscio de que foi sua infidelidade a Iahweh que levou à queda o Reino do Norte. A segunda resposta é uma conseqüência da primeira: o Reino do Norte tinha conservado a tradição de uma Aliança entre as tribos em Siquém (Js 24). Oséias conheceu uma Aliança semelhante, de uma dimensão religiosa inegável (Os 6,7). O livro do Deuteronômio herdou alguns materiais provenientes desse modelo de Aliança, de uma Aliança entre tribos; reconhecendo lahweh como Deus de Israel, passa-se para uma Aliança entre lahweh e Israel. Essa linguagem teológica teve um lento amadurecimento, mas podia apoiar-se na existência de uma relação com Deus, estabelecida há muito tempo; uma tradição de Aliança que esperava apenas ser reinterpretada em função dos acontecimentos de uma época mais recente.

O livro do Deuteronômio insiste que, na Aliança, Deus é o parceiro de Israel. Essa diferença fundamental, em relação aos “tratados de vassalagem”, acarreta outras igualmente substanciais, e que dizem respeito de modo particular à natureza da relação entre Iahweh e Seu povo. Ora, de um lado, Iahweh foi quem tomou a iniciativa da Aliança em relação às tribos que viriam a constituir o povo eleito. Por isso, no Deuteronômio, são abundantes os adjetivos possessivos para expressar essa realidade: nos lábios de Iahweh enfatiza-se a “Minha Aliança“; ao passo que o povo sempre remeterá a Aliança a Iahweh pelo emprego de “Tua Aliança” ou “Sua Aliança (a Aliança Dele)”. Por outro lado, trata-se de um relacionamento; o que exige a existência de dois parceiros. De fato, da Aliança decorrem obrigações para Israel. Tais obrigações podem se resumir em “ouvir a voz do Senhor seu Deus e praticar os Seus mandamentos“. Esse foi o grande desafio para Israel ao longo de toda a sua história. E o livro do Deuteronômio quer ser, pois, uma reflexão madura e realista sobre o por quê dessa infidelidade, e lançar uma luz para que se retome o radicalismo de se viver a Aliança qual única alternativa de sua subsistência como “povo de Deus e nação santa”.

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9 c) As grande linhas teológicas do Deuteronômio O livro reflete a experiência original de Deus e de sua Palavra transmitida por Moisés. O Deus do Horeb é o Deus de Israel. Deus escolheu ser o Deus de Israel. Contudo, essa eleição não é um privilégio. Ela implica uma missão. Procede unicamente do amor fiel de Deus (7,8), e espera uma resposta: o amor a Deus. Amor que se explicita na forma de um mandamento dado por Deus a cada um e a todos, à semelhança do próprio amor divino: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (6,5). “Aqui está um dos aspectos fundamentais da religião de Israel que acompanhou toda a Revelação do Antigo Testamento” (Wiener).

Esse povo escolhido é uma comunidade estruturada que vive em uma terra. Cada geração deve reconhecer que essa terra é um dom de Deus, o sinal concreto de Seu amor por Israel (7,13-15). A Lei é o principio de vida desta comunidade. Israel é chamado a ter “a Torá no coração, o nome de Iahweh nos lábios e um só santuário nacional. Eis o ideal que o Deuteronômio propõe” (Cazelles).

Para tocar o coração dos ouvintes, a Tradição Deuteronomista apela à “recordação”. No Deuteronômio, essa expressão ocorre 15 vezes, sempre em passagens no singular. Ora, o que o povo deve sempre recordar é “o que Deus fez ao faraó e a todo o Egito” (7,18) ou durante a estada no Deserto (8,2; 9,7) ou ainda na Conquista (8,18).

Sabemos, entretanto, que a recordação a que se refere não diz respeito ao passado enquanto passado, mas a um passado que continua presente enquanto fundado no poder de Deus. Constitui-se, portanto, numa atitude de fé e de esperança. Por isso, está associada à liturgia, especialmente à da Páscoa. Está também no centro da ética e dos mandamentos, pois ela diz respeito, antes de tudo, à ação de Deus que almeja, no dia de hoje, uma ação do homem.

De fato, o termo “hoje” é abundante no Deuteronômio, ocorre mais de 70 vezes. “A insistência nesse termo mostra que uma mesma concepção da temporalidade atravessa o Deuteronômio. Cada geração israelita é chamada a ser testemunha da ação de Deus e de sua Palavra. Colocado diante da Palavra de Deus, cada um é chamado a obedecer e a pôr em prática essa Palavra, guardando-a em seu coração, para que ela lhe sirva de guia para a felicidade” (Briend).

4.4 A Tradição Sacerdotal

Com a Tradição Sacerdotal, indicada pela letra “P“, do alemão Priester-kodex, “código sacerdotal”, o Pentateuco, tal como o conhecemos hoje, estará praticamente concluído. Sabemos que esse conjunto de livros se formou ao longo da caminhada do povo de Israel. É fruto, pois, de tradições orais que remontam a Moisés, mas que foram redigidas muitos anos mais tarde, em lugares diferentes e por autores (redatores) também diversos.

Vimos que o início da formação do Pentateuco se deu mediante a redação da Tradição Javista (J) e da Eloísta (E). Mais tarde, com a queda do Reino do Norte, em 722, houve, no Sul, a fusão dessas duas Tradições (J-E). Em seguida, apareceu a primeira redação do Deuteronômio (D), no tempo de Ezequias (716-687). Então, ao núcleo constituído pela fusão J-E, vem se juntar P, perto do fim do Exílio, em 538.

A história sacerdotal só se compreende em relação com o choque produzido pela queda de Jerusalém e pelo Exílio. Ora, em 587 o rei de Babilônia, Nabucodonosor, toma Jerusalém e deporta seus habitantes. Os exilados se viram atirados numa situação nova: seu rei estava preso, o templo destruído e a terra, dom de Deus, ficara para trás. Como manter a fé e a esperança no Deus de Israel, diante dos vencedores babilônios? Entre os exilados, houve quem se desencorajasse e aderisse à religião babilônica. Houve, porém, aqueles que se mantiveram firmes em sua fé e tentaram encontrar no passado de Israel motivações para uma esperança capaz de fortalecê-los. Foi o que fizeram os sacerdotes de Jerusalém exilados em Babilônia, entre os quais Ezequiel. Assim, antes do fim do Exílio (538) foi elaborada a história sacerdotal.

A Tradição Sacerdotal se empenha, pois, em procurar na herança do passado uma resposta para a seguinte pergunta: em que se apoiar para continuar a viver no meio de uma nação estrangeira sem se contaminar com sua religião e com seus ídolos? Daí, a insistência na idéia de pertença a um povo, o que explica a importância das genealogias na história Sacerdotal: trata-se de manter, por

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10 meio delas, a identidade de Israel na terra da Babilônia, a fim de evitar a dissolução do povo e permitir a Deus a realização de suas promessas.

A Tradição Sacerdotal procura interpretar o desígnio de Deus, que permite a seu povo uma situação tão adversa. Para tanto, integra a história de Israel à história da humanidade. A releitura da história passada do povo e a meditação nas promessas divinas permitiam pensar que, apesar da catástrofe de 587, a promessa de Iahweh não tinha cessado. O apelo à história patriarcal mostrava que o que se vivia no Exílio não era algo totalmente inédito: Abraão fora estrangeiro em Canaã (Gn 23). Jacó tinha apenas um pedaço de campo (Gn 33,18-22). O próprio cativeiro não é uma situação nova. No passado, os israelitas também foram cativos no Egito (Ex 1,1-5.7.13-14). Enfim, o início da história de Israel foi modesto, mas a promessa de Deus se realizou. Assim, esses poucos exemplos, extraídos das mais antigas tradições do povo, visavam iluminar a vida dos exilados do século VI.

a) Características da Tradição Sacerdotal De fato, uma das características da história sacerdotal é a imbricação das leis nas narrações. As leis e as instituições são ligadas a acontecimentos que realçam seu valor religioso, classificando essa obra como “histórico-legal” (A. Lods). Alguns exemplos: em Gn 1,1-2,4a, são inseridas na narração duas leis: a da fecundidade e dominação (1,28) e a do sábado (2,3); em Gn 9, no final da narração do dilúvio, volta-se à lei da fecundidade (9,1) e à do respeito ao sangue; em Gn 17, está inserida a lei sobre a circuncisão (17,9-14); em Ex 12,1-13, a legislação sobre a páscoa está ligada à décima praga. E numerosos outros exemplos também podem ser encontrados nos livros do Êxodo e dos Números. O material legislativo é assim repartido dentro do quadro histórico da vida do povo.

A Tradição Sacerdotal (“P“) recorre freqüentemente ao emprego da cronologia. Os textos “P” se caracterizam pelo uso de datas tiradas de um calendário sacerdotal que não é nem o calendário usado na monarquia, nem o calendário babilônico. Os meses não são designados por nomes, mas por números (Gn 7,11; 8,13; Ex 16,1; Nm 1,1).

O vocabulário é preciso e, muitas vezes, técnico. Alguns termos técnicos são próprios de “P“, e o estilo se reconhece com relativa facilidade por ser desprovido de pitoresco. É frio e seco. O apreço pelo uso abundante de números, de enumerações, de listas, surpreende, mas está a serviço de uma teologia perfeitamente articulada.

A importância que a Tradição Sacerdotal confere às genealogias se explica pelo desejo de estabelecer continuidade entre a criação e a história, visando apresentar as raízes do povo. Preocupação legítima e bem compreensível num contexto de exílio como esse. Também o interesse pelo casamento dos patriarcas tem a mesma explicação: o casamento com estrangeiras, na Babilônia, punha em perigo o futuro de Israel.

A obra que os autores sacerdotais criaram não é fruto de pura imaginação, mas da reflexão sobre a tradição do passado. Assim, a sua narração do dilúvio retoma a narração javista e a amplia em função de sua perspectiva teológica própria. Na Tradição Sacerdotal, encontram-se muitos exemplos disso, inclusive quando se trata de textos legislativos e cultuais.

Finalmente, uma grande parte das leis e prescrições é consagrada à organização do culto. Isso se constata facilmente lendo os capítulos do Êxodo que tratam da construção do santuário e das normas relativas ao sacerdócio (Ex 25-31 e 35-40). “Outro indício dessa importância é o lugar de Aarão ao lado de Moisés; descobre-se que a instituição principal para a existência do povo é o sacerdócio. A leitura do Êxodo e de Números mostra-o claramente” (J. Briend).

b) A Teologia da Tradição Sacerdotal A origem do material da Tradição Sacertotal (“P”) é muito variada. É possível distinguir nela elementos legislativos ou baseados em costumes do povo. Afirma-se que a compreensão da mensagem de “P” se encontra na fórmula da seguinte bênção: Deus os abençoou, dizendo-lhes: Reproduzi-vos e multiplicai-vos e povoai a terra, submetei-a e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu e sobre os animais que se movem sobre a terra (Gn 1,28).

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11 Para a Tradição Sacerdotal, os cinco verbos dessa bênção constituem a base de sua fé. Tal bênção é uma afirmação ousada e todo-poderosa pela qual Deus manifesta claramente Sua intenção em relação à humanidade.

A forma imperativa dos verbos (reproduzi-vos, multiplicai-vos, povoai, submetei e dominai) não significa que sejam mais ordens do que autorizações que habilitam os povos a crer e a agir em vista do futuro. Deus reivindica, com essa bênção, Sua soberania sobre toda a criação, que acabara de tirar do caos. Compreende-se melhor ainda o sentido dessa bênção divina vendo-se nela como que uma refutação da situação concreta, de verdadeiro caos, que o povo está vivenciando no Exílio. De fato, essa proclamação positiva se aplica de modo impressionante a um povo exilado, que se vê sem raízes, longe de sua terra e em vias de perder a fé em Deus.

Encontramos essa fórmula também nas narrações do dilúvio: primeiro, para os pássaros e animais (Gn 8,17= 1,22); mas principalmente para Noé e seus filhos (9,1) e para o homem feito à imagem de Deus (9,7). Os exilados podiam vislumbrar aí, uma alusão ao retorno ao seu país. Outro texto, que reforça a mesma idéia, diz respeito às palavras de Deus a propósito de Ismael (17,20) que confirmam o que Deus quer fazer por meio de Isaac, segundo a promessa feita a Abraão (17,2-4).

A mesma fórmula reaparece quando se narra o casamento de Jacó (28,1-4), que serve também para fundamentar a esperança na posse da terra (28,4). A mesma promessa se repete em 35,11ss, onde os exilados podem ver que a Palavra de Deus continua válida também para eles.

Assim, constata-se que a fórmula da bênção perpassa toda a história sacerdotal. De fato, para os exilados em Babilônia, a meditação sobre as suas origens oferecia sólido fundamento para sua fé. Entretanto, “a expressão mais completa da fórmula da bênção se encontra em Gn 1,1- 2,4a, e dela derivam todos os seus empregos subseqüentes (…). Com isso se compreende que a principal preocupação do escrito sacerdotal se orienta para o futuro, isto é, para o tempo no qual a terra será, então, reativada” (J. Briend).

Dessa forma, o todo desses relatos está ligado por uma vigorosa teologia da esperança. A história sacerdotal está, pois, em tensão entre a tradição do passado e a situação do presente. Por isso, colhe subsídios em uma profissão de fé em torno da qual foi composto o Pentateuco.

c) A Lei de Santidade A “Lei de Santidade” (Lv 17-26) forma um conjunto que inicialmente era separado do Pentateuco. Esse conjunto reúne elementos diversos, alguns dos quais, provavelmente, remontam à época nômade, como o cap. 18, por exemplo. Outros são ainda do período pré-exílico, e outros, mais recentes. Uma primeira coleção dessas leis ter-se-ia formado em Jerusalém, pouco antes do Exílio. O profeta Ezequiel a pôde ter conhecido. Contudo, sua edição se deu somente no decurso do Exílio, antes de ser inserida no Pentateuco pelos redatores sacerdotais, que a adaptaram ao resto do material que reuniram.

Pode-se afirmar que a estrutura da Lei de Santidade muito se aproxima da do “código deuteronômico” (Dt 11,1-26,15). “Como o código deuteronômico, a Lei de Santidade se abre e se encerra com prescrições cultuais (Lv 17,1-16 e 26,1-2); apresenta-se como um discurso de Moisés ao povo (17,1-2) e é seguida de bênçãos e maldições (26,3-45). Por isso, a Lei de Santidade, como o código deuteronômico, é uma compilação: as repetições que nele se encontram denotam a existência de pequenas coleções primitivamente independentes” (J. Briend). Todavia, enquanto o Deuteronômio enfatiza a eleição do povo de Israel por parte de Iahweh, a Lei de Santidade se refere com insistência à santidade de Deus e à sua transcendência. Como Deus é santo, o povo de Deus deve ser santo (19,2). Trata-se da fórmula-chave dessa coleção. Ora, a santidade de Deus é uma santidade moral e se impõe ao povo, que recebe o qualificativo de “santo”.

Para se determinar a data em que foi realizada essa compilação, pode ser tomado como ponto de comparação o ministério do profeta Ezequiel, exilado em Babilônia em 597. Ele se refere à Lei de Santidade (compare-se, por exemplo, Ez 18,6 e Lv 18,19 e também Ez 22,11 e Lv 20,12). Ora, Ezequiel não pode ser o criador dessa Lei, porque em alguns pontos importantes ele se distancia dela: o profeta combate, por exemplo, a retribuição coletiva (Lv 20,5; 26,39), enfatizando a responsabilidade individual.

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12 Muitos são os indícios que sugerem que a Lei de Santidade foi compilada paralelamente ao Deuteronômio. A supracitada semelhança entre as estruturas de ambos os códigos tem se constituído num argumento de grande peso a favorecer essa hipótese. Muitos afirmam que a reforma de Josias levou os sacerdotes a proporem um conjunto de leis que viesse contrapor-se ao código deuteronômico. Mas a Lei de Santidade não tem os desenvolvimentos do Deuteronômio. Não se sente o peso da tradição mosaica, tão sensível nas tradições do norte. Como no Deuteronômio, a Lei é a condição para se conseguir a bênção. Com a Lei de Santidade o povo de Israel se acha, portanto, em fase anterior à esperança de uma Nova Aliança (Jr 31,31-34), na qual a Lei ia ser um dom de Deus: Eis que dias virão em que concluirei com a casa de Israel (e com a casa de Judá) uma aliança nova. (…) Porei minha lei no fundo de seu ser e a escreverei no seu coração…

d) As Leis suplementares Ao lado do importante conjunto de leis elaborado pela Tradição Sacerdotal, que já vimos em artigos anteriores, deve-se mencionar ainda a compilação de toda uma série de leis, mais ou menos independentes de seus contextos, bem como “retoques” feitos em leis mais antigas, fortemente influenciadas por Neemias e Esdras. Todo esse material foi introduzido no Pentateuco, por ocasião de sua composição final. De fato, com essas “leis suplementares”, de inspiração sacerdotal, temos a última etapa daquilo que os judeus designam como a “Torah” (5 primeiros livros da Bíblia), e que era o texto reconhecido por judeus e samaritanos como divinamente inspirado. Entre os textos legislativos posteriores à Tradição Sacerdotal podem ser citados os seguintes, mesmo que retomem tradições antigas: “a lei dos sacrifícios” (Lv 1- 7), “a lei da pureza” (Lv 11-16) e as prescrições sobre as festas (Nm 28-29).

Ora, no ano 538 a.C, possibilitado pelo edito de Ciro, deu-se o retorno do povo de Deus do Exílio da Babilônia. Com a restauração do templo, em 515, a comunidade judaica encontra, aos poucos, a unidade em sua terra. “Essa época nos é obscura porque, para o período que vai de 515 a 450, os documentos históricos são raros. Depois, aparecem dois personagens: Neemias e Esdras” (J. Briend).

Neemias (“Iahweh consola”) foi um dos organizadores mais enérgicos da restauração pós-exílica. Pode ter exercido seu ministério no reinado de Artaxerxes I (445 a.C.). Fora a Jerusalém, com autorização da corte persa, para reconstruir os muros da cidade. Apesar da hostilidade dos samaritanos sob Sanbalat e de outros inimigos, conseguiu restaurar as muralhas em pouco tempo (Ne 2-4). Como governador persa distinguiu-se pelo seu trabalho desinteressado (Ne 5,14-19); defendeu os pobres contra a agiotagem dos latifundiários (Ne 5,1-13). Em 433, voltou para a corte persa (13,6); na sua segunda visita à Judéia tomou medidas contra a profanação do sábado e contra os matrimônios de muitos israelitas com mulheres estrangeiras (13,15-31).

Esdras (“[Deus é] auxílio”), sacerdote e “escriba da Lei do Deus dos céus” (Esd 7,1-5), foi um dos judeus deportados para a Babilônia. Conselheiro do governo persa para negócios judaicos, foi enviado da Pérsia para Jerusalém, com a incumbência de reorganizar a comunidade pós-exílica. Não é certo a qual Artaxerxes se refere. Noth, Rowley e Rudolph datam-no nos últimos anos de Artaxerxes I, considerando a data de Esd 7,7 como inexata. Esdras teria viajado para Jerusalém na companhia de uns 1500 patrícios, aos quais se ajuntaram ainda 238 levitas e servidores do templo, provindos de Cásfia (Esd 7-8). Encarregado pelo governo persa, em 398, de elaborar uma constituição, Esdras não se contentou com a síntese das grandes tradições já existente, mas completou essa obra com a inserção de toda uma legislação cultual posta em prática no templo reconstruído. A perspectiva da história sacerdotal é mantida, mas, em alguns pontos, há não pequena evolução. No próximo número: Síntese das ”tradições” e “Mensagem do Pentateuco”.

Padre Lucas

4.5 Síntese das Tradições do Pentateuco

A questão das origens do Pentateuco interessa a todos que almejam um conhecimento mais acurado da Bíblia. Até o século XVII, as tradições judaica e cristã sempre reconheceram ser Moisés

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13 o seu único autor. Contudo, a partir do início do século XIX, a crítica literária começa a observar certos traços do Pentateuco que sugerem a existência de mais de um escritor.

Para tentar responder às questões quanto às diferenças estilísticas e a presença de fragmentos literários de proveniências diversas num único relato, surgiram três hipóteses: “a documentária”, a “dos fragmentos” e a “dos complementos”. Foram os primeiros passos da exegese visando a uma compreensão mais acurada quanto à origem do Pentateuco.

J. Wellhausen (1844-1918) foi quem reelaborou a antiga “hipótese documentária”, que concebe o Pentateuco como uma obra redacional, para cuja formação concorrem os seguintes extratos literários: o “Javista” (J); o “Eloísta” (E); o “Deuteronomista” (D) e o “Sacerdotal” (P). Sua hipótese dominou a crítica bíblica depois de 1900. Mas sua teoria fora concebida de maneira teórica demais. Por isso, muitos exegetas preferiram adotar outra terminologia e falar em “escolas” ou em “tradições” no lugar de “documentos”.

Embora não haja consenso entre os estudiosos sobre os “documentos” ou as “tradições” que deram origem ao Pentateuco, vimos a necessidade de aprofundar as suas características, uma vez que a terminologia empregada por Wellhausen ainda vigora: o Pentateuco seria a amálgama dos quatro supracitados “documentos” ou “tradições”.

A mais antiga é a “Javista”, assim denominada por designar com o nome de “Javé” a Deus. Redigida em Judá, Reino do Sul, por volta do século IX. Alguns exegetas a datam antes do cisma Norte-Sul.

A “Eloísta”, que designa Deus com o nome “Eloim”, é oriunda do Reino do Norte, e tem sido datada na primeira metade do século VIII. Tem suas raízes no movimento profético do Norte e na corrente sapiencial. Com a queda da Samaria, em 722, foi trazida para o Sul, onde se uniu à “J”.

A “Deuteronomista” é a que deu origem ao livro do Deuteronômio. Reconhece-se no livro encontrado no templo, quando da reforma de Josias (640-609), sua primeira edição. A partir de 622, sua influência não deixou de crescer, o que explica as numerosas fases que conheceu até chegar à sua forma atual. Refletindo tradições do Norte, foi composta no Sul, após 722. Segue a linha de “E” e dos profetas do Norte. Diante do risco de desagregação e perda de identidade do povo, os autores de “D” se esforçam por manter Israel no essencial de sua fé.

Com a “Sacerdotal”, o Pentateuco estará praticamente concluído. Tem sido datada antes do fim do Exílio (538). “P” empenha-se em procurar na herança do passado uma resposta às seguintes perguntas: em que se apoiar para continuar a viver em meio a uma nação estrangeira sem apostatar da própria fé? Por que Deus permite a seu povo uma situação tão adversa? Para tanto, faz uma releitura da sua história e das promessas divinas, visando iluminar a fé dos exilados do século VI

5. A MENSAGEM DO PENTATEUCO A hipótese das tradições (J, E, D e P) – amalgamadas paulatinamente, até formarem o texto do Pentateuco que temos hoje em nossas Bíblias -, mesmo não sendo ainda definitiva, demonstra que “os textos, de inertes que eram, se animam aos poucos e se revelam portadores de uma tradição viva” (J. Briend). Isto equivale a afirmar que o processo de composição do Pentateuco exigiu muitos séculos e se desenvolveu em distintos contextos históricos. Diante de desafios concretos para se viver a Aliança, ao longo de sua história, alguns grupos propuseram a todo o povo de Deus uma meditação sobre o passado com o objetivo de iluminar o presente e o futuro de Israel. Ora, o povo não só acolheu tais contribuições como delas se apropriou, o que assegurou sua transmissão até os nossos dias, por meio do Pentateuco.

Como vimos anteriormente, a estruturação do Pentateuco se deu aos poucos. Depois da queda da Samaria (722) e de Jerusalém (587), surgiu, em Israel, a necessidade de se recordar sua experiência fundante como povo de Deus, a saber, a saída do Egito e a aliança do Sinai/Horeb, como meio de manter viva sua fé em Deus. Principalmente durante a ocupação da “Terra Santa”, para fortalecer a fé de um povo humilhado, alguns sentiram a necessidade de recordar as gestas decisivas de Iahweh, quando da conquista da mesma terra.

Sabemos que o Exílio significou destruição, devastação, deportação e morte. Ignora-se totalmente quantos morreram nessa época. Entretanto, o cerco à Terra Santa fez numerosas vítimas pela

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14 fome e outras tantas pela resistência. Realmente, a deportação acarretou-lhe grandes problemas físicos, psicológicos e socioeconômicos. O grupo de exilados foi numeroso o suficiente para dar início permanente à presença de judeus na Babilônia. Todavia, substancial número de judeus continuou a viver na Palestina em condições de absoluta indigência (Ackroyd). Enfim, Israel era nação derrotada: perdera sua independência, sua terra, sua monarquia e seu templo. Houve grandes sofrimentos e muitos mortos, num estado de coisas que se tornara totalmente caótico. Porém, o que mais abalou o povo, sobretudo os piedosos, foram os desafios e problemas de ordem teológica que daí se originaram.

Como manter a fé em Deus, vendo o templo destruído? O templo era considerado o “lugar da morada de Deus” (1Rs 8,18); “o lugar de Seu repouso” (Sl 132,14); o “estrado de Seus pés” (Lm 2,1); “o lugar onde se podia ver a face de Deus” (Is 1,12). Era, pois, o símbolo sensível da eleição de Israel por parte de Deus. Por isso, a destruição do templo colocara o povo em profunda crise de fé: Deus havia abandonado o “Seu povo” e o “Seu lugar”? Será que existiriam outros deuses mais poderosos ou superiores a Iahweh?

Daí que o Pentateuco “debate-se com os problemas do Exílio ao recontar a história primeva e a história de Israel antes da conquista. Este enfoque no passado não é mera técnica literária (…) propõe que Deus estará presente no meio de seu povo, atualizando, assim, suas antigas promessas a Noé e aos patriarcas, nas condições intermediadas por Moisés à comunidade cultual durante a peregrinação no deserto” (R. W. Klein).

Vimos anteriormente os graves problemas trazidos pelo Exílio e que se refletem na redação final dos cinco primeiros livros da Bíblia. Problemas históricos, físicos e socioeconômicos. Entretanto, vimos que conflitos teológicos tocaram profundamente a alma do povo e podem ser considerados determinantes no processo de composição do Pentateuco. O primeiro problema foi a destruição do templo de Jerusalém, acarretando grave crise de fé: haveria outros deuses mais poderosos que Iahweh? Teria Iahweh rejeitado o Seu povo e o Seu “santo lugar” para sempre?

Outro desafio teológico era o fim da dinastia davídica. Ora, Iahweh havia prometido dinastia eterna a Davi (2Sm 7). No passado, apesar de todas as dificuldades, muitos reis tinham desaparecido, mas a realeza e o Estado haviam resistido. Agora, Sedecias tinha sido preso, seus dois filhos assassinados. Joaquin, seu sobrinho, que reinara por apenas três meses em 597, era prisioneiro em Babilônia: o que significava tudo isso diante da promessa divina feita a Davi? Isso só podia ter acontecido porque Ele tinha julgado e rejeitado a realeza tal como fora praticada.

Crise igualmente aguda deu-se mediante a deportação dos hebreus e a ocupação da Terra por parte de estrangeiros. Sabemos que os itens essenciais da tradição patriarcal eram a promessa de uma terra e de uma descendência. Deus era o Senhor da terra e a doação desta a Israel fora, desde sua origem como povo, exaustivamente aclamada. Mas, a Terra, herança de Israel, estava agora em mãos de estrangeiros. Por que Iahweh se esquecera de Sua promessa? Teria se tornado fraco demais ou estava aborrecido com o seu povo? A Aliança do Sinai oferecia a escolha entre vida e bênção ou morte e maldição. Entretanto, em 597 e 587 as maldições da Aliança pareciam ter caído efetivamente sobre Israel. A aliança havia sido rompida por Israel. Que tipo de esperança o povo poderia ter para o futuro? Seria suficiente apoiar-se no poder de Iahweh demonstrado no Êxodo, em Sua proteção na conquista e durante mais de seis séculos em que Israel esteve na terra, ou agora tudo isso se tornara irrelevante, passado? Tudo isso podia ser usado como acusação da infidelidade de Israel?

Em síntese, “quase todos os antigos sistemas de símbolos se haviam tornado inúteis. Quase todas as antigas instituições não funcionavam mais. Que tipo de futuro era possível para um povo que atribuía a sua escolha exclusiva a um Deus que acabara de perder uma guerra para outras divindades? Que tipo de futuro podia esperar um povo que de tal modo havia abandonado o seu Deus, que Sua resposta necessária era uma rejeição categórica?” (R. W. Klein).

Diante desse quadro desolador, muitos culparam diretamente a Deus. Ele usava Suas armas de guerra contra o seu próprio povo! Outros protestavam inocência. Alegavam sofrer as conseqüências dos pecados dos antepassados. Porém, nem todas as respostas foram negativas. Todavia, até as respostas positivas refletiam a agudez do problema teológico e a incerteza quanto ao caminho para o futuro.

A compilação definitiva do Pentateuco foi profundamente marcada pela experiência do Exílio. Vimos que esse fato, além de prejuízos históricos e sociais, colocou várias questões de ordem

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15 teológica. O povo se encontrava numa situação delicada: longe da Terra Santa, “lugar de Deus”, sem Templo e sem reis, apesar da promessa divina feita a Davi de uma dinastia eterna. Vimos, entretanto, que, quando tudo parecia estar perdido, alguns teólogos puderam apelar para a volta às promessas mais antigas e ao ideal mosaico ou falar de atos salvíficos totalmente novos.

Daí que, nos textos exílicos e pós-exílicos, a ênfase na circuncisão e o renovado interesse pelo sábado podem ser facilmente entendidos como esforços para manter a identidade do povo eleito em meio à cultura estrangeira, uma vez que a mera assimilação dos costumes dos dominantes parecia oferecer mais possibilidade de sucesso.

Para os teólogos exílicos, era tempo de confessar a culpa, reconhecer a completa justificação das ações de Iahweh e voltar a Iahweh. Anunciavam com renovada ênfase a disposição de Deus para o perdão. Ainda que alguns judeus reagissem com tristeza quase incontrolável, para muitos a articulação da aflição por problemas físicos e teológicos trouxe a catarse. “Para outros as profundas expressões de tristeza eram o meio de levar Iahweh a agir. Ou será que o sofrimento por si mesmo poderia ser redentor? Suportar silenciosamente os reveses da história como servo de Iahweh, confiando somente nele – não seria este um meio de fazer as nações verem a grandeza de Iahweh até na punição?” (R. W. Klein).

O Exílio moldou toda a mensagem e toda a perspectiva desses escritores. Em relação a cada “livro” do Pentateuco se propõem as seguintes questões: De que forma esse livro é resposta ao Exílio ou análise dele? Que idéias novas são invocadas por determinado autor? Sobre quais tradições antigas se apóia? Qual é o ponto central em torno do qual gira sua resposta ao Exílio? Qual era o caminho para sair do Exílio ou superá-lo?

Vimos que as tribulações do Exílio foram ocasião para algumas das idéias mais profundas de todo o Antigo Testamento. Ora, os teólogos desse período discutem o Exílio à luz da fé. Por isso, fornecem respostas autorizadas e significativas de Deus. Isso ocorre não só porque as “respostas” são fortes, mas também porque as questões levantadas pela época exílica são muito agudas: questões de identidade e razões para esperança; questões sobre quem ou o que é a causa do mal de Israel; questões sobre a continuação da validade dos símbolos: Terra, templo, monarquia; questões para e em tempo de mudança radical, questões para os que perderam suas raízes e cujo futuro parecia estéril e carregado de conflitos…

Esses teólogos logram tirar o máximo proveito da grande catástrofe. Levantaram questões que ainda hoje desafiam teólogos, clero e fiéis. Por isso, podemos ler o Pentateuco em vista de tirar o máximo proveito dos nossos “desastres”. Somos intimados, por meio dele, a usar seus recursos para também responder criativamente e com fé aos desafios “exílicos” de hoje.

Durante o Exílio, alguns teólogos judeus concentraram sua reflexão na ação decisiva de Deus por meio de Moisés, antes da conquista da terra. Movidos por uma certeza: Deus, que agiu no passado, ainda pode agir novamente em favor de seu povo! Se eles perderam a posse da terra, mesmo assim essa continua sendo objeto de esperança e, por isso, após o Exílio, continua-se a esperar um futuro melhor!

O Pentateuco nos manifesta a expressão da fé do povo, e se apresenta como uma história coletiva. Entretanto, essa meditação sobre o passado não se realizou de uma só vez; sabemos que, no Pentateuco, encontram-se pontos de vista que se explicam tanto pelas circunstâncias históricas como pelas diferentes influências que se exerceram sobre grupos particulares e se cristalizaram em diversas “tradições”. Dessa forma, a expressão da fé se acha ligada a essas variadas experiências coletivas.

A imagem de Deus apresentada pelo Pentateuco não é uniforme; a amálgama das diversas tradições (J, E, D, P) é para nós motivo de reflexão: ela nos convida a lançarmos um novo olhar sobre a diversidade da expressão da fé hoje. Para tanto, faz-se mister superar uma leitura ingênua dos textos, que não permitiria ver a verdadeira intenção do que é narrado. Não podemos deixar-nos confundir pelo modo de narrar dos antigos; as narrações têm um papel singular no aprofundamento da relação de Israel com Deus. A diversidade dos gêneros literários não é aqui nada mais do que a riqueza de vida que anima as pessoas.

A seriedade das questões postas e das respostas é impressionante; cada leitor é interpelado mais diretamente por uma ou outra, em função de sua própria experiência. “A leitura do Pentateuco, que não se pode separar da dos profetas, mostra a seriedade que a fé exige do homem no seu trato

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16 com Deus, o cuidado em distinguir o que pode ser a vontade de Deus, a dificuldade de ouvir a Deus em todas as dimensões da existência, o que faz surgir a questão dolorosa da infidelidade, a necessidade do perdão para se continuar a avançar no caminho da fé” (J. Briend).

Assim, o Pentateuco, como todo o Antigo Testamento, está aberto a uma leitura cristã. Ao seguir as idéias determinantes de cada tradição, constata-se que elas convergem para Jesus de Nazaré. De fato, Jesus não veio coroar a esperança na vinda de um rei segundo o coração de Deus, na perspectiva da tradição Javista (J)? Não podemos ver a provação e o sofrimento como caminho de salvação, descritos pela Eloísta (E), como que uma prefiguração das perseguições e sofrimentos de Jesus? A Deuteronomista (D) se orienta em vista da organização de uma assembléia unânime no serviço de Deus: não deveríamos ver nisso um apelo a um dom do Espírito trabalhando no coração humano para torná-lo membro da comunidade fraterna nascida no Pentecostes? A tradição Sacerdotal (P), justamente preocupada com a reconciliação com Deus, não encontra sua resposta final na teologia neotestamentária?

Finalmente, a leitura do Pentateuco nos lembra que ainda estamos em marcha para Deus e que nossa lentidão é, não raras vezes, muito semelhante à do povo de Israel!

A experiência e a reação de Israel ao Exílio lança preciosa luz sobre nossa situação atual no âmbito da fé e da cultura. Vimos que conflitos teológicos dele derivados tocaram profundamente a alma do povo e podem ser considerados determinantes no processo de compilação do Pentateuco. Daí que a força desses escritos se radica, antes de tudo, no fato de terem ajudado Israel a conservar a fé durante sua maior provação e confiar na promessa de Iahweh, mantendo a comunidade unida, quando tudo parecia perdido.

Ora, “não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a que há de vir”, nos lembra a Carta aos Hebreus (13,14). A Igreja sempre se considerou como “peregrina” neste mundo. Vivemos no Exílio, pois “a Igreja só será consumada na glória celeste…” (Lumen Gentium, 48). Por isso, a leitura do Pentateuco muito ajuda e anima a reafirmar a fé e o compromisso com o Reino, denuncia a idolatria, alimenta a esperança nas promessas de Deus e suscita o desejo de continuar a prática do bem, mesmo em condições adversas.

A mensagem do Pentateuco é, pois, de grande atualidade. Como outrora, constatamos que muitas bases aparentes da fé ruíram. “Tentativas de provar a existência de Deus através de milagres ou de fundamentar a fé numa visão pré-crítica da Escritura apenas mostram quão persuasivo se tornou o silêncio de Deus. Ninguém escapa do Exílio!” (R.W. Klein).

A ciência e a tecnologia tampouco trouxeram mais paz ao mundo: “o gênero humano nunca dispôs de tantas riquezas, possibilidades e poder econômico. No entanto, ainda uma parte considerável da humanidade padece fome e miséria e analfabetismo (…). Assim, o mundo moderno se apresenta ao mesmo tempo poderoso e débil, capaz de realizar o ótimo e o péssimo, porquanto se lhe abre o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou do regresso, da fraternidade ou do ódio. Além disso, o homem se torna consciente de que depende dele dirigir retamente as forças por ele despertadas e que o podem oprimir ou lhe servir” (Gaudium et Spes, 208 e 229).

O Pentateuco insiste que o Exílio foi o resultado de vários séculos de busca de “outros deuses”. Por isso, nos auxilia imensamente no combate aos três ídolos que, freqüentemente, tentam nos seduzir e dominar: o TER, o PODER e o PRAZER (Puebla, 491-500). De fato, o Exílio está aqui entre nós! E dentro de nós!

No século VI a.C., o povo percebeu a necessidade de manter sua identidade. Também precisamos reafirmar a nossa: o amor, a solidariedade e a defesa da vida!

Contudo, o Exílio é tempo de esperança. Israel transformou seus problemas em oportunidades teológicas. Também o nosso Exílio pode ser o tempo oportuno para audaciosas afirmações de fé. No Pentateuco, a certeza da presença de Deus tornou-se realmente a boa nova para os exilados. Também temos a mesma garantia: “Eu estarei convosco todos os dias…” (Mt 28,20).

O Exílio para os cristãos é tempo de “vigiar e orar”. Enfim, é o tempo de examinar a nós mesmos, nossa comunidade, nosso país e nossa Igreja, tempo de ver seu estado atual como julgamento. É tempo, pois, de “voltar a Deus” e de amá-lo “de todo o coração, com toda a mente e com toda a alma” (Dt 6,5). Pe. Lucas - Diocese de Jundiaí - SP